O lugar no contexto

(1) Entidade geográfica mencionada

China. Chim 39(2), 45(2), 46(1), 50(1), 56(2), 58(2), 63(1), 65(1), 70(2), 71(1), 76(1), 83(1), 85(1), 89(1), 90(1), 91(1), 92(2), 94(2), 95(6), 96(1), 105(1), 113(1), 116(3), 119(1), 122(1), 133(2), 134(1), 137(1), 140(1), 180(1), 208(1), 215(1).

Nas orações: 461, 462, 540, 541, 560, 605, 675, 676, 704, 710, 758, 779, 844, 850, 858, 923, 1008, 1020, 1072, 1095, 1113, 1127, 1131, 1159, 1162, 1167, 1168, 1169, 1176, 1188, 1358, 1509, 1556, 1561, 1562, 1608, 1650, 1809, 1813, 1825, 1887, 1943, 2682, 3182, 3400.

  1. [461](Cap. 39) Antonio de Faria lhe mandou pelo Piloto Chim que leuaua hum recado de muytos comprimentos, de boa amizade, a que respõderaõ, que tempo viria em que elles se cõmunicarião com nosco por amizade da ley verdadeyra do Deos da clemencia sem termo, que cõ sua morte dera vida a todos os homẽs com herança perpetua na casa dos bõs, porque assi o tinhaõ que auia de ser passado o meyo do meyo dos tempos.
  2. [462](Cap. 39) E cõ esta resposta lhe mandaraõ hũ treçado rico, co punho & bainha douro, cõ mais vinte & seis perolas nũa boceta do mesmo feita como saleiro pequeno, de que Antonio de Faria ficou assaz magoado, por lhe não poder contribuyr co que era rezão, porque ja ao tẽpo que o Chim tornou co recado hião emmarados em distancia de mais de hũa legoa.
  3. [540](Cap. 45) E tomando por seu valedor ao Rey da China se fez seu tributario em quatrocentos mil taeis por anno, que de moeda estrangeyra saõ seiscentos mil cruzados; & o Rey Chim se lhe obrigou por isto ao defender de seus inimigos todas as vezes que lhe cumprisse.
  4. [541](Cap. 45) Esta conformidade durou entre elles por tempo de treze annos, dentro dos quais o Rey dos Cauchins foy cinco vezes desbaratado em campo, & falecendo o Hoyha Paguarol sem filho herdeyro, por este beneficio que em sua vida recebera do Rey da China, o declarou em seu testamento por seu legitimo herdeyro & successor, pelo qual de então ategora, que saõ duzentos & trinta & cinco annos, esta ilha de Ainão ficou metida no cetro deste grande Chim.
  5. [560](Cap. 46) Apos isto perguntado hum dos dous Portugueses, porque o outro estaua como morto, cujos filhos erão aquelles mininos, & como vierão ter ao poder daquelle ladraõ, & como se elle chamaua, respondeo que o ladraõ tinha dous nomes, hum de Christão, & outro de gentio, o de gentio porque se então nomeaua era Necodà Xicaulem, & o de Christão era Francisco de Saa, o qual auia cinco annos que em Malaca se fizera Christão, sendo Garcia de Saa Capitão da fortaleza, & que porque elle fora seu padrinho do bautismo lhe pusera aquelle nome, & o casara com hũa moça orfam mestiça muyto gentil molher, & filha de hum Portugues muyto honrado a fim de o fazer mais natural da terra, & que indo no Anno de 1534 para a China em hum junco seu muyto grãde, no qual leuaua vinte Portugueses dos mais honrados, & ricos da fortaleza, & tambem sua molher, chegando à ilha de Pullo Catão fizera ahy agoada, com tençaõ de passar ao porto do Chincheo, & auendo ja dous dias que ahy estaua, como a esquipaçaõ do junco era toda sua, & Chim como elle, se leuantaraõ hũa noite estando os Portugueses dormindo, & com as machadinhas que traziaõ, os mataraõ a todos, & aos seus moços, sem a nenhum que tiuesse nome de Christaõ se dar a vida, & cometeo à molher que se fizesse gentia, & adorasse hum idolo que o seu Tucão mestre do junco leuaua nũa arca, & que assi desatada da ley Christam a casaria com elle, porque o Tucaõ lhe daua por isso hũa irmam sua que aly leuaua comsigo, tambem gentia & China como elle, & porque a molher não quisera adorar o idolo, nem cõsentir em tudo o mais que lhe elle dezia, o perro lhe dera com hũa machadinha na cabeça, com que logo lhe lançara os miolos fora.
  6. [605](Cap. 50) E auendo ja algũs dias que continuaua com assaz de trabalho nesta enseada da Cauchenchina, estando nòs hum dia do nacimento de nossa Senhora que he a oito dias de Setembro, metidos num porto que se chamaua Madel, com receyo da lũa noua, que aquy neste clima vem muytas vezes taõ tempestuosa de ventos & chuuas, que não ha nauio que a possa aguardar, à qual tormenta os Chins chamão tufão, auendo ja tres ou quatro dias, que o tempo andaua toldado, & com mostras do que se receaua, & os juncos se vinhão meter não colheitas que achauão mais perto, prouue a nosso Senhor que na volta de muytos que neste porto entraraõ, fosse hum de hum cossayro muyto afamado que se chamaua Hinimilau, Chim de nação, que de Gentio que era se tornara Mouro auia pouco tempo, & parece, segundo se presumia, que prouocado pelos cacizes da seita Mafometica, que nouamente tinha tomado, ficou taõ inimigo do nome Christaõ, que dezia publicamẽte que lhe deuia Deos o Ceo pelo grande seruiço que lhe tinha feito na terra em a yr pouco a pouco despejãdo da mà geração Portuguesa, que por leite mamado nos peitos das mays se deleitaua em offensas suas como os proprios habitadores da casa do fumo; & assi por estas palauras, & por outras semelhãtes, dezia de nós cousas tão torpes & abominaueis, quais nunca se imaginaraõ.
  7. [675](Cap. 56) Como indo nós ao longo da costa de Lamau, encontramos hum cossayro Chim muyto amigo de Portugueses, & do pacto que Antonio de Faria fez com elle.
  8. [676](Cap. 56) Avẽdo ja dous dias que nauegauamos ao lõgo da costa de Lamau, cõ ventos & mares bonãçosos, prouue a nosso Senhor que a caso encontramos hũ junco de Patane que vinha dos Lequios, o qual era de hum cossayro Chim que se chamaua Quiay Panjão muyto amigo da nação Portuguesa, & muyto inclinado a nossos custumes & trajos, ẽ cõpanhia do qual andauão trinta Portugueses, homẽs todos muyto escolhidos que este cossayro trazia a seu soldo, a fora outras muytas ventagẽs que cada hora lhes fazia com que todos andauaõ ricos.
  9. [704](Cap. 58) Svrgindo nòs ao outro dia pela menham no porto de Lailoo, o Quiay Panjão que Antonio de Faria leuaua por companheyro, que como se ja disse, era Chim de naçaõ, & tinha muytos parentes naquella terra, & era nella muyto conhecido & valido com todos, pedio ao Mandarim, que era Capitão do lugar, que por nosso dinheyro nos desse o que ouuessemos myster, o que lhe elle concedeo, assi pelo receyo que teue de lhe poderẽ fazer algum dano, como por hũa peita de mil cruzados que Antonio de Faria lhe deu por isso com que ficou satisfeito.
  10. [710](Cap. 58) As espias trouxeraõ a bordo hum paraoo de pescadores que tomaraõ, em que vinhaõ seis homẽs naturais da terra, os quais disseraõ que estaua o Cossayro daly duas legoas metido num rio que se chamaua Tinlau, cõcertando o junco que tomara aos Portugueses, para nelle & em outros dous que tinha se yr para Sião donde era natural, & que se auia de partir daly a dez dias, com a qual informaçaõ Antonio de Faria assentou por parecer de algũs que para isso foraõ chamados, que todauia se mandasse ver pelos olhos, porque hũa cousa em que tanto se auenturaua, não se auia de cometer assi às cegas, senão muyto bem vista & escudrinhada, & que sobre a certeza do que se visse, se determinaria o que parecesse bem a todos; & despejando então o paraoo em que vieraõ os seis pescadores, o esquiparaõ dos marinheyros do jũco do Quiay Panjão, por ser esquipação mais fiel & segura, com sos dous dos que se tomaraõ, porque os mais ficaraõ em refẽs, & mandaraõ nelle hũ soldado por nome Vicente Morosa homem esforçado & muyto sesudo, em trajos de Chim por não ser conhecido, o qual chegando ao lugar onde os inimigos estauão, fingindo que andaua pescando como outros fazião, vio & espiou tudo quanto era necessario, & tornado a bordo deu relaçaõ do que vira, & affirmou que o inimigo estaua tão tomado às mãos, que em chegando aueria pouco que fazer nelle.
  11. [758](Cap. 63) E jurandolhe Antonio de Faria com toda a cerimonia necessaria a seu intento, que elle lhe cumpriria sua palaura, o Chim se ouue por satisfeito, & lhe disse: esses teus homẽs por quem preguntas, eu os vy ha dous dias prender na chifanga de Nouday, & botarlhe ferros nos peis, dando por razão que eraõ ladroẽs que roubauaõ as gentes no mar, de que Antonio de Faria ficou suspenso & assaz enfadado, parecẽdolhe que podia ser aquillo assi: & querendo logo com muyta pressa prouer no remedio da soltura delles, pelo perigo que entendia que podia auer na tardança, lhes mandou hũa carta por hum destes Chins, ficando por elle em refẽs todos os mais, o qual se partio logo pela menham muyto cedo; & como a estes Chins lhes releuaua verẽse fora do em que se vião, este, que era marido de hũa das duas que foraõ tomadas na barca da louça, & então ficauão no junco, se deu tanta pressa, que quando veyo ao meyo dia tornou com a reposta escrita nas costas da carta, & assinada por todos cinco, em que breuemente lhe relatauaõ a cruel prisaõ em que os tinhaõ, & que sem falta nenhũa os auião de matar por justiça, pelo que lhe pedião pelas chagas de nosso Senhor Iesu Christo que os não deixasse aly perecer ao desemparo, & que lhe lembrasse sua fè & verdade, pois, como sabia, por seu respeito vieraõ ter a aquelle triste estado, & outras piedades a este modo, como de homẽs que estauão catiuos em poder de gente cruel & fraca como saõ os Chins.
  12. [779](Cap. 65) cõ as quatro barcaças que tinha tomado, & foy surgir em seis braças & meya pegado cos muros da cidade: & amainando as vellas sem salua nẽ estrondo de artilharia, pós bandeyra de veniaga ao custume dos Chins, paraque com as mostras destas pazes lhe não ficassem nenhũs comprimẽtos por fazer, inda que sabia, que segundo isto da parte do Mandarim estaua danado, que nenhũa cousa daquellas lhe auia de aproueitar: daquy lhe tornou a mandar outro recado com promessa de mais interesse pelos catiuos, & cumprimentos de muytas amizades, a que o perro se indinou de tal maneyra, que mandou aspar o coitado do Chim, & mostralo do muro a toda a armada, com a qual vista Antonio de Faria acabou de perder as esperanças que ainda algũs lhe fazião ter; & crecendo com isto a colera aos soldados, lhe disseraõ, que pois tinha assentado de sayr em terra, não esperasse mais, porque seria dar tempo aos inimigos para ajuntarem muyta gente: elle parecendolhe bem este conselho, se embarcou logo com todos os que estauão determinados para este feito, que ja estauão prestes para isso, & deixou recado nos juncos que não deixassem nunca de tirar aos inimigos & á cidade, onde vissem mayores ajuntamentos de gente, porem isto auia de ser em quanto elle não andasse trauado com elles.
  13. [844](Cap. 70) E com esta ordem duraria este banquete perto de duas horas, nas quais ouue tambem seus entremeses de autos hum Chim & outro Portuguez.
  14. [850](Cap. 70) E como Antonio de Faria era naturalmente muyto curioso, & não lhe faltaua também cubiça, se abraçou logo tãto co parecer deste Chim, que só por este seu dito, sem outro mais testemunho, determinou de se por a todo o risco & fazer esta viagem, sem nesta parte querer tomar outro conselho de ninguem, de que algũs seus amigos se escandalizaraõ algum tanto, & não sem razão.
  15. [858](Cap. 71) E por Antonio de Faria se temer de poder ser sentido, & lhe certificarem que se o fosse não poderia saluarse por nenhum modo, assentou de se tornar daly; porem o Similau contrariou este parecer de todos, & lhe disse, não me pode vossa merce inda agora arguyr de peccado, nẽ nenhum outro de quantos vaõ na cõpanhia, porque em Liampoo vos disse publicamente na consulta geral que se fez na igreja perante mais de cem Portugueses o grandissimo risco em que todos nos punhamos, & eu, por ser Chim & Piloto, muyto mais que todos, porque a vossas merces não lhes farião mais que darlhe hũa morte, mas a mym duas mil, se tantas se pudessem dar, pelo que està claro que me he necessario & muyto forçado não vos ser tredro, mas muyto leal, como sou & serey sempre, assi nesta viagem como em tudo o mais, a pesar dos murmuradores que com vossa merce me tem mexiricado.
  16. [923](Cap. 76) Caminhando Antonio de Faria para a irmida que tinha diante, co mayor silencio que podia, & não sem algum receyo, por não saber atè então o em que se tinha metido, leuando todos o nome de Iesu na boca, & no coraçaõ, chegamos a hum terreyro pequeno que estaua diante da porta, & inda ate quy não ouuemos vista de pessoa nenhũa, & Antonio de Faria, que hia sempre diante com hum montante nas mãos, apalpou a porta, & a sintio fechada por dentro, & mãdando a hũ dos Chins que estaua junto com elle, que batesse, elle o fez por duas vezes, & de dentro lhe foy respondido, seja louuado o Criador que esmaltou a fermosura dos Ceos, rodee por fora, & saberey o que quer: o Chim rodeou a irmida, & entrou nella por hũa porta trauessa, & abrindo a em que estaua Autonio de Faria, elle com toda a gente entrou dentro na irmida, & achou dentro nella hum homem velho, que ao parecer seria mais de cẽ annos, com hũa vestidura de damasco roxo muyto comprida, o que no seu aspeito parecia ser homẽ nobre, como despois soubemos que era, o qual em vendo o tropel da gente, ficou tão fora de sy que cahio de focinhos no chão, & tremendo de peis & de maõs, não pode por então fallar palaura nenhũa, porem passado hum grande espaço em que a alteraçaõ deste sobresalto ficou quieta, & elle tornou sobre sy, pondo os olhos em todos, com rosto alegre & palauras seueras, preguntou que gente eramos, ou que queriamos; o interprete lhe respondeo por mandado de Antonio de Faria, que elle era hum Capitão daquella gente estrangeyra natural do reyno de Sião, & que vindo de veniaga num junco seu com muyta fazenda para o porto de Liampoo, se perdera no mar, do qual se saluara milagrosamente com todos aquelles homẽs que aly trazia comsigo, & que porque prometera de vir em romaria a aquella terra santa a dar louuores a Deos pelo saluar do grande perigo em que se vira, vinha agora a cũprir sua promessa, & juntamente lhe vinha pedir a elle algũa cousa de esmola com que se tornasse a restaurar de sua pobreza, & que elle lhe protestaua que daly a tres annos lhe tornaria dobrado tudo o que agora tomasse.
  17. [1008](Cap. 83) Porem as que mais gosto mostraraõ disto foraõ as irmãs suas filhas, porque em quanto comemos tiueraõ muytos passatempos de bõs ditos com seu irmão quando viraõ que comiamos com as maõs, porque em todo aquelle imperio Chim se não costuma comer com a mão, como nòs fazemos, senão com dous paos feitos como fusos.
  18. [1020](Cap. 85) Embarcados nós da maneyra que tenho dito, fomos aquelle dia ja quasi noite dormir a hũa villa grande que se chamaua Potimleu, & na cadea della estiuemos noue dias, por causa das muytas chuuas que ouue na conjunção daquella lũa noua, onde quiz nosso Senhor que achamos preso hum homem Alemão, que nos agasalhou com muyta caridade, & preguntandolhe nos na lingoa do Chim (com a qual nos entendiamos com elle) donde era natural, ou como viera aly ter?
  19. [1072](Cap. 89) Ao quarto dia da nossa viagem chegamos a hũa boa cidade que se chamaua Pocasser, mayor que Cantão duas vezes, & muyto bem cercada de muro de cantaria muyto forte, com torres & baluartes quasi a nosso modo, & hum caiz na frontaria do rio, quanto dezia o rosto do muro, de mais de dous tiros de falcão de comprido, todo fechado com duas ordẽs de grades de ferro, com suas entradas de portas muyto fortes para seruintia da gente, & descarga dos juncos, & outras embarcaços que continuamente aly carregauão de todas as mercadarias para diuersas partes do reyno, principalmente de cobre, açucar, & pedra hume, de que ha grandissima copia, & no meyo de hum grande terreyro, quasi no cabo de toda a cidade està hum castello muyto forte que tem tres baluartes, & cinco torres, em hũa das quais, que era a mais alta, nos disseraõ os Chins que o pay deste Rey tiuera preso hum Rey da Tartaria noue annos, o qual ahy morrera de peçonha que os seus mesmos vassallos lhe mandarão dar, por não darem por elle o resgate que o Rey Chim pedia.
  20. [1095](Cap. 90) Espantados nòs todos de ver este letreyro, pregũtamos que cousa era aquella, aque hum Chim que parecia mais honrado que os outros que estauão presentes respondeo, esse homem que ahy jaz enterrado veyo aquy ha quarẽta annos por Embaixador de hum Rey que se dezia Malaca, a pedir socorro ao filho do Sol contra hũa gente de terra sem nome, que do cabo do mũdo viera por mar & lhe tomara Malaca, com outras particularidades de medos increiueis que estão escritos num liuro impresso que disso se fez.
  21. [1113](Cap. 91) aque nós todos em o vendo, pondo os joelhos em terra co deuido acatamẽto, & algũs com as lagrimas nos olhos respondemos que sy, a que ella dando hum grito, & leuantando as mãos para o Ceo disse alto, Padre nosso que estas nos Ceos, santificado seja o teu nome, & isto disseo na lingoagem Portuguesa, & tornando logo Chim, como que não sabia mais do Portuguez que estas palauras, nos pedio muyto que lhe dissessemos se eramos Christaõs, aque todos respondemos que sy, & tomãdolhe todos juntos o braço em que tinha a Cruz a beijamos, & dissemos tudo o que ella deixara por dizer da oração do Padre nosso, porque soubesse que lhe falauamos verdade.
  22. [1127](Cap. 92) Donde teue principio a origem & fundamento deste imperio Chim, & donde procederão os primeyros que o pouoarão.
  23. [1131](Cap. 92) Destas duas cidades direy o que ahy nos contarão, & eu despois algũas vezes ouuy, porque se saiba a origem & fundamento deste imperio Chim, ja que os escritores antigos atègora não derão nenhũa razão disto.
  24. [1159](Cap. 94) Desta maneyra que breuemẽte tenho contado, se fundou esta cidade, & se pouoou este imperio Chim por este principe filho da Nancaa chamado Pequim, que era o mais velho de todos.
  25. [1162](Cap. 94) Este imperio Chim se lé que foy sempre corrẽdo por direitas successoẽs de hũs Reys nos outros desde aquelle tẽpo atè hũa certa idade, que, segundo parece pela nossa conta, foy no anno do Senhor de mil & cento & treze, & então foy esta cidade do Pequim entrada de inimigos, & assolada, & posta por terra vinte & seis vezes, mas como ja neste tẽpo a gente era muyta, & os Reys muyto ricos, dizem que o que então reynaua, que tinha por nome Xixipaõ, a cercou toda em roda da maneyra que agora está em vinte & tres annos, & outro Rey por nome Iumbileytay, que era seu neto, fez a segunda cerca daly a oitenta & dous annos, as quais ambas tem de circuito sessenta legoas, trinta cada hũa, cõuem a saber, dez de comprido, & cinco de largo, das quais cercas ambas se lé que tem mil & sessenta baluartes redõdos, & duzentas & quarenta torres muyto fortes largas & altas, com seus curucheos de diuersas cores, que lhe dão muyto lustro, & em todas estão leoas dourados sobre bollas ou pomas redondas, os quais saõ a diuisa ou as armas do Rey da China, pelos quais quer dar a entender que he elle leão coroado no trono do mũdo.
  26. [1167](Cap. 95) Ia que tratey da origem & fundação deste imperio Chim, & da cerca desta grande cidade do Pequim, tambem me pareceo razão tratar o mais breuemente que puder de outra cousa não menos espantosa cada hũa destas.
  27. [1168](Cap. 95) Leese no quinto liuro da situação de todos os lugares notaueis deste imperio, ou monarchia, ou como lhe quiserem pòr o nome (porque na verdade todo o que for grande lhe cabe) que hum Rey por nome Crisnagol dacotay, que segundo parece pela cõta do liuro por onde esta gente custuma fazer a conta das suas eras, reynou no anno do Senhor de quinhentos & vinte & oito, vindo a ter guerra co Tartaro por differenças que teue com elle sobre o estado de Xenxinapau, que pelo sertão confina co reyno dos Lauhós, o desbaratou, & ficou senhor do campo, porem o Tartaro refazendose logo de outro mayor poder que ajuntou por meyo de hũa liga & confederação que fez cõ outros Reys seus amigos, tornou sobre o Chim dahy a oito annos, & se affirma que lhe tomou trinta & dous lugares notaueis, dos quais foy hũ a grande cidade de Ponquilor.
  28. [1169](Cap. 95) E temẽdo o Chim que não se lhe pudesse defender, veyo cõ elle em cõcerto de paz, cõ algũas cõdiçoẽs em que o Chim desistio do direyto sobre que era o litigio, & lhe deu mais dous mil picos de prata para paga da gente forasteyra que trazia comsigo, & com isto ficou o negocio pacifico & quieto por espaço de cinquenta & dous annos, porque assi o diz a mesma historia.
  29. [1176](Cap. 95) E em todas estas trezẽtas & quinze legoas não ha mais entradas que sós cinco que os rios da Tartaria fazem por estas partes, pelos quais decendo com impetuosa corrente, com que cortão por este sertão espaço de mais de quinhentas legoas, se vão meter no mar da China & da Cauchenchina, & hum destes, porque he mais poderoso que os outros, vay sayr no reyno Sornau (aque o vulgar chama Sião) pela barra de Cuy, & em todas estas cinco entradas o Rey Chim tem hũa força, & o Tartaro outra, em cada hũa das quais o Chim tem sete mil homẽs continuos aque paga muyto grandes soldos, de que os seis mil saõ de pè, & os mil de cauallo, & a mayor parte desta gente he estrangeyra, como saõ Mogores, Pancrùs, Champas, Coraçones, & Gizares da Persia, & outros de outras muytas terras & reynos que pelo amago deste sertão habitão, porque na verdade os Chins não saõ muyto homẽs de guerra, porque alem de serem pouco praticos nella, saõ fracos de animo, & algum tanto carecidos de armas, & de todo faltos de artilharia.
  30. [1188](Cap. 96) O qual edificio fizeraõ antigamente os Chins quando senhorearaõ a India, que foy, segundo parece pela sua conta, desdo anno do Senhor de mil & treze até o de mil & setenta & dous, pela qual conta se ve que a India esteue debaixo do imperio do Chim cinquenta & noue annos somente, porque o Rey successor do que a conquistou, que se chamaua Oxiuagão, alargou por sua vontade, por entẽder quanto sangue dos seus lhe custaua o pouco proueito que tiraua della.
  31. [1358](Cap. 105) Antes que conte o que passamos daquy por diante despois que nòs embarcamos com este Chim que nos leuaua a seu cargo, & nos daua boas esperanças de termos liberdade, me pareceo conueniente dar algũa pequena informação desta cidade do Pequim, que com verdade se pode chamar metropoli da Monarchia do mundo, & de algũas cousas que nella notey, assi da abastança, policia, & grandeza della, como do regimento & grande gouerno da sua justiça, & o admirauel modo que tem no prouimento de toda a Republica, & porque maneira se pagaõ os seruiços dos que jubilão na guerra, cõforme aos estatutos della, & outras cousas semelhantes a estas, ainda que confesso que me falta o milhor, que he saber & engenho para dar a entender o clima em que esta cidade jaz, & a altura dos graos em que està, que he cousa que eu cuydo que os doutos & curiosos desejaraõ de saber.
  32. [1509](Cap. 113) Tambem he razão que se saiba a grandissima ordem & marauilhoso gouerno que tem este Chim Rey gentio em prouer o seu reyno de mantimentos, paraque a gente pobre não padeça necessidades, & para isso direy o que disto se trata nas suas chronicas, que eu algũas vezes ouuy lér, escritas em letra de forma ao seu modo, que aos reynos & republicas Christãs pode ser exemplo, assi de caridade como de bom gouerno.
  33. [1556](Cap. 116) Eu, vendome assi só, & o companheyro leuado por força, me fuy ao mato a buscar o meu feixe de lenha como me era mandado, & tornando ja sobola tarde com elle âs costas, me sahio ao caminho hum homem velho vestido de hũas roupas de damasco preto, forradas de pelles de cordeyras brancas, o qual vinha só, & tanto que me vio se meteo para hũa azinhaga que aly fazia o mato, & á entrada della me esteue esperando, & vendo que eu ao prepassar não olhaua para elle, escarrou alto paraque eu o ouuisse, & eu ouuindo o escarro leuantey os olhos, & pondoos nelle, vy que me acenaua com a mão, como que chamaua por mym, eu auendo isto por cousa noua, lhe disse pela lingoa do Chim, potau quinay?
  34. [1561](Cap. 116) Eu então tornando mais em mym, me determiney yr saber o que era, ou o que queria, & encaminhando para onde elle estaua, co meu pao na mão, o fuy seguindo para dentro da azinhaga onde elle jâ a este tempo me estaua esperando, & chegando a elle, sem atè então cuydar delle outra cousa senão que era Chim, se me lançou aos peis, & com grandes soluços & muytas lagrimas começou a dizer: Bemdito & louuado seja o dulcissimo nome de nosso Senhor Iesu Christo, pois a cabo de tanto tempo em tamanho desterro permitio verẽ meus olhos homem Christão, que professasse a ley de meu Deos posto na Cruz.
  35. [1562](Cap. 116) Quãdo eu ouuy hũa cousa taõ noua, & tão lõge do que eu esperaua, fiquey tão sobressaltado, que afastandome rijo atras mais que pasmado, lhe disse alto: Eu te esconjuro da parte de nosso Senhor Iesu Christo que me digas quem és, a que elle cõ muytas mais lagrimas respõdeo, sou, irmão meu, hum pobre Christaõ Portuguez, por nome Vasco Caluo, irmão de Diogo Caluo que foy Capitão da nao de dom Nuno Manoel, natural de Alcouchete, que agora faz vinte & sete annos que nesta terra fuy catiuo com Tomé Pirez, que Lopo Soarez mandou por embaixador a este Rey Chim, que despois acabou desestradamente por hũ desarranjo de hum Capitão Portuguez.
  36. [1608](Cap. 119) Logo em chegando, a primeyra salua que se derão os de fora & os de dẽtro, foy de muytas frechadas, & de muytos arremessos de zargunchos, & de pedras, & de panellas de cal em pò, & algũas de fogo, em que se gastou quasi meya hora, & apos esta salua, logo os Tartaros sangraraõ a caua por seis ou sete partes, & entulhandoa com muyta presteza com faxina & terra, foraõ logo as escadas todas juntamente encostadas ao muro, que ja ficaua muyto baixo por causa do entulho, o Iorge Mendez foy o primeyro que subio pelas escadas, acompanhado de dous dos nossos, que como amoucos, hião determinados de morrerem, ou fazerem cousa com que se sinalassẽ, & prouue a nosso Senhor que lhe socedeo bem, assi por serem elles os que fizeraõ esta primeyra entrada, como por aruorarem o primeyro guiaõ, de que o Mitaquer com todos os mais que estauão com elle ficaraõ taõ espantados que dezião hũs para os outros, se o Rey desta gente cercara o Pequim como nòs o cercamos, o Chim perdera mais depressa a sua hõra do que lha nos fizemos perder.
  37. [1650](Cap. 122) El Rey mandou então que cessasse a musica dos estromentos, & disse ao Mitaquer, pregunta a essa gente do cabo do mundo se tem Rey, & como se chama a sua terra, & que distancia auerá della a esta do Chim em que agora estou, a que hum da nossa companhia em nome de todos respondeo, que a nossa terra se chamaua Portugal, cujo Rey era muyto grande, poderoso, & rico, & que della a aquella cidade do Pequim aueria distancia de quasi tres annos de caminho, de que elle fez hum grande espanto como homem que não tinha esta maquina do mundo por tamanha, & batendo tres vezes na coxa com hũa varinha que tinha na mão, & os olhos postos no Ceo como que daua graças a Deos, disse alto que todos o ouuirão, Iulicauão julicauão minaydotoreu pisinão himacor dauulquitaroo xinapoco nifando hoperau vuxido vultanitirau companoo foragrem hupuchiday purpuponi hincau, que quer dizer, ò criador, ò criador de todas as cousas qual de nós outros pobres formigas da terra poderâ comprender as marauilhas da tua grandeza?
  38. [1809](Cap. 133) E chamando então para jũto de sy hũa molher Lequia que era a interprete por quẽ se entendia co capitão Chim senhor do junco, lhe disse, pregunta ao Necodà, onde achou estes homẽs, ou com que titulo os traz comsigo a esta nossa terra de Iapão?
  39. [1813](Cap. 133) Nestas praticas gastou com nosco hum grande espaço, mostrando em todas as suas preguntas ser homem curioso & inclinado a cousas nouas, & se despidio de nós & do Necodâ Chim, que dos mais não fez muyto caso, dizendo, a menham me ide ver a minha casa, & me leuay hum grande presente de nouas desse grande mundo por onde andastes, & das terras que tendes visto, & o como se chamão, porque vos affirmo que essa só mercadaria comprarey mais a meu gosto que todas as outras, & com isto se tornou para terra.
  40. [1825](Cap. 134) Logo ao outro dia seguinte este Necodà Chim desẽbarcou em terra toda a sua fazenda como o Nautaquim lhe tinha mandado, & a meteo nũas boas casas que para isso lhe derão, a qual fazẽda toda se vendeo em tres dias, assi por ser pouca, como por que estaua a terra falta della, na qual este cossayro fez tanto proueito, que de todo ficou restaurado da perda das vinte & seys vellas que os Chins lhe tomarão, porque pelo preço que elle queria pòr na fazenda lha tomauão logo, de maneira que nos confessou elle que com sós dous mil & quinhentos taeis que leuaua de seu fizera aly mais de trinta mil.
  41. [1887](Cap. 137) Neste tempo, sendo eu auisado por cartas dos dous Portugueses que ficaraõ em Tanixumaa, que o cossayro Chim com quem aly vieramos, se fazia prestes para se partir para a China, dey conta disso a el Rey, & lhe pedy licença para me tornar, a qual me elle deu muyto leuemente, & com palauras de muytos agredecimentos pela cura de seu filho.
  42. [1943](Cap. 140) E tendo jâ determinado de nos mandar soltar, assi pelo que este homem lhe tinha dito, como pelo que o Broquem lhe escreuera, chegou ao porto hum Chim cossayro com quatro jũcos, a que el Rey daua colheyta em sua terra, por lhe dar a metade das presas que trouxesse da China, & por esta causa era muyto valido com elle & com todos os grandes da terra, o qual por nossos peccados era o mayor inimigo que os Portugueses tinhão naquelle tempo, por hũa briga que os nossos tiuerão cõ elle o anno dantes no porto de Lamau, na qual foy capitão hum Lançarote Pereyra natural de Ponte de Lima, em que lhe queimaraõ tres juncos, & lhe mataraõ duzentos homẽs.
  43. [2682](Cap. 180) E fazendose à vella nos leuaraõ a hũa aldea que estaua daly doze legoas, por nome Cherbom, onde nos venderaõ a todos oito, seis Portugueses, & hum moço Chim, & outro cafre por treze pardaos, que da nossa moeda saõ tres mil & nouecentos reis a hũ mercador Gentio da ilha dos Selebres, em cujo poder estiuemos vinte & seis dias, & nos tratou muyto bem assi de comer como de vestido, & despois nos vendeo a el Rey de Calapa por dezoito mil reis, o qual Rey vsou cõ nosco de tanta magnificencia que liuremente nos mandou para o porto da Çunda onde estauão tres naos de Portugueses, de que era capitão mòr hum Ieronymo Gomez Sarmento, que a todos nos fez muyto gasalhado, & nos proueo largamente de tudo o necessario, até que se partio para a China.
  44. [3182](Cap. 208) Com este despacho chegou o padre a Malaca o derradeyro dia de Mayo do mesmo anno de 49. & se deteue ahy alguns dias pelo mao auiamento que se lhe deu, mas em fim despois de passar ahy em Malaca muytos trabalhos, se embarcou em dia de S. Ioaõ do mesmo anno ao Sol posto em hum junco pequeno de hum Chim, que se dezia o Necodà ladraõ, & ao outro dia pela menham se fez á vella, & se partio, na qual viagem tambem passou assaz de trabalho, de que me escuso dar relaçaõ, porque me parece desnecessario escreuer isto taõ miudamente, nem farey mais que tocar breuemente o que for mais importante a meu intento conforme a pouca possibilidade do meu fraco engenho.
  45. [3400](Cap. 215) Passados algũs dias despois de a nao aquy estar surta, & os mercadores entenderem em fazerem suas fazendas, & estar tudo pacifico, & a mercancia corrente, desejando este seruo de Deos de effeituar em parte, o que naõ pudera em todo, tratou com hum mercador Chim dos honrados do porto, que se chamaua Chepocheca, que quando se fosse o quisesse leuar à cidade, & ainda que nisto ouue algũs inconuenientes de varios pareceres dos Portugueses, por verem que hia assi tão desatado, & sem cousa que pudesse dar autoridade ao que dissesse, todauia despois de bem praticada hũa cousa & outra, se assentou com este mercador por esta maneyra, que o padre lhe desse duzentos taeis, que saõ trezentos cruzados da nossa moeda, & que auia de yr daly da nao ate a cidade sempre cos olhos tapados porque se caso fosse que por elle ser estrangeyro, a justiça entendesse nelle, como estaua certo que auia de ser, & pondoo a tormento lhe dissessem que confessasse quem o aly trouxeraõ elle o não soubesse dizer, nem conhecesse quem o aly trouxera, porque se temia que se fosse descuberto lhe mãdassem por isso cortar a cabeça, o qual o padre aceitou com todos estes partidos, sem por diante receyo de cousa algũa, nem o espantarem os medos que todos geralmente lhe punhaõ, por estar entendido delle quão desejoso estaua de receber martyrio por Deos nosso Senhor.

China 1(1), 21(1), 22(1), 25(1), 26(2), 35(1), 36(1), 41(1), 43(1), 44(3), 45(2), 46(2), 47(1), 51(1), 52(1), 55(1), 57(2), 58(1), 62(1), 63(2), 64(2), 65(1), 66(1), 67(3), 70(2), 73(2), 77(1), 85(1), 88(3), 89(2), 90(1), 91(2), 92(2), 94(3), 95(4), 96(1), 97(1), 98(1), 99(6), 101(1), 103(1), 105(5), 107(1), 108(2), 110(1), 111(5), 112(2), 114(2), 116(1), 117(1), 121(1), 122(2), 123(2), 124(1), 127(1), 128(1), 129(1), 131(1), 132(2), 133(3), 134(1), 135(1), 136(1), 137(3), 140(3), 143(4), 151(1), 153(1), 158(1), 165(1), 166(1), 171(1), 172(1), 179(4), 180(1), 181(2), 183(1), 185(1), 189(3), 202(4), 203(2), 208(4), 210(1), 211(1), 213(1), 214(3), 215(16), 216(2), 217(1), 220(3), 221(4), 222(2).

Nas orações: 3, 241, 262, 297, 302, 306, 404, 414, 492, 519, 524, 527, 533, 540, 541, 560, 575, 621, 630, 663, 689, 690, 705, 752, 756, 769, 770, 787, 808, 809, 814, 841, 849, 881, 883, 941, 1017, 1047, 1048, 1066, 1075, 1083, 1090, 1115, 1124, 1132, 1134, 1151, 1157, 1162, 1166, 1170, 1176, 1180, 1207, 1233, 1252, 1257, 1269, 1273, 1275, 1295, 1317, 1357, 1371, 1380, 1381, 1403, 1423, 1475, 1479, 1480, 1485, 1493, 1494, 1496, 1500, 1519, 1531, 1564, 1573, 1629, 1640, 1672, 1673, 1688, 1716, 1744, 1751, 1787, 1794, 1801, 1815, 1817, 1819, 1832, 1846, 1860, 1887, 1889, 1918, 1940, 1943, 1981, 1985, 1988, 1991, 2141, 2172, 2243, 2423, 2449, 2577, 2581, 2660, 2664, 2665, 2666, 2682, 2684, 2686, 2720, 2767, 2820, 2824, 2832, 3058, 3059, 3073, 3077, 3187, 3198, 3200, 3229, 3247, 3314, 3346, 3362, 3371, 3372, 3373, 3375, 3377, 3380, 3381, 3382, 3389, 3401, 3407, 3411, 3426, 3463, 3468, 3472, 3474, 3485, 3495, 3503, 3513.

  1. [3](Cap. 1) Mas por outra parte quãdo vejo que do meyo de todos estes perigos & trabalhos me quis Deos tirar sempre em saluo, & porme em seguro, acho que não tenho tanta razão de me queixar por todos os males passados, quãta de lhe dar graças por este só bẽ presente, pois me quis conseruar a vida, paraque eu pudesse fazer esta rude & tosca escritura, que por erança deixo a meus filhos (porque só para elles he minha tenção escreuella) paraque elles vejão nella estes meus trabalhos, & perigos da vida que passei no discurso de vinte & hũ ãnos em que fuy treze vezes catiuo, & dezasete vendido, nas partes da India, Etiopia, Arabia felix, China, Tartaria, Macassar, Samatra, & outras muitas prouincias daquelle oriental arcipelago, dos confins da Asia, a que os escritores Chins, Siames, Gueos, Elequios nomeão nas suas geografias por pestana do mũdo, como ao diante espero tratar muito particular, & muito diffusamente, & daqui por hũa parte tomem os homẽs motiuo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem de fazer o que deuem, porque não ha nenhũs, por grandes que sejão, com que não possa a natureza humana, ajudada do fauor diuino & por outra me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por vsar comigo da sua infinita misericordia, a pesar de todos meus peccados, porque eu entendo & cõfesso que delles me nacerão todos os males que por mim passarão, & della as forças, & o animo para os poder passar, & escapar delles com vida.
  2. [241](Cap. 21) E porque esta nossa lhe importa a elle mais que todas as outras para este seu danado proposito, nola manda agora tomar, a fim de continuar neste estreito com suas armadas, atè que de todo (como os seus publicamente ja dizem) vos tolha o comercio da droga de Banda, & Maluco, & o trato da nauegaçaõ dos mares da China, Sunda, Borneo, Timor, & Iapaõ, como temos sabido pelo cõtrato que agora nouamente tem feito co Turco, por meyo do Baxà do Cayro, que para isto tomou por seu valedor, o qual lhe tem dado grandes esperanças de ajuda, como pelas cartas que eu trouxe tereis ja sabido.
  3. [262](Cap. 22) Passados cinco dias despois de eu ser aly chegado, me mandou el Rey chamar, & me perguntou quando me queria yr, & eu lhe respondi, que quando sua alteza me mandasse, mas que folgaria que fosse logo, porque me auia o Capitão de mãdar à China com sua fazenda: a que elle respondeo, tẽs muyta razão, & tirãdo do braço duas loyas douro, que saõ manilhas mociças tiradas pela fieyra, que pesauaõ ambas oitenta cruzados, mas deu, dizendome, rogote que me não tenhas por escasso por te dar tão pouco, porque te affirmo que meus pensamentos saõ agora, & foraõ sempre, desejar de ter muyto para poder dar muyto.
  4. [297](Cap. 25) Ao mercador que me trouxe mãdou Pero de Faria dar sessenta cruzados, & duas peças de damasco da China, & lhe mandou em nome de el Rey quitar os direitos de sua fazẽda que deuia na alfandega, que seria quasi outro tanto, & em cousa nenhũ lhe foy feito nenhum agrauo, de que elle ficou muyto satisfeito & contente, & se deu por bẽ pago da veniaga que comigo fizera.
  5. [302](Cap. 26) Porem antes que trate de outra cousa me pareceo necessario dar relaçaõ do fim que teue esta guerra dos Achẽs, & em que parou o aparato da sua armada, paraque fique entendida a razão do pronostico, & do receyo em que tantas vezes cõ gemidos & suspiros tenho apontado por parte da nossa Malaca, tão importãte ao estado da India, quanto (ao que parece) esquecida daquelles de quẽ com razão diuera ser mais lẽbrada, porque entẽdo que por via de razão, de duas ha de ser hũa, ou destruyrse este Achẽ, ou por seu respeito virmos nos a perder toda a banda do Sul, como he Malaca, Banda, Maluco, Çunda, Borneo, & Timor, a fora no Norte, a China, Iapaõ, Lequios, & outras muytas terras & portos em que a nação Portuguesa, por seus tratos & comercios tem mais importante & mais certo remedio de vida que em todas as outras quantas saõ descubertas do cabo de boa esperança para diante, cuja grandeza he tamanha que se estende a terra por costa em distãcia de mais de tres mil legoas, como se poderâ ver nos mapas & cartas que disso tratão, se sua graduação estiuer na verdade.
  6. [306](Cap. 26) Este tyrãno Rey Achem foy aconselhado pelos seus, que se queria tomar Malaca, por nenhũa maneyra o poderia fazer cometendoa de mar em fora, como ja por seis vezes tinha tentado no tẽpo de dom Esteuão da Gama, & de outros Capitaẽs atras passados, senão com se fazer primeyro senhor deste reyno de Aarù, & se fortificar no rio de Paneticão, donde as suas armadas podiaõ continuar de mais perto a guerra que lhe pretendia fazer, porque então ficaua muyto pouco custoso fechar os estreitos de Cincapura & de Sabaom, & tolher que as nossas naos passassẽ ao mar da China, & Çũda, & Bãda, & Maluco, por cujo respeito poderia tambem facilmente auer á mão toda a drogaria daquelle arcipelago, para ficar assi effeituado o nouo contrato que por meyo do Baxà do Cayro tinha assẽtado co Turco.
  7. [404](Cap. 35) E daly a noue dias sendo auisados que no rio de Calantão, que era daly dezoito legoas, estauão tres juncos da China muyto ricos, de mercadores Mouros naturais do reyno de Paõ, que cõ tempo contrario se vieraõ aly meter, ordenaraõ logo de armarem sobre elles.
  8. [414](Cap. 36) Avendo ja vinte & seis dias que eu estaua aquy em Patane acabãdo de auiar hũa pouca de fazenda que viera da China para me tornar logo, chegou hũa fusta de Malaca, de que vinha por Capitão hum Antonio de Faria de Sousa, o qual, por mandado de Pero de Faria, vinha a fazer aly certo negocio com el Rey, & assentar com elle de nouo as pazes antiguas que tinha com Malaca, & agradecerlhe o bom tratamento que no seu reyno fazia aos Portugueses, & outras cousas a este modo de boa amizade, importantes ao tempo, & ao interesse da mercancia, que na verdade era o que mais se pretendia que tudo, porem esta tenção vinha rebuçada com hũa carta a modo de embaixada, acompanhada de hum presente de boas peças, mandadas em nome del Rey nosso Senhor, & â custa de sua fazenda, como he custume fazerem os Capitaẽs todos naquellas partes.
  9. [492](Cap. 41) E fez seu caminho ao longo da costa do reyno Champaa, pela não esgarrar cos vẽtos lestes, que o mais do tempo cursaõ naquelle clima muyto tempestuosos, principalmente nas conjunçoẽs das lũas nouas & cheyas; & logo a sesta feira seguinte sendo tanto auante como o rio a que os naturaes da terra chamão Tinacoreu, & os nossos a varella, lhe pareceo bem por conselho de algũs entrar dentro nelle, para ahy tomar informação de algũas cousas que desejaua saber, & para tambem ver se achaua ahy nouas do Coja Acem que hia buscar, porque todos os juncos de Sião, & de toda a costa do Malayo que nauegauão para a China, custumauão fazer suas escallas neste rio, & ás vezes vendem bem suas fazendas a troco de ouro, & Calambaa, & marfim, de que em todo este reyno ha muyto grande quantidade.
  10. [519](Cap. 43) Chegado este homẽ jũto de Antonio de Faria, vendo elle que era brãco como qualquer de nós, lhe perguntou se era Turco ou Parsio, ao que elle respondeo que não, mas que era Christão, natural de monte Sinay, onde estaua o corpo da bemauenturada santa Caterina, a isto lhe replicou Antonio de Faria, que pois era Christão como dezia, como não andaua entre Christãos, a que elle respondeo que era mercador, & de boa progenie, por nome Tome Mostãgue, & que estãdo surto com hũa nao sua no porto de Iudaa no anno de 1538. o Soleimão Baxà Visorrey do Cayro lha mandara tomar, como fizera a mais outras sete, para trazerem mantimẽtos & muniçoẽs para fornimento da armada das sessenta galês em que vinha por mandado do Turco, para restituyr o Soltão Baudur no reyno de Cambaya, de que o Mogor naquelle tempo o tinha desapossado, & lançar os Portugueses fora da India, & que vindo elle na mesma nao para a beneficiar & arrecadar o seu frete que lhe tinhão prometido, os Turcos, alem de lhe mentirem em tudo como sempre costumão, lhe tomarão sua molher, & hũa filha pequena que trazia comsigo, & perante elle as deshonraraõ publicamente, & porque hum filho seu, chorando se lhes queixou deste grande mal, lho lançaraõ viuo ao mar, atado de pees & de mãos, & a elle meteraõ em ferros, & lhe dauão todos os dias muytos açoutes, & lhe tomarão sua fazenda, que eraõ mais de seis mil cruzados, dizẽdo, que não era licito lograr beẽs de Deos, senão os Massoleymoẽs, justos & santos assi como elles; & porque neste meyo tempo lhe faleceraõ a molher & a filha, elle como desesperado se lançara hũa noite ao mar na barra de Diu, com aquelle moço seu filho, donde por terra fora ter a Çurrate, & dahy se viera ter a Malaca em hũa nao de Garcia de Saa Capitão de Baçaim, donde por mandado de dõ Esteuão da Gama fora à China com Christouão Sardinha, que fora feitor de Maluco, o qual estando hũa noite surto em Cincaapura, o Quiay Taijão senhor daquelle junco matara cõ mais vinte & seis Portugueses, & que a elle por ser bombardeyro dera a vida, & o trazia comsigo por seu Cõdestabre.
  11. [524](Cap. 44) Como Antonio de Faria chegou â bahia de Camoy, onde se faz a pescaria das perolas del Rey da China.
  12. [527](Cap. 44) E concluydo por fim de todos estes varios pareceres, no milhor & mais seguro, mandou leuantar bandeyra de veniaga ao custume da China, pelo que logo vierão da terra duas lanteaas, que saõ como fustas com muyto refresco, & os que vinhão nellas, despois de fazerẽ suas saluas, entraraõ dentro no junco grande em que vinha Antonio de Faria, porem vendo nelle gente que atê então nunca aly tinhão visto, ficarão muyto espantados, & perguntãdo que homẽs eramos, ou que queriamos, lhes foy respõdido que eramos mercadores naturais do reyno de Sião, & que vinhamos aly a fazer fazenda cõ elles, se para isso nos dessem licença, a que hum homem velho que parecia de mais autoridade, respondeo que sy, mas que aquelle lugar onde estauamos não era o onde ella se fazia, se não outro porto mais adiante que se chamaua Guamboy, porque nelle estaua a casa do contrato da gente estrangeyra que a elle vinha, como em Cantão, & no Chincheo, & Lamau, & Comhay, & Sumbor, & Liampoo, & outras cidades que estauão ao longo do mar para desembarcaçaõ dos nauegantes que vinhão de fora, pelo qual lhe aconselhauão como a cabeça dos membros que trazia debaixo do seu gouerno, que logo se fosse daly, porque como aquelle lugar não seruia de mais que de pescaria de perolas para o tisouro da casa do filho do Sol, na qual por regimento do Tutão de Comhay, que era o supremo Gouernador de toda aquella Cauchenchina, não podião andar mais que sós aquellas barcaças que para isso estauão determinadas, todo o outro nauio que se achaua aly mais, era logo por pena de justiça queimado com toda a gente que nelle vinha.
  13. [533](Cap. 44) E tornandolhes a perguntar de que tamanho era aquella ilha de Ainão de que tantas grandezas se contauão, lhe responderaõ elles, dizenos tu primeyro quẽ es, ou a que vẽs, & então te responderemos a tuas preguntas, porque te certificamos em ley de verdade que nunca em nossos dias vimos tanta gente manceba em nauios de veniaga como esta que aquy trazes comtigo, nem tão polida & bem tratada, pelo que nos parece que ou na sua terra as sedas da China saõ tão baratas que não valem nada, ou as elles tomarão tanto de graça, que derão por ellas muyto menos do que valião, porque vemos que por seu passatempo ao lãço de tres dados arremessão hũa peça de damasco tanto sem piedade como homẽs aquem ella custou pouco; ao que Antonio de Faria se sorrio algum tanto secamente, porque entendeo que ja elles atinauão que erão furtadas, & lhes disse que elles fazião aquillo como homẽs mancebos, & filhos de mercadores ricos, que por serem moços estimauão as cousas em menos do que valião; a que elles dissimulando o que ja entendião, responderão, assi parece que deue ser como dizes.
  14. [540](Cap. 45) E tomando por seu valedor ao Rey da China se fez seu tributario em quatrocentos mil taeis por anno, que de moeda estrangeyra saõ seiscentos mil cruzados; & o Rey Chim se lhe obrigou por isto ao defender de seus inimigos todas as vezes que lhe cumprisse.
  15. [541](Cap. 45) Esta conformidade durou entre elles por tempo de treze annos, dentro dos quais o Rey dos Cauchins foy cinco vezes desbaratado em campo, & falecendo o Hoyha Paguarol sem filho herdeyro, por este beneficio que em sua vida recebera do Rey da China, o declarou em seu testamento por seu legitimo herdeyro & successor, pelo qual de então ategora, que saõ duzentos & trinta & cinco annos, esta ilha de Ainão ficou metida no cetro deste grande Chim.
  16. [560](Cap. 46) Apos isto perguntado hum dos dous Portugueses, porque o outro estaua como morto, cujos filhos erão aquelles mininos, & como vierão ter ao poder daquelle ladraõ, & como se elle chamaua, respondeo que o ladraõ tinha dous nomes, hum de Christão, & outro de gentio, o de gentio porque se então nomeaua era Necodà Xicaulem, & o de Christão era Francisco de Saa, o qual auia cinco annos que em Malaca se fizera Christão, sendo Garcia de Saa Capitão da fortaleza, & que porque elle fora seu padrinho do bautismo lhe pusera aquelle nome, & o casara com hũa moça orfam mestiça muyto gentil molher, & filha de hum Portugues muyto honrado a fim de o fazer mais natural da terra, & que indo no Anno de 1534 para a China em hum junco seu muyto grãde, no qual leuaua vinte Portugueses dos mais honrados, & ricos da fortaleza, & tambem sua molher, chegando à ilha de Pullo Catão fizera ahy agoada, com tençaõ de passar ao porto do Chincheo, & auendo ja dous dias que ahy estaua, como a esquipaçaõ do junco era toda sua, & Chim como elle, se leuantaraõ hũa noite estando os Portugueses dormindo, & com as machadinhas que traziaõ, os mataraõ a todos, & aos seus moços, sem a nenhum que tiuesse nome de Christaõ se dar a vida, & cometeo à molher que se fizesse gentia, & adorasse hum idolo que o seu Tucão mestre do junco leuaua nũa arca, & que assi desatada da ley Christam a casaria com elle, porque o Tucaõ lhe daua por isso hũa irmam sua que aly leuaua comsigo, tambem gentia & China como elle, & porque a molher não quisera adorar o idolo, nem cõsentir em tudo o mais que lhe elle dezia, o perro lhe dera com hũa machadinha na cabeça, com que logo lhe lançara os miolos fora.
  17. [575](Cap. 47) Sendo estes recolhidos & postos a bõ recado, Antonio de Faria foy demãdar as outras tres lanteaas que estauaõ surtas, que seria daly pouco mais de hum quarto de legoa, & dando na primeyra em que vinha a noiua a abalroou, porẽ nella não ouue resistencia algũa, porque não trazia gente de peleja, senão somente marinheyros que a remauão, & hũs seis ou sete homẽs que parecião honrados, segundo o trajo de suas pessoas, parentes da coitada da noiua que a vinhão acompanhando, & dous moços pequenos seus irmãos muyto aluos & bẽ assombrados, & toda a mais gẽte eraõ molheres ja de dias que sabião tanger, as quais nos semelhãtes tẽpos se alugaõ por dinheiro ao custume da China, as outras duas lanteaas sintindo a reuolta, largaraõ as amarras por mão, & fugirão a remo & a vella com tanta pressa, que parecia que o diabo hia nellas, mas nem isso bastou para deixarmos de tomar ainda hũa dellas, assi que das quatro nos ficaraõ as tres.
  18. [621](Cap. 51) E perguntado se matara mais Portugueses, ou dera fauor para isso, respondeo que não, mas que estando auia dous annos no rio do Choaboquec na costa da China, fora ahy ter hum junco grande com muytos Portugueses, de que era Capitaõ hum homem muyto seu amigo que se chamaua Ruy Lobo, que dõ Esteuão da Gama Capitaõ de Malaca mandara de veniaga, o qual despeis de ter feita sua fazenda se sayra do porto embandeirado por yr muyto rico, & que auendo ja cinco dias que era partido, lhe abrira o junco hũa agoa muyto grossa, & não a podendo vencer, lhe fora forçado tornar a demandar o porto donde partira, & vindo com vento rijo infunado com todas as vellas, por chegar mais depressa, se lhe fora supitamẽte ao fundo, de que se saluara o Ruy Lobo cõ dezassete Portugueses, & algũs escrauos, & viera ter na Champana ao ilheo de Lamau sem vella, nem agoa, nem mantimento algum.
  19. [630](Cap. 52) Seguro debaixo de minha verdade ao Necodà, foaõ, paraque possa nauegar liuremente por toda a costa da China, sem ser agrauado de nenhum dos meus, cõ tanto que onde vir Portugueses os trate como irmãos, & assinauase ao pè, Antonio de Faria.
  20. [663](Cap. 55) Tomandose então conselho sobre o caminho que daly se faria, ou que ròta se seguiria, se para o Norte, se para o Sul, ouue sobre isto alguns pareceres bem diferentes, por fim dos quais se assentou que nos fossemos a Liampoo, que era hum porto adiante daly para o Norte duzentas & sessenta legoas, porque poderia ser que ao longo da costa nos melhorariamos doutra embarcaçaõ mayor & mais acomodada a nosso proposito, porque aquella era muyto pequena para taõ comprida viagem, & cõ receyos de tantas tempestades quantas causaõ as lũas nouas na costa da China, onde cõtinuamente se perdião muytos nauios.
  21. [689](Cap. 57) Partidos nos deste rio de Anay muyto bem apercebidos de tudo o necessario para a viagem que estaua determinado fazerse, pareceo bem a Antonio de Faria por conselho do Quiay Panjão, de que sempre fez muyto caso, pelo conseruar em sua amizade, yr surgir no porto do Chincheo, para ahy se informar pelos Portugueses que eraõ vindos da Çunda, de Malaca, de Timor, & de Patane, de algũas cousas necessarias a seu proposito, & se tinhão nouas de Liampoo, porque se soaua então pela terra que era la ida hũa armada de quatrocentos juncos, em que hião cem mil homẽs por mandado del Rey da China a prender os nossos que là residião dassẽto, & queimarlhe as naos, & as pouoaçoẽs, porque os não queria em sua terra, por ser informado nouamente que não eraõ elles gente taõ fiel & pacifica como antes lhe tinhaõ dito.
  22. [690](Cap. 57) Chegados nòs ao porto do Chincheo achamos ahy cinco naos de Portugueses que auia ja hũ mès que eraõ chegadas destas partes que disse, dos quais fomos muyto bem recebidos & agasalhados com muyta festa & contentamento, & despois que nos deraõ nouas da terra, & da mercancia, & da paz & quietaçaõ do porto, nos disseraõ que de Liampoo nao sabião nada, mais que dizeremlhe os Chins, que auia là muytos Portugueses de inuernada, & outros vindos nouamente de Malaca, da Çunda, de Sião, & de Patane, & que fazião na terra suas fazendas pacificamente, & que a armada grossa de que nos temiamos, não era là, mas que se presumia que era ida âs ilhas do Goto em socorro do Sucão de Pontir, aquẽ se dezia que hum seu cunhado tyrannicamente tinha tomado o reyno, & porque este Sucão se fizera nouamẽte subdito do Rey da China, com tributo de cem mil taeis cada anno lhe dera aquella armada dos quatrocẽtos juncos, em que se affirmaua que hião cem mil homẽs para o meterẽ de posse do reyno ou senhorio que lhe tinhão tomado; com a qual noua todos ficamos descançados, & demos por isso muytas graças a nosso Senhor.
  23. [705](Cap. 58) E desembarcando algũs dos nossos em terra, compraraõ logo com muyta pressa todas as cousas de que tinhaõ necessidade, como foy salitre, & enxofre para poluora, chumbo, pilouros, mantimentos, amarras, azeite, breu, estopa, madeyra, taboado, armas, zargunchos, paos tostados, vergas, paueses, entenas, calhao, polliame, driças, & ancoras, fizeraõ agoada, & se proueraõ de esquipação de gente do mar, porque ainda que este lugar não era de mais que de trezentos atè quatrocentos vezinhos, auia tanto disto nelle, & pelas aldeas ao redor, que em verdade affirmo que quasi faltão palauras para o encarecer, porque esta excellencia tem a terra da China sobre todas as outras, ser mais abastada de tudo o que se pode desejar, que todas quantas ha no mundo.
  24. [752](Cap. 62) E estas pancadas tais tem esta costa da China mais que todas as das outras terras, pelo que ninguem pode nauegar seguro nella hũ só anno que lhe não aconteção desastres, se com as conjunçoẽs das lũas cheyas se não meter nas colheitas dos portos que tem muytos & muyto bõs, onde sem nenhum receyo se pode entrar, porque toda he limpa, tirãdo somente Lamau & Sumbor, que tem hũs baixos obra de meya legoa das barras da parte do Sul.
  25. [756](Cap. 63) Vendo então Antonio de Faria sua miseria & simplicidade, não os quiz por então mais importunar, mas dissimulando com elles por hũ grande espaço, rogou a hũa molher China Christam que ahy leuaua o Piloto, que os agasalhasse, & os segurasse do medo que tinhaõ, para que respõdessem a proposito ao que lhes perguntassem, o que ella lhes fez com tantos afagos que em menos de hũa hora disseraõ à China que se o Capitaõ os deixasse yr liuremente naquella sua embarcaçaõ assi como lha tinhão tomado, que elles cõfessariaõ toda a verdade do que viraõ pelos olhos, & do que ouuiraõ dizer, & Antonio de Faria lhes prometeo de o fazer assi, & lho affirmou com muytas palauras.
  26. [769](Cap. 64) E o outro põto foy dizerlhe que porque el Rey de Portugal seu senhor era com verdadeyra amizade irmão de el Rey da China, vinhão elles a sua terra, como tambem os Chins por este respeito custumauão yr a Malaca, onde eraõ tratados com toda a verdade, fauor, & justiça, sem se lhes fazer agrauo nenhum.
  27. [770](Cap. 64) E ainda que o Mãdarim ambos estes pontos não sofreo bem, todauia este derradeyro de dizer que el Rey de Portugal era irmão de el Rey da China, tomou tão mal, que sem ter mais respeito a cousa algũa, mandou açoutar os dous que leuaraõ a carta, & cortarlhe as orelhas, & os tornou assi a mandar com a reposta para Antonio de Faria escrita num pedaço de papel roto que dezia assi.
  28. [787](Cap. 65) Nós, co feruor desta vitoria arremetemos logo à porta, & nella achamos o Mandarim com obra de seiscentos homẽs comsigo, o qual estaua encima de hum bom cauallo, com hũas couraças de veludo roxo de crauação dourada do tempo antigo, as quais despois soubemos que foraõ de hum Tomè Pirez que el Rey dom Manoel da gloriosa memoria mandara por Embaixador à China, na nao de Fernão Perez Dandrade, gouernando o estado da India Lopo Soarez Dalbergaria.
  29. [808](Cap. 66) E então se verà quão incertas saõ as cousas da China, de que nesta terra se trata com tanta curiosidade, & de que algũs enganados fazem tãta conta, porque cada hora estão arriscadas a muytos desastres & desauenturas.
  30. [809](Cap. 67) Do que fez Antonio de Faria chegando âs portas de Liampoo, & das nouas que ahy teue do que passaua no reyno da China.
  31. [814](Cap. 67) E que quanto a se temer de inuernar aly pelo que fizera em Nouday, estiuesse nisso muyto descançado, porque não andaua a terra ao presente tão quieta, que isso pudesse lembrar para nada, assi pela morte do Rey da China, como pelas dissensoẽs que auia em todo o reyno em treze oppositores que pretẽdião o cetro delle, os quais todos estauão ja postos em armas com seus exercitos em campo, para com a força aueriguarẽ o que se não podia determinar por justiça; & que o tutão Nay, que era a suprema pessoa despois do Rey em todo o gouerno com mero & mistico imperio da magestade real, estaua cercado na cidade de Quoansy pelo Prechau Muão Emperador dos Cauchins, em cujo fauor se tinha por certo que vinha o Rey da Tartaria cõ hũ exercito de 900. mil homẽs: assi que a cousa andaua tão baralhada & diuidida entre elles, que ainda que sua merce assolara a cidade de Cantão, se não fizera caso disso, quãto mais a cidade de Nouday que na China em cõparaçaõ de outras muytas era muyto menos do que em Portugal pode ser OeyrasLisboa.
  32. [841](Cap. 70) Acabada a Missa, sem chegaraõ a Antonio de Faria os quatro principaes do gouerno daquella pouoaçaõ ou cidade de Liampoo, como os nossos lhe chamauaõ, que eraõ Mateus de Brito, Lançarote Pereyra, Ieronymo do Rego, & Tristão de Gaa, & tomandoo entre sy, acompanhado de toda a gente Portuguesa; que seriaõ mais de mil homẽs, o leuaraõ a hum grande terreyro que estaua na frontaria das suas casas, todo cercado de hum espesso bosque de castanheyros assi como vieraõ do mato carregado de ouriços, ornado por cima de muytos estendartes & bandeyras de seda, & por baixo juncado de muyta espadana, ortelam, & rosas vermelhas & brancas, de que na China ha grandissima quantidade.
  33. [849](Cap. 70) Mas enculcaraõlhe ahy hum cossayro muyto afamado que se chamaua o Similau, de que elle lãçou mão, & ouue logo fala delle, o qual lhe contou muyto grandes cousas de hũa iha por nome Calẽpluy, na qual estauão dezassete jazigos dos Reys da China em hũs presbiterios de ouro, com muyto grande quantidade de idolos do mesmo, em que dizia que não auia mais difficuldade nem trabalho que só em carregar os nauios, & tambem lhe disse outras muytas cousas de tamanha magestade & riqueza, que deixo aquy de as contar, porque temo que fação duuida a quem as lèr.
  34. [881](Cap. 73) Esta serra dezia o Similau que em distancia de nouenta legoas não era pouoada, por carecer de sitios necessarios â agricultura, mas que somente nas faldras debaixo habitaua hũa disforme gente, que se chamauão Gigauhos, os quais viuendo seluaticamente se não sustentaõ de outra cousa senão só da caça do mato, & de algum arroz que de certos lugares da China por mercancia lhe leuauaõ mercadores de que fazião resgate a troco de pelles em cabello que lhes dauão.
  35. [883](Cap. 73) Espantado Antonio de Faria do muyto que disto & doutras cousas o Similau lhe dezia, & muyto mais destes Gigauhos, & da disformidade dos seus corpos, & mẽbros, lhe rogou que trabalhasse todo o possiuel por lhe mostrar algũ delles, porque lhe affirmaua que o prezaria mais que se lhe desse todo o tisouro da China, aque elle respondeo: Bem vejo senhor, quanto me isso importa, assi para me acreditar comtigo, como para tapar a boca aos murmuradores, que se acotouellão quãdo me ouuem, mas porque por hũa cousa creão a outra, antes que seja sol posto fallaràs cõ mais de hum par delles, com tal condiçaõ que não sayas em terra, como atégora tẽs feito, porque te não aconteça algum desastre, dos muytos que cada dia aquy acontecem a mercadores que querem passarinhar por matos alheyos, porque te afirmo que com ninguẽ estes Gigauhos trataõ verdade, assi pela não mamarem no leite, como por sua natureza robusta & ferina os inclinar a se manterem de carne & sangue como qualquer destes bichos do mato.
  36. [941](Cap. 77) E preguntado se vinhaõ os Reys da China a aquelle lugar algũ anno, ou em que tempo, respondeo que não, porque o Rey, por ser filho do Sol, elle podia absoluer a todos, & ninguem o podia condenar a elle.
  37. [1017](Cap. 85) Daquy nos tirarão hum dia pela menham, assi carregados de ferros como estauamos, & ja neste tempo tão fracos & doentes, que trabalhosamente podiamos falar, & nos meteraõ a todos nũa corrente, & nos embarcaraõ na volta doutros trinta ou quarẽta presos que por casos graues tambẽ hião remetidos por apellação a esta cidade do Nanquim, a qual, como ja disse, he a segunda do reyno da China, & onde continuamente reside hum Chaem da justiça, que he titulo supremo como de Visorrey, com hũa grande rolaçaõ de cento & vinte gerozemos & ferucuas, que saõ os desembargadores, chançareis, & reuedores de todas causas ciuis & crimes, sem auer nellas reuista, apellação, nem agrauo, senão para outra mesa que ahy ha que tẽ poder ainda sobre el Rey, para a qual quando se apella he como apellar para o Ceo.
  38. [1047](Cap. 88) O primeyro he este por nome Batampina, que atrauessãdo pelo meyo deste imperio da China trezẽtas & sessenta legoas, faz sua entrada no mar pela enseada do Nanquim em trinta & seis graos; o segundo, por nome Lechune, tẽ sua euasaõ cõ grandissimo impeto ao longo dos montes de Pancruum, que diuidẽ a terra do Cauchim, & o senhorio de Catebenão, que pelo sertão confina co reyno de Chãpaa em dezasseis graos.
  39. [1048](Cap. 88) O terceyro rio por nome Tauquiday, que quer dizer, mãy das agoas, vem cortãdo ao Oesnoroeste pelo reyno de Nacataas, que he hũa terra dõde antigamente se pouoou a China, como adiãte direy, este tem sua entrada no mar pelo imperio do Sornau, aque o vulgar chama Sião pela barra de Cuy abaixo de Patane cento & trinta legoas.
  40. [1066](Cap. 88) Dos paços reais não direy nada, porque os não vimos senão de fora, nẽ delles soubemos mais que o que os Chins nos disseraõ, o qual he tãto que he muyto para arrecear cõtalo, & por isso não tratarey por agora delles, porque tenho por dauãte cõtar o que vimos nos da cidade do Pequim, dos quais cõfesso que estou ja agora arreceãdo auer de vir a cõtar ainda esse pouco que delles vimos, não porque isto possa parecer estranho aquẽ vio as outras grandezas deste reyno da China, senão porque temo que os que quiserem medir o muyto que ha pelas terras que elles não virão, co pouco que uem nas terras em que se criarão, queirão por duuida, ou por ventura negar de todo o credito a aquellas cousas que se não conformão co seu entendimento, & com a sua pouca experiencia.
  41. [1075](Cap. 89) Aquy nos leuarão a hum pagode onde naquelle tempo auia grande concurso de gente, por ser o dia da sua inuocação, o qual nos disserão que foraõ antigamente casas del Rey, nas quais dezião que nacera o auó deste que agora reynaua, & porque a mãy aly fallecera do parto, se mandara enterrar na mesma camara onde parira o filho, & por honra da sua morte, se dedicara nas mesmos casas este templo á inuocação de Tauhinarel, que he hũa seita gentilica das principais deste reyno da China, como adiante direy quando vier a tratar do labarinto das trinta & duas leys que ha nelles.
  42. [1083](Cap. 89) Destes arcos para fora, na mesma proporçaõ, estão duas ordẽs de grades de latão que fechão toda esta obra, armadas por quarteis em colunas do mesmo, com hũs leoẽs em todo cima postos sobre bollas, que saõ as armas dos Reys da China, como ja algũas vezes tenho dito; nas quadras deste terreyro estaõ quatro monstros do mesmo bronzo, fundidos de taõ estranha & descompassada grandeza, & diabolica fealdade que os entendimentos dos homẽs quasi o não podẽ imaginar, dos quais milhor me fora não dizer nada: pois entendo & cõfesso de mym que não tenho saber nẽ palauras para declarar tudo o que nelles ha, mas como não he razão que de todo fiquem escondidos sem se dar algũa noticia delles, direy o que couber no meu fraco entendimento.
  43. [1090](Cap. 90) Os teares destas sedas, que em soma dezião que erão treze mil, rendião a el Rey da China cada anno trezentos mil taeis.
  44. [1115](Cap. 91) Aquy nos mostrou hũ oratorio em que tinha hũa Cruz de pao dourada, com hũs castiçais & hũa alampada de prata, & nos disse que se chamaua Inez de Leiria, & que seu pay se chamara Tomé Pirez, o qual deste reyno fora por Embaixador a el Rey da China, & que por hum aleuantamento que hum nosso Capitão fizera em Cantão, ouuerão os Chins que era elle espia & não embaixador como elle dezia, & o prenderão com outros doze homẽs que trazia comsigo, & despois que por justiça lhes derão muytos açoutes & tratos, de que logo morreraõ os cinco, aos outros desterrarão, apartados hũs dos outros, para diuersos lugares, onde morrerão comidos de piolhos, dos quais hum só era viuo que se chamaua Vasco Caluo, natural de hum lugar da nossa terra que se dezia Alcouchete, porque assi o tinha muytas vezes ouuido a seu pay chorando muytas lagrimas quando nisto fallaua.
  45. [1124](Cap. 91) Dentro nestes cinco dias que estiuemos em sua casa fizemos sete vezes doutrina aos Christãos, de que todos ficaraõ muyto animados, & Christouão Borralho lhe fez hum caderninho na letra China em que lhe deixou escrito o Pater noster, a Aue Maria, o Credo, a Salue Regina, os mandamentos, & outras muytas oraçoẽs boas.
  46. [1132](Cap. 92) Leese na primeyra Chronica das oitenta dos Reys da China no capitolo treze, a qual eu ouuy muytas vezes lèr, que despois do diluuio seiscentos & trinta & noue annos auia hũa terra que então se chamaua Guantipocau, a qual, segundo parece pela altura do clima em que estâ, deue de estar em sessenta & dous graos da banda do Norte, & jaz nas costas desta nossa Alemanha.
  47. [1134](Cap. 92) Este, sendo algũas vezes requerido pelos principaes do reyno ou senhorio que então era, que se casasse, se escusou sempre, dando por desculpa algũas razoẽs que os seus lhe não aceitarão, antes incitados & estimulados pela mãy, não desistindo do requerimento, apertarão tanto com elle, que elle por se escusar de fazer o que não era sua vontade, com tẽção de legitimar o filho mais velho que tinha da Nancaa, & deixarlhe o reyno, se meteo em religião em hum templo que se chamaua Gizom, que segundo parece foy idolo & seita que tiuerão os Romanos, o qual oje em dia ha neste imperio da China, na ilha do Iapão, na Cauchenchina, em Camboja, & em Sião, do qual nestas terras eu vy muytas casas, & declarando no seu testamento que era esta sua vltima vontade, a Raynha sua mãy que naquelle tempo era viuua, & de idade de cinquenta annos, o não consentio, dizendo, que ja que seu filho queria morrer na religião que tinha professado, & deixar o reyno sem legitimo erdeyro, ella queria dar remedio a este tamanho desmancho; & logo se casou com hum seu sacerdote por nome Silau, de idade de vinte & seis annos, & o fez a pesar de muytos jurar por Rey.
  48. [1151](Cap. 94) Quais forão os fundadores das primeyras quatro cidades da China, & dase conta de algũas grandezas da cidade do Pequim.
  49. [1157](Cap. 94) E porque o dia em que este nouo Rey lãçou esta primeyra pedra quãdo fundou esta cidade, segundo o que consta pelas historias foy aos tres dias do mes de Agosto, custumarão sempre os Reys da China dentão para câ, & o custumão inda agora mostrarense ao pouo neste mesmo dia, o qual fazẽ com tanta magestade, & tão estranho & grandioso aparato, que em verdade affirmo que he muyto para arrecear dar cõta da mais pequena parte delle, quãto mais de todo, & por isso me não quiz meter no que sey certo que não ey de poder leuar auante.
  50. [1162](Cap. 94) Este imperio Chim se lé que foy sempre corrẽdo por direitas successoẽs de hũs Reys nos outros desde aquelle tẽpo atè hũa certa idade, que, segundo parece pela nossa conta, foy no anno do Senhor de mil & cento & treze, & então foy esta cidade do Pequim entrada de inimigos, & assolada, & posta por terra vinte & seis vezes, mas como ja neste tẽpo a gente era muyta, & os Reys muyto ricos, dizem que o que então reynaua, que tinha por nome Xixipaõ, a cercou toda em roda da maneyra que agora está em vinte & tres annos, & outro Rey por nome Iumbileytay, que era seu neto, fez a segunda cerca daly a oitenta & dous annos, as quais ambas tem de circuito sessenta legoas, trinta cada hũa, cõuem a saber, dez de comprido, & cinco de largo, das quais cercas ambas se lé que tem mil & sessenta baluartes redõdos, & duzentas & quarenta torres muyto fortes largas & altas, com seus curucheos de diuersas cores, que lhe dão muyto lustro, & em todas estão leoas dourados sobre bollas ou pomas redondas, os quais saõ a diuisa ou as armas do Rey da China, pelos quais quer dar a entender que he elle leão coroado no trono do mũdo.
  51. [1166](Cap. 95) Qual foy o Rey da China que fez o muro que diuide os dous imperios da China & da Tartaria, & da prisaõ aneixa a elles.
  52. [1170](Cap. 95) Porem o Rey que então reynaua na China, receãdose doutro poder & confederaçaõ semelhãte â passada, a que elle naõ pudesse resistir, determinou de fechar com muro toda a raya dambos estes imperios.
  53. [1176](Cap. 95) E em todas estas trezẽtas & quinze legoas não ha mais entradas que sós cinco que os rios da Tartaria fazem por estas partes, pelos quais decendo com impetuosa corrente, com que cortão por este sertão espaço de mais de quinhentas legoas, se vão meter no mar da China & da Cauchenchina, & hum destes, porque he mais poderoso que os outros, vay sayr no reyno Sornau (aque o vulgar chama Sião) pela barra de Cuy, & em todas estas cinco entradas o Rey Chim tem hũa força, & o Tartaro outra, em cada hũa das quais o Chim tem sete mil homẽs continuos aque paga muyto grandes soldos, de que os seis mil saõ de pè, & os mil de cauallo, & a mayor parte desta gente he estrangeyra, como saõ Mogores, Pancrùs, Champas, Coraçones, & Gizares da Persia, & outros de outras muytas terras & reynos que pelo amago deste sertão habitão, porque na verdade os Chins não saõ muyto homẽs de guerra, porque alem de serem pouco praticos nella, saõ fracos de animo, & algum tanto carecidos de armas, & de todo faltos de artilharia.
  54. [1180](Cap. 96) Partidos nós destas duas cidades de Pacão & Nacau, & seguindo nossa viagem pelo rio acima assi presos como tenho dito, chegamos a outra cidade que se chamaua Mindoo, pouco mayor que cada hũa destoutras, na qual para a parte do sertão espaço de meya legoa estaua hum muyto grande lago de agoa salgada, em que auia muyto grande soma de marinhas, o qual nos affirmaraõ os Chins que enchia & vazaua da propria maneyra que o faz o mar, estando pela terra dentro mais de duzentas legoas, & que rendia todos os annos para o Rey da China só do terço que deste sal lhe pagauão, cem mil taeis: & que a fora estes lhe rendia mais esta cidade outros cẽ mil taeis dos teares da seda, da canfora, do açucar, da porcelana, do vermelhão, & do azougue, das quais cousas nos disserão que auia aquy grandissima quantidade.
  55. [1207](Cap. 97) E muytos Chins nos affirmarão que neste imperio da China tanta era a gente que viuia pelos rios, como a que habitaua nas cidades, & nas villas, & que se não fosse a grande ordem & gouerno que se tem no prouer da gẽte mecanica, & no trato & officios cõ que os cõstrangem a buscarem vida, que sem duuida se comeria hũa com a outra, porque cada sorte de trato & de mercancia de que os homẽs viuẽ se reparte em tres & quatro formas, desta maneyra.
  56. [1233](Cap. 98) E he tão boa esta veniaga entre elles, que às vezes se vé num porto de mar entrarem nũa maré duzentas & trezentas vellas a carregar della, como nesta nossa terra entrão vrcas a carregar de sal, & ainda se lhe dà muytas vezes por repartiçaõ de almotaçaria, conforme á falta que ha della na terra, & por ser este esterco taõ excellente para as sementeyras, dà esta terra da China tres nouidades cada anno.
  57. [1252](Cap. 99) Das mais cousas que vimos nesta cidade, & de outras algũas que ha na China em outras partes.
  58. [1257](Cap. 99) Ha outros que trazem grande soma de liuros que contaõ historias & daõ relaçaõ de tudo o que se quer saber, assi da criaçoõ do mundo, em que dizem infinitas mentiras, como das terras, reynos, ilhas, & prouincias que ha no mundo, & das leys & custumes de cada hũa dellas, principalmente dos Reys da China quantos foraõ, & o que fizeraõ, & os que fundaraõ as terras, & as cidades, & as cousas que aconteceraõ em cada hum dos tempos.
  59. [1269](Cap. 99) E hũa das cousas, antes a principal, porque esta Monarchia da China que contem em sy trinta & dous reynos, he tão nobre, tão rica, & de tão grande trafego, & comercio, he porque he toda laurada de rios & esteyros de admirauel feiçaõ, muytos que a natureza fez, & muytos que os Reys, os senhores, & os pouos antigamẽte mandaraõ abrir, paraque toda a terra se pudesse nauegar & cõmunicar sem trabalho, dos quais os mais estreitos tem pontes muyto altas, & compridas & largas de cantaria muyto forte, feitas ao modo das nossas, & algũs que hũa só pedra os atrauessa de hũa parte á outra, de oitenta, nouenta, & de cem palmos de comprido, & de quinze & vinte de largo, cousa certo digna de grandissimo espanto, & que quasi se não deixa entender como hũa tamanha pedra se possa assi inteyra arrancar da pedreyra, nem mouerse della para se pór no lugar onde estaua.
  60. [1273](Cap. 99) Destas grandezas que se achão em cidades particulares deste imperio da China, se pode bem colligir qual serâ a grãdeza delle todo junto, mas paraque ella fique inda mais clara, não deixarey de dizer (se o meu testemunho he digno de fè) que nos vinte & hũ annos que duraraõ os meus infortunios, em que por varios accidentes de trabalhos que me soccedião, atreuessey muyta parte da Asia, como nesta minha peregrinação se pode bẽ ver, em algũas partes vy grandissimas abundancias de diuersissimos mantimentos que não ha nesta nossa Europa, mas em verdade affirmo, que não digo eu o que ha em cada hũa dellas, mas nem o que ha em todas juntas vem a comparação co que ha disto na China somente.
  61. [1275](Cap. 99) E quando algũa vez me ponho a cuidar no muito que vy disto nas partes da China, por hũa parte me causa grandissimo espanto, ver com quanta liberalidade nosso Senhor partio com esta gente dos beẽs da terra, & por outra me causa grandissima dór & sentimento ver quão ingrata ella he a tamanhas merces, pois ha entre ella tantos & tamanhos peccados com que continuamẽte o offende, assi os das suas bestiais & diabolicas idolatrias, como tambem o da torpeza do peccado nefando, porque este não somente se permite entre elles publicamẽte, mas por doutrina dos seus sacerdotes, o tẽ por virtude muyto grande.
  62. [1295](Cap. 101) Desta petição se mandou dar vista ao prometor da justiça, que era o que requeria contra nòs, o qual veyo dizẽdo nũs artigos que fez, que elle prouaria por testemunhas de vista, assi naturais como estrangeyras que nòs eramos publicos ladroẽs, roubadores das fazendas alheyas, & não mercadores como deziamos, porque se vieramos de bom titulo â costa da China, & com tenção de pagarmos os direytos a el Rey nas suas alfandegas, que nós nos meteramos nas colheitas dos portos onde ellas estauão postas por ordem do Aytao do gouerno, mas que por andarmos como cossayros de ilha em ilha, permitira Deos, a quem os males & roubos erão aborrecidos, que nos perdessemos, para por isso sermos presos pelos ministros da sua justiça, para conforme a ella colhermos o fruyto de nossas mâs obras, que era a pena de morte que por ellas mereciamos, conforme â ley do segundo liuro em que isto especificamamente se declaraua, & que ainda que o mesmo direyto por algũs outros respeitos que em nós não auia nos releuasse da pena de morte, todauia por sermos estrangeyros, & gente sem ley, em que não auia claro conhecimento de Deos para por seu amor ou temor deixarmos de nos occupar em muytos maos & peruersos exercicios, isso só bastaua paraque ao menos fossemos cõdenados a nos cortarem as mãos & os narizes, & nos degradassem para sempre para os lugares de Ponxileytay, onde era custume lançarense os do nosso officio, como mostraria por muytas sentenças que ja sobre este caso foraõ dadas, & executados, pelo que requeria que lhe recebessem estes artigos a que esperaua dar proua no termo que lhe fosse assinado.
  63. [1317](Cap. 103) E chegando em fim com assaz de trabalho & afronta de grita de muytos rapazes ao primeyro patio do Caladigaõ, onde estauão os vinte & quatro algozes, a que elles chamão ministros do braço da ira, com outra muyta gente do pouo que aly era junta para seus requerimentos, estiuemos hum grande espaço, até que se tangeo hum sino, & se abriraõ outras portas que estauão debaixo de hum grande arco de cantaria, laurado de muytos entretalhos & pinturas ricas, encima do qual estaua hum mõstruoso leão de prata, cos peis & maõs sobre hũ mapa do mesmo, redondo & muyto grande, que significa as armas dos Reys da China, que commummente estão postas nas frontarias de todas as rolaçoẽs supremas em que assistem os Chaẽs da justiça, que entre nos saõ como Visorreys.
  64. [1357](Cap. 105) De algũa pequena informação desta cidade do Pequim onde o Rey da China reside dassento.
  65. [1371](Cap. 105) Tem mais o vaõ desta grande cerca, segundo conta este Aquesendoo, mil & trezentas casas nobres, & de officinas de muyto custo, de molheres & de homens religiosos que professaõ as quatro leys principaes do numero das trinta & duas que ha neste imperio da China, das quais casas dizem que algũas tem das portas a dentro passante de mil pessoas, a fora os seruidores que ministraõ de fora o necessario para a sustentação dellas.
  66. [1380](Cap. 105) E daly por decendencia vem logo ter ao Rey da China, que na terra & no gouerno della dizem que assiste por especial graça do Ceo, por presidente sobre todos os Reys que ha nella.
  67. [1381](Cap. 105) E do Rey da China para baixo, fallando ja humanamente, trata do banquete dos Tutoẽs, que saõ as dez dignidades supremas no mando sobre todos os quarenta Chaẽs do gouerno, que saõ Visorreys, & aos Tutoẽs chamão resplandores do Sol, porque dizem elles que assi como o Rey da China he filho do Sol, assi os Tutoẽs que o representão se podem chamar resplandores que procedem delle, assi como os rayos que o Sol lança.
  68. [1403](Cap. 107) Mas deixando agora isto para se tratar a seu tempo, esta cidade, segundo o que se escreue della, assi no Aquesendoo de que jâ fiz menção, como em todas as chronicas dos Reys da China, tẽ em roda trinta legoas, a fora os edificios da outra cerca de fora, de que ja tenho dito hum pouco, & bem pouco em comparaçaõ do muyto que me ficou por dizer: & he (como ja disse outra vez) toda fechada cõ duas cercas de muros muyto fortes, & de muyto boa cantaria, onde tem trezentas & sessenta portas, a cada hũa das quais está hum castello roqueyro de duas torres muyto altas, & todos com suas cauas, & pontes leuadiças nellas.
  69. [1423](Cap. 108) E pregũtando nòs aos Chins pela causa daquelle tamanho edificio, & da grande quantidade de presos que em sy tinha, nos respõderão, que despois que aquelle Rey da China, por nome Crisnagol dacotay acabara de fechar com muro as trezentas legoas de distancia que ha entre este reyno da China, & o da Tartaria, como ja atras fica contado, ordenara com parecer dos pouos, que para isso foraõ chamados a cortes, que todos aquelles que por justiça fossem condenados em pena de degredo, fossem degradados para a fabrica daquelle muro, aos quais se daria mantimento somente, sem el Rey lhes ficar por isso obrigado a satisfaçaõ nenhũa, pois lhes fora aquillo dado em pena de seus delictos.
  70. [1475](Cap. 110) Em torno desta tribuna nos primeyros quatro degraos estauão doze Reys da China em vultos de prata, com coroas nas cabeças, & maças darmas âs costas.
  71. [1479](Cap. 111) Do quarto edificio situado no meyo do rio, onde estão as cento & treze capellas dos Reys da China.
  72. [1480](Cap. 111) E por acabar ja de dar fim a esta materia, a qual, se eu ouuer de dar conta de todas as particularidades della, viria a ser quasi infinita, entre hũa grande quantidade de edificios nobres & ricos que aqvy vimos, hum que me pareceo mais notauel foy hũa cerca situada no meyo do rio da Batampina, de quasi hũa legoa em roda, em hum ilheo raso a modo de lizira, cercado todo em torno de cantaria muyto prima, que pela parte de fora se leuantaua sobre a agoa altura de mais de trinta & oito palmos, & por dentro ficaua rasa co chão, fechada por cima toda em roda de duas ordẽs de grades de latão, de que as primeyras que estauão mais para fora, erão de seis palmos dalto somente, em que a gente se podia encostar, & as segundas que estauão mais por dentro, eraõ de noue palmos, as quais tinhaõ leoẽs de prata postos encima de bollas redondas, que como ja disse algũas vezes, saõ armas dos Reys da China.
  73. [1485](Cap. 111) Aquy nesta torre vimos tambem hũa riquissima casa; toda dalto abaixo forrada de pastas de prata, na qual estauão estes cento & treze Reys da China em figuras de vulto tambem de prata, & a ossada de cada hum dos Reys estaua metida em cada hũ daquelles vultos, porque dizem que assi todos juntos, segundo lhe dezião os seus sacerdotes, se communicauão de noite huns cos outros, & tinhão seus passatempos que ninguem era digno de ver se não certos bonzos, a que elles chamão Cabizondos, que saõ de dignidades & graos mais altos que os outros, como Cardeais entre nós.
  74. [1493](Cap. 111) Daquy fomos por hũa rua toda de arcos até chegarmos a hum caiz que se dizia Hicharioo topileu, onde auia grande somma de embarcaçoens de peregrinos de diuersos reynos que continuamente concorrem a este templo por jubileu plenissimo, que el Rey da China Coschaens do gouerno lhe tem concedido, & juntamente priuilegios de muyta franquia por toda a terra, & comer de graça em muyta abastança.
  75. [1494](Cap. 111) De outros muytos mais templos que vimos nesta cidade os dous meses que andamos nella em nossa liberdade, não trato, porque querer dar por extẽso relação de todos serâ processo infinito, mas não deixarey de dizer algũas cousas outras particulares, & dignas de se notarem, que vimos, de que a primeyra serà dizer cõ a mayor breuidade que puder algũa cousa das casas & do estado del Rey da China, & do gouerno da sua Republica, & dos ministros da justiça, da fazenda, & da corte, paraque se saiba a maneyra com que este Gentio gouerna o seu pouo, & a prouidẽcia que tem em todas as cousas delle.
  76. [1496](Cap. 112) O Rey da China reside o mais do tempo nesta cidade do Pequim, por assi o prometer & jurar no dia da sua coroaçaõ, em que lhe metem na mão o cetro de todo o gouerno, do qual ao diante tratarey hum pouco.
  77. [1500](Cap. 112) E esta seita com todas as mais que se achão neste barbarismo da China, que, segundo eu soube delles, & ja disse algũas vezes, saõ trinta & duas, vieraõ do reyno de Pegù ter a Sião, & daly por sacerdotes & cabizondos se espalharaõ por toda a terra firme de Cãboja, Champaa, Laos, Gucos, Pafuas, Chiammay, imperio de Vzanguee, & Cauchenchina, & pelo arcipelago das ilhas de Ainão, Lequios, & Iapaõ, ate os confins do Miacoo & Bandou, de maneyra que a peçonha destes erpes corrõpeo tamanha parte do mũdo como a maldita seita de Mafamede.
  78. [1519](Cap. 114) Do numero da gente que viue nas casas del Rey da China, & dos nomes das dignidades supremas que gouernão o reyno, & das tres principaes seitas que ha nelles.
  79. [1531](Cap. 114) Não quiz nesta materia tratar de mais que destas tres seitas somente, & quiz deixar todos os mais abusos das trinta & duas seitas que ha neste grande imperio da China, assi porque declarallos todos será processo infinito, como ja disse algũas vezes, como porque destes se pode bem entender quais serão os outros, porque todos saõ a este modo.
  80. [1564](Cap. 116) E tornando elle de nouo a me contar todo o successo de seus trabalhos, me relatou todo o discurso de sua vida, & de tudo o mais que tinha passado, desde que partira deste reyno até então, & assi da morte do Embaixador Tomé Pirez como dos mais que Fernão Perez Dandrada deixou cõ elle em Cantão para irẽ ao Rey da China, o que, segũdo me elle cõtou, não se conforma muyto co que os nossos Chronistas escreuẽ.
  81. [1573](Cap. 117) Hũa quarta feira treze dias do mez de Iulho do anno de 1544. sendo passada mais de meya noite se leuantou em todo o pouo hũa tamanha reuolta & vnião de repiques & gritas, que parecia que se fundia a terra, & acudindo nòs todos a casa de Vasco Caluo lhe pregũtamos pela causa daquelle tumulto, & elle cõ assaz de lagrimas, nos disse, que auia noua certa de estar el Rey da Tartaria sobre a cidade do Pequim, co mais grosso poder de gente que nenhum outro Rey nũca ajuntara no mundo, desde o tempo de Adão até aquella hora, no qual se affirmaua que vinhaõ vinte & sete Reys, & que se dezia que trazião comsigo hũ conto & oitocentos mil homẽs, de que os seiscẽtos mil eraõ de cauallo, que por terra eraõ vindos da cidade de Lançame, & de Famstir, & de Mecuy, dõde partiraõ com oitenta mil badas em que vinha o mantimento & toda a bagage, & o conto & duzentos mil de pé, vieraõ em dezasseis mil embarcaçoẽs de Laulees, & Iangaas pelo rio da Batampina abaixo, & que el Rey da China por se não atreuer a resistir a tamanho poder, se fora aforrado para o Nanquim.
  82. [1629](Cap. 121) A isto respondeo o Mitaquer, affirmouos a todos que por nenhũ caso o faça el Rey, ainda que por isso lhe dem o tisouro da China, porque se o fizesse, seria quebrar a verdade de sua palaura, com que se perderia toda a reputaçaõ da sua grandeza, pelo qual he escusado tratar de cousas que não podem ser, nem he bem que sejão: & voltandose para nòs nos disse, vos outros ideuos muyto embora, & a menham a estas horas estay prestes para quando vos eu mandar chamar, & com isto nos fomos todos tão contentes quãto era razão.
  83. [1640](Cap. 122) E com isto lhe deraõ entrada por outra porta que estaua defronte, & chegamos a hum grande terreyro feyto em quadra como crasta de conuento, no qual estauão quatro fileyras de estatuas de bronzo em figura de homens a modo de saluagens com maças, & coroas do mesmo, porem tudo cozido em ouro, os quais idolos, ou gigantes, ou o que quer que eraõ, tinhão daltura vinte & sete palmos, & seys de largo nos peytos, eraõ nos sembrantes assaz feyos & malassombrados, co cabello crespo, & feito em grenhas a modo de cafres, & pregũtando nòs aos Tartaros pela significação daquellas figuras, nos disseraõ que eraõ os trezẽtos & sessenta deoses que fizeraõ os dias do anno, paraque em todos elles a gente continuamente os venerasse pelo beneficio da criação dos fruytos que nelles a terra produze, os quais o Rey Tartaro aly trouxera de hum grande templo chamado Angicamoy que tomara na cidade Xipatom na capella dos jazigos dos Reys da China para triumphar delles quando se embora tornasse para sua terra, por que se soubesse por todo o mundo que a pesar do Rey da China lhe catiuara os seus deoses.
  84. [1672](Cap. 123) E ao outro dia passando â vista da cidade de Caixiloo, a não quiz cometer, por ser grande & forte, assi por sitio & fortificação, como por ter sabido que estauão dentro nella cinquenta mil homens, em que entrauão dez mil Mogores, & Cauchins, & Champaas, gente mais determinada & pratica na guerra que a da China.
  85. [1673](Cap. 123) Passando daquy para diante chegou aos muros de Singrachirau, que saõ os de que atras disse que diuidem estes dous imperios da China & da Tartaria, & não achando nelles resistencia algũa se foy alojar da outra banda em Pamquinor, que era a primeyra cidade sua, que estaua tres legoas deste muro de Singrachirau, & ao outro dia chegou a Xipator onde despidio a mayor parte da gente.
  86. [1688](Cap. 124) Mas deixando ja agora isto, que não toquey para mais que para dar relação dos embaixadores que vimos nesta corte, & deste principalmente, porque me pareceo mais para se notar que todos os outros, me tornarey â materia de que hia tratãdo, assi do que toca à nossa liberdade, como ao caminho que fizemos até as ilhas do mar da China, onde este Rey ou Emperador da Tartaria nos mandou leuar, paraque venhão ao conhecimento dos homens destas partes algũas cousas de que ategora por ventura não tiueraõ nenhũa noticia.
  87. [1716](Cap. 127) Seguindo nosso caminho deste pagode para diante, fomos ao outro dia ter a hũa cidade muyto nobre que estaua â borda do rio por nome Quanginau, na qual estes embaixadores ambos se detiuerão tres dias prouendose de algũas cousas de que ja vinhão faltos, & vendo hũas festas que se fazião â entrada do Talapicor de Lechune, que he entre elles como Papa, o qual hia visitar el Rey & consolalo pelo mao successo que tiuera na China.
  88. [1744](Cap. 128) Daquy nos partimos logo ao outro dia ja quase sol posto, & continuamos nosso caminho por este rio abaixo mais sete dias, que chegamos a hũa boa cidade chamada Xolor, na qual se faz toda a porcellana adamascada que vay ter á China.
  89. [1751](Cap. 129) Estes dous esteyros & o rio de Ventinau de que atras fiz menção, passamos com muyto trabalho & perigo, por causa dos muytos cossayros que auia nelles, & chegamos â cidade de Manaquileu, que està situada ao pé dos montes de Comhay na arraya dos reynos da China & do Cauchim, na qual estes embaixadores tambos foraõ bem recebidos do Capitão della.
  90. [1787](Cap. 131) Despois de auer quasi hum més que estauamos nesta cidade, vendo muytos jogos & festas notaueis, & outras muytas maneyras de desenfadamentos que os grandes & o pouo continuamente fazião, com banquetes esplendidos todos os dias, o embaixador Tartaro que nos trouxera, fallou a el Rey sobre a nossa yda, a qual lhe elle concedeo muyto leuemente, & nos mandou logo dar embarcação para a costa da China, onde nos pareceo que achassemos nauios nossos em que nos fossemos para Malaca, & dahy para a India, o qual foy logo posto em effeito, & nòs nos fizemos prestes do necessario para a partida.
  91. [1794](Cap. 132) Daquy nos partimos hũa terça feyra pela menham, & continuamos por nossa derrota mais treze dias, no fim dos quais chegamos ao porto de Sanchão no reyno da China, que he a ilha onde despois falleceo o bemauenturado padre mestre Francisco, como adiante se dirâ, & não achando aly ja a este tempo nauio de Malaca, por auer noue dias que erão partidos, nos fomos a outro porto mais adiãte sete legoas por nome Lampacau, onde achamos dous juncos da costa do Malayo, hũ de Patane, & outro de Lugor.
  92. [1801](Cap. 132) E surgindo nòs no rosto da ilha em setenta braças, nos sayraão da terra duas almadias pequenas em que vinhaõ seis homẽs, os quais chegando a bordo, dospois de fazerem suas saluas & cortesias a seu modo, nos preguntarão donde vinha o junco, a que se respondeo que da China com mercadarias para fazer ahy veniaga com elles, se para isso nos dessem licença, hum dos seys nos respõdeo, que a licença o Nautoquim senhor daquella ilha Tanixumaa a daria de boa vontade se lhe pagassemos os direytos que se custumauão pagar em Iapaõ, que era aquella grande terra que defronte de nos apparecia.
  93. [1815](Cap. 133) O Necodá do junco lhe mãdou pelo mensageyro algũas peças ricas, & brincos da China em retorno do refresco, & lhe mandou dizer que como o junco ancorasse no surgidouro onde estiuesse seguro do tẽpo, o iria logo ver a terra, & leuarlhe as mostras da fazenda que trazia para vender.
  94. [1817](Cap. 133) Chegando nòs a casa do Nautaquim, fomos todos muyto bem recebidos delle, & o Necodá lhe deu hum bõ presente, & apos isso lhe mostrou as mostras de toda a sorte da fazenda que trazia, de que elle ficou satisfeito, & mandou logo chamar os principaes mercadores da terra, com os quais se tratou do preço & concertados nelle se assentou que ao outro dia se trouxesse a hũa casa que mandou dar ao Necodà em que se agasalhasse cõ a sua gente se tornar para a China.
  95. [1819](Cap. 133) A primeyra foy dizernos que lhe tinhão dito os Chins & Lequios, que Portugal era muyto mayor em quantidade assi de terra como de riqueza, que todo o imperio da China, ò que nòs lhe concedemos.
  96. [1832](Cap. 134) E entendendo então o Diogo Zeimoto que em nenhũa cousa podia milhor satisfazer ao Nautaquim algũa parte destas honras que lhe fizera, nem em que lhe desse mais gosto que em lhe dar a espingarda lha offereceo hum dia que vinha da caça com muyta soma de pombas & de rolas, a qual elle aceitou por peça de muyto preço, & lhe affirmou que a estimaua muyto mais que todo o tisouro da China, & lhe mãdou dar por ella mil taeis de prata, & lhe rogou muyto que lhe insinasse a fazer a poluora, porque sem ella ficaua a espingarda sendo hum pedaço de ferro desaproueitado, o que o Zeimoto lhe prometeo, & lho cũprio.
  97. [1846](Cap. 135) Despois de lida esta carta, nos disse o Nautoquim, este Rey do Bũgo he meu senhor & meu tio, irmão de minha mãy, & sobre tudo he meu bom pay, & ponholhe este nome, por que o he de minha molher, pelas quais razoẽs me tem tanto amor como aos seus mesmos filhos, & eu pela grande obrigaçaõ que por isto lhe tenho, vos certifico que estou tão desejoso de lhe fazer a vontade, que dera agora grande parte da minha terra porque Deos me fizera hum de vos outros, assi para o yr ver, como para lhe dar este gosto que eu entendo, pelo muyto que sey da sua condição, que elle estimarà mais que todo o tisouro da China.
  98. [1860](Cap. 136) El Rey me mandou logo chegar para juuto da camilha em que estaua deytado assaz enfermo & atribulado de gota, & me disse, rogote que te não enfades de estares jũto de mim, porque folgo de te ver & de falar comtigo, & que me digas se sabes algũa mezinha lâ dessa terra do cabo do mũdo para esta infirmidade que me tem tão aleijado, ou para o fastio, porque vay em dous meses que não posso comer cousa nenhũa, a que respondy que eu não era medico, nẽ aprendera essa sciencia, mas que no jũco em que eu viera da China vinha hum pao cuja agoa curaua muito mayores infirmidades que aquella de que se elle queixaua, & que se o tomasse, teria logo saude sem falta nenhũa, o que elle folgou muyto de ouuir.
  99. [1887](Cap. 137) Neste tempo, sendo eu auisado por cartas dos dous Portugueses que ficaraõ em Tanixumaa, que o cossayro Chim com quem aly vieramos, se fazia prestes para se partir para a China, dey conta disso a el Rey, & lhe pedy licença para me tornar, a qual me elle deu muyto leuemente, & com palauras de muytos agredecimentos pela cura de seu filho.
  100. [1889](Cap. 137) Aquy nos detiuemos mais quinze dias, em que o junco de todo acabou de se fazer prestes, & nos partimos para Liampoo, hum porto de mar do reyno da China, de que atras fiz larga menção, onde os Portugueses naquelle tempo tinhão seu trato, & vellejando por nossa derrota, prouue a Deos que chegamos a elle a saluamento, onde dos moradores da terra fomos muyto bẽ recebidos, os quais auendo por cousa noua virmos nòs daquella maneyra entregues á pouca verdade dos Chins, nos perguntarão de que terra vinhamos, & onde nos embarcaramos com elles, a que respõdemos conforme â verdade do que passaua, & lhe demos conta de toda a nossa viagem, & da noua terra de Iapaõ que tinhamos descuberto, & da grande quantidade de prata que nella auia, & do muyto proueito que se fizera nas fazendas da China, de que todos ficarão taõ contentes que não cabião em sy de prazer, & logo ordenarão hũa deuota procissaõ para darem graças a nosso Senhor por tamanha merce, & nella foraõ da igreija mayor que era de nossa Senhora da Conceição, até outra de Santiago, que estaua no cabo da pouoação, onde ouue Missa & pregação.
  101. [1918](Cap. 140) & nos lhe respondemos, que por sermos mercadores, & termos por officio tratar cõ nossas fazendas, nos embarcaramos no reyno da China do porto de Liãpoo para Tanixumaa, onde jâ tinhamos ido algũas vezes, & que sendo tanto auãte como a ilha do fogo nos dera hũa tamanha tormenta que não podendo pairar o mar, nos fora forçado correr em popa ao som do vẽto tres dias com suas noites, no fim dos quais vararamos co junco por cima da restinga de Taidacão, onde de nouenta & duas pessoas que eramos se afogaraõ logo as sessenta & oito, & nòs os vinte & quatro que aly via diante de sy, nos saluara Deos milagrosamente, sem outra cousa mais que sós aquellas chagas que via nos nossos corpos.
  102. [1940](Cap. 140) lãçado nas prayas de Taydacão, de que toda esta gente ficou tão pasmada que sem duuida tem para sy que sois vos senhores do trato da China que he o mayor de todo o criado.
  103. [1943](Cap. 140) E tendo jâ determinado de nos mandar soltar, assi pelo que este homem lhe tinha dito, como pelo que o Broquem lhe escreuera, chegou ao porto hum Chim cossayro com quatro jũcos, a que el Rey daua colheyta em sua terra, por lhe dar a metade das presas que trouxesse da China, & por esta causa era muyto valido com elle & com todos os grandes da terra, o qual por nossos peccados era o mayor inimigo que os Portugueses tinhão naquelle tempo, por hũa briga que os nossos tiuerão cõ elle o anno dantes no porto de Lamau, na qual foy capitão hum Lançarote Pereyra natural de Ponte de Lima, em que lhe queimaraõ tres juncos, & lhe mataraõ duzentos homẽs.
  104. [1981](Cap. 143) Passados com bem de descanço nosso estes quarẽta & seis dias, sendo ja chegado tempo da monção, o Broquem nos mandou dar embarcação num junco de Chins que hia para o porto de Liampoo, no reyno da China, conforme ao que el Rey lhe tinha mandado, & ao Capitão do junco se tomarão grandes fianças a cerca da segurança de nossas pessoas, porque nos não fizesse traição no caminho.
  105. [1985](Cap. 143) Tem serras de que se tira muyta quãtidade de cobre, o qual por ser muyto, vai entre esta gẽte tão barato, que de veniaga carregão juncos delle para todos os portos da China, & Lamau, Sumbor, Chabaquee, Tosa, Miacoo, & Iapaõ, com todas as mais ilhas que estão para a parte do Sul, de Sesirau, Goto, Fucanxi, & Pollem.
  106. [1988](Cap. 143) Tẽ para a parte do Oeste cinco ilhas muyto grandes, em que ha muytas minas de prata, perolas, ambar, encẽço, & seda, pao preto, brasil, aguila braua, & muyto breu, inda que a seda he algum tanto menos que a da China.
  107. [1991](Cap. 143) Iaz mais ao Nornoroeste desta terra Lequia hum grande arcipelago de ilhas pequenas, donde se traz muyto grande quantidade de prata, as quais, segundo parece, & eu sempre sospeitey pelo que vy em Maluco nos requerimentos que Ruy Lopez de Vilhalobos general dos Castelhanos fez a dõ Iorge de Castro capitaõ que entaõ era da nossa fortaleza Ternate, deuẽ de ser as de que esta gente tem algũa noticia, as quais nomeauão por islas platarias; ainda que não sey com quãta razão, porque segundo o que temos visto & lido, assi em Ptolomeu como nos mais que escreueraõ da geografia, nenhum destes ouue que passasse do reyno de Sião & da ilha Çamatra, senão sós os nossos Cosmographos, os quais do tempo de Afonso Dalbuquerque para câ passaraõ hum pouco mais adiante, & tratarão ja dos Selebres, Papuaas, Mindanaos, Champaas, China, & Iapaõ, mas não ainda dos Lequios, nẽ dos mais arcipelagos que na grandeza deste mar estão ainda por descubrir.
  108. [2141](Cap. 151) E feita assi a esmo a aualiaçaõ & a lista desta desauenturada vingãça, se disse que morreraõ a fome, & a ferro cento & sessenta mil pessoas, a fora quasi outras tantas catiuas, & foraõ queimadas cento & quarenta mil casas, & mil & seiscẽtos templos, nos quais dizem que arderão sessenta mil estatuas de idolos, a mayor parte dellas cozidas em ouro, & tres mil elifãtes que se comeraõ no cerco, & seys mil peças de artilharia de ferro & de brõzo, & cem mil quintais de pimenta, & quasi outros tantos de drogas, sandalo, beijoim, lacre, pucho, roçamalha, aguila, canfora, seda, & outras muytas sortes de fazendas muyto ricas, & sobre tudo infinidade de roupas que de todas as partes da India aly tinhão vindo em mais de cem naos de Cambaya, Aachem, Melinde, Ceilão, & de todo o estreyto de Meca, Lequios, & China.
  109. [2172](Cap. 153) E porque Pero de Faria quando party de Malaca me dera hũa carta para elle, em que lhe pedia que se lâ me fosse necessario o seu fauor para o negocio a que me mandaua mo não negasse, assi por ser seruiço del Rey, como por lhe fazer a elle merce, tanto que cheguey a Martauão, onde o achey de morada, lhe dey a carta, & lhe disse tambẽ o aque hia, que era cõfirmar as pazes antigas que o Chaubainhaa por seus embaixadores fizera com Malaca quando Pero de Faria da outra vez fora capitão della, do qual tinha muyto conhecimento, & que para isso lhe trazia hũa carta de grande amizade, com hum presente de peças ricas da China.
  110. [2243](Cap. 158) Ha tambem nesta cidade muyta soma de almizcre muyto milhor que o da China, que tambem se leua para Martauão & Peguu, onde os nossos o compraõ para de vaniaga o leuarem a Narsinga, Orixaa, & Masulepatão.
  111. [2423](Cap. 165) He toda em roda cercada de dous terraplenos de cantaria muyto forte, com suas cauas largas por fora, & em todas as portas tem castellos cõ torres muyto altas, a qual nos affirmarão algũs mercadores a que o pregũtamos que tinha quatrocẽtos mil fogos, onde a mayor parte de todas as casas he de hum atê dous sobrados, & algũas dellas de muyto custo & riqueza, principalmẽte as dos mercadores & da gente nobre, a fora os aposẽtos dos senhores que estão separados por si dentro de cercas muyto grãdes, cõ terreyros de seus passatempos, & nas entradas delles arcos ao modo da China, & cõ jardins & pumares de muitas aruores, & cõ tãques de agoa muyto acõmodados aos gostos & delicias da vida a que esta gente he muyto inclinada.
  112. [2449](Cap. 166) Partidos nós ao outro dia desta villa de Bidor, seguimos nossa derrota por este grande rio de Pituy abaixo, & no mesmo dia fomos dormir a hũa abadia da ley do Quiay Iarem deos dos casados, situada à borda da agoa, em hum escampado de grande aruoredo, & de edificios muyto ricos, na qual o Embaixador foy bem agasalhado do Cabizondo & talagrepos della, & continuando daquy por nossas jornadas mais sete dias, chegamos a hũa cidade por nome Pauel, onde estiuemos tres dias prouendo as embarcaçoẽs do que lhe era necessario, & o Embaixador cõprou muytas peças ricas, & brincos da China que aquy se vendião muyto baratos, em que entrou grande quantidade de almizcre, porcellanas finas, seda, retrós, & pelles de arminhos, & outras doutras muytas sortes que nesta terra se gastão nos inuernos por ser fria, as quais fazẽdas se trazẽ por dẽtro do sertão em cafilas de elifãtes, & badas de terras muyto distãtes, segũdo o que aquy nos cõtarão algũs mercadores, os quais nos disserão que erão de hũa prouincia que se chamaua Friucaranjaa, alem da qual habitauão huns pouos com quem tinhão continua guerra que se chamauão Calogẽs, & Fungaos, gentes baças & muyto grãdes frecheyros, que tem as patas dos peis redondas como bois, mas cõ dedos & vnhas, & tudo o mais como os outros homens, tirando as mãos, que as tem muyto cabelludas.
  113. [2577](Cap. 171) E com isto me torney logo naquella mouçaõ a embarcar para a banda do Sul, & tornar de nouo a tentar a fortuna pelas partes da China & de Iapaõ, para ver se onde tantas vezes perdera a capa, me poderia desta vez melhorar noutra menos çafada que a que então sobre mim trazia.
  114. [2581](Cap. 172) E porque neste tempo a terra estaua muyto falta da pimenta que hiamos buscar, nos foy forçado inuernarmos aly aquelle anno, com determinação de para o outro seguinte nos irmos para a China.
  115. [2660](Cap. 179) De tudo o mais que socedeo atê nos partirmos para o porto da Çunda, & dahy para a China, & da desauentura que nesta viagem tiuemos.
  116. [2664](Cap. 179) E como então toda a terra andaua reuolta sem auer quietação em cousa nenhũa, pedimos licença ao Rey da Çunda para nos irmos para o porto de Banta onde estaua o nosso junco, pois a moução da China era ja chegada, & era tempo de fazermos nossa viagem, á qual nos elle deu muyto leuemente, & nos fez quita dos direitos de nossas fazendas, & nos deu cem cruzados a cada hũ, & aos quatorze que morreraõ na guerra, deu a cada hum trezentos para seus herdeyros, que nos tiuemos então por esmolla honrosa & de principe bem inclinado, & largo de condição, & de que todos ficamos muyto contentes.
  117. [2665](Cap. 179) Com isto nos fomos logo ao porto de Banta, onde nos detiuemos doze dias acabando de nos auiar para fazermos nossa viagem, & nos partimos para a China em cõpanhia de outros quatro nauios que para la hiaõ, & leuamos com nosco o Ioaõ Rodriguez, que era o Portuguez Gentio de que atras fiz menção que achamos em Passaruão, o qual era Bramene de hum pagode por nome Quiay Nacorel, & elle se chamaua Guaxitau facalem, que quer dizer, conselho de santo.
  118. [2666](Cap. 179) Este Ioaõ Rodriguez despois que chegou â China se embarcou para Malaca, onde foy de nouo reconciliado â nossa santa fé Catholica, & se lhe deu por penitencia que seruisse no hospital dos incuraueis hum anno, & elle o fez, no fim do qual tempo acabou sua vida, com mostras de bom & verdadeyro Christão, por onde parece que poderemos crer que nosso Senhor aueria misericordia com sua alma, pois a cabo de tantos annos de infiel o guardou para vir morrer em seu seruiço, pelo qual elle seja louuado para todo sempre.
  119. [2682](Cap. 180) E fazendose à vella nos leuaraõ a hũa aldea que estaua daly doze legoas, por nome Cherbom, onde nos venderaõ a todos oito, seis Portugueses, & hum moço Chim, & outro cafre por treze pardaos, que da nossa moeda saõ tres mil & nouecentos reis a hũ mercador Gentio da ilha dos Selebres, em cujo poder estiuemos vinte & seis dias, & nos tratou muyto bem assi de comer como de vestido, & despois nos vendeo a el Rey de Calapa por dezoito mil reis, o qual Rey vsou cõ nosco de tanta magnificencia que liuremente nos mandou para o porto da Çunda onde estauão tres naos de Portugueses, de que era capitão mòr hum Ieronymo Gomez Sarmento, que a todos nos fez muyto gasalhado, & nos proueo largamente de tudo o necessario, até que se partio para a China.
  120. [2684](Cap. 181) Avendo quasi hum mès que estauamos neste porto da Çunda bem prouidos dos Portugueses, como então era ja chegada a monção da China, as tres naos se partirão para o Chincheo, sem ahy na terra ficarem mais Portugueses que sós dous, que num junco de Patane se foraõ com suas fazendas para Sião, em cõpanhia dos quais me foy forçado irme eu tambem, porque me quiseraõ elles fazer o gasto da jornada, & me prometeraõ de me fazerem lâ algũ emprestimo, com que de nouo tornasse a tentar a fortuna, a ver se por importunação me podia melhorar com ella.
  121. [2686](Cap. 181) E auendo pouco mais de hum mês que estaua nesta cidade esperando pela monção da China para me yr para Iapaõ em companhia de outros seis ou sete Portugueses que para là hião, com cem cruzados de emprego, que os dous com que viera de Çunda me tinhão emprestado, chegou noua certa a el Rey de Siaõ, que então estaua nesta cidade de Odiaa com toda sua corte, que o Rey do Chiammay confederado cos Timocouhós, cos Laos, &cos Gueos, (que saõ quatro naçoẽs de gentes que contra o Nordeste senhoreaõ a mayor parte deste sertão, por cima do Capimper, & Passiloco, & saõ todos senhores absolutos sem darem obediencia a ninguem, muyto ricos & poderosos, & de grandes estados) tinhão posto cerco â cidade de Quitiruão, & morto o Oyaa Capimper fronteyro mór daquella arraya cõ mais de trinta mil homẽs.
  122. [2720](Cap. 183) Outra vez, no anno de 1545. sendo Simão de Melo capitão da mesma fortaleza de Malaca, vindo hum Luis de Mõtarroyo da China para Patane, acertou por caso fortuito de vento trauessaõ de dar com hũa nao sua â costa no porto de Chatir, abaixo de Lugor cinco legoas, onde pelo Xabandar da terra lhe foy tomada toda a fazenda que o mar lançou fora, & elle foy preso cõ todos os mais que se saluaraõ, que foraõ vinte & quatro Portugueses, & cinquenta moços & criãças pequenas, que ao todo erão setenta & quatro pessoas Christãs, & a fazenda que se saluou da nao montou quinze mil cruzados.
  123. [2767](Cap. 185) Sendo informado o Rey do Bramaa, que neste tempo reynaua tyrannicamente em Pegù, do triste estado em que estaua este imperio Sornau; & como todos os grandes delle eraõ mortos por causa dos successos atrâs contados, & que o nouo Rey era homem religioso, sem ter nenhum conhecimento das cousas da guerra, nem pratica algũa das armas, & de sua natureza pusillanimo, & sobre tudo muyto tyranno & mal quisto do pouo, tomando conselho cos seus na cidade de Anapleu onde entaõ residia, sobre esta taõ importante empresa, lhe disseraõ todos que por nenhum caso a deixasse, visto ser aquelle hum reyno dos milhores do mundo, assi em riqueza como em abundancia de todas as cousas, & o fauor que então tinha do tempo & da conjunção lho estauão prometendo taõ barato, que segundo parecia não lhe podia custar mais tomallo que o rendimẽto de hum anno, por muyto que quisesse despender dos seus tisouros, & que tomandoo, ficaua sendo com elle Monarcha dos Emperadores do mundo, & com a honra daquelle supremo titulo de senhor do elifante branco, pela qual causa necessariamente lhe auião de obedecer todos os dezassete Reys do Capimper que nelle professauão as leys das suas verdades; & por suas terras, & cõ suas ajudas podia passar em dez ou doze dias á China, onde se tinha por certo que estaua aquella grande cidade do Pequim, perola sem preço em todo o mundo, & sobre a qual o grande Tartaro, & o Siammon, & o Calaminhan tantas vezes se tinhaõ posto em campo com grossissimos exercitos.
  124. [2820](Cap. 189) Nos matos da costa tem muito brasil, & pao preto, de que todos os annos se carregão mais de cem jũcos para a China, Ainão, Lequios, Camboja, & Chãpá, & tẽ mais muita cera, mel, & açucar.
  125. [2824](Cap. 189) A costa deste reyno bebe em ambos os mares de Norte & de Sul, no da India por Iunçalão & Tanauçarim, & no da China por Mõpolocota, Cuy, Lugor, Chintabu, & Berdio.
  126. [2832](Cap. 189) E com quanto he este que digo, conhece superioridade por via de vassallagẽ & de tributo ao Rey da China, paraque com isso possa mandar os seus juncos ao porto de Comhay, onde fazem suas fazendas.
  127. [3058](Cap. 202) Acabada esta reuolta cõ tanto custo de todas as partes, como a terra ficou toda assolada, & os mercadores eraõ todos fugidos, & el Rey estaua com determinação de se sayr da cidade, nós os poucos Portugueses que ainda ahy estauamos (porque como o tẽpo nos deu lugar nos tornamos a surgir no porto da cidade) desconfiados de podermos ahy estar seguros, & de termos quem nos comprasse nossas fazendas, nos fizemos á vella, & nos passamos a outro porto daly nouẽta legoas, que se chamaua Hiamãgoo, na bahia de Canguexumaa, onde estiuemos dous meses & meyo sem podermos vender cousa nenhũa, porque toda a terra estaua taõ cheya de mercadarias da China, que se perdia do proprio mais das duas partes, porque não auia porto, nem enseada, nẽ angra em toda esta ilha de Iapaõ, onde não estiuessem surtos trinta quarenta juncos, & em algũas partes mais de cento, como foy em Minatoo, Tanoraa, Fiunguaa, Facataa, Angunee, Vbra, & Canguexumaa, de maneyra que naquelle anno foraõ da China a Iapaõ de veniaga passante de duas mil embarcaçoẽs, & era a fazenda tãta & tão barata, que o pico de seda que naquelle tempo se compraua na China por cem taeis, se vendia em Iapaõ por vinte & cinco, vinte & oito, & o mais a trinta, & ainda com muyta aderencia, & todas as mais sortes de fazendas tinhaõ nos seus preços esta mesma baixa, pelo qual ficamos de todo perdidos sem nos sabermos determinar o que fizessemos de nós.
  128. [3059](Cap. 202) Mas como Deos nosso Senhor com seus occultos juizos ordena todas as cousas suauemente por huns meyos que nos embaração o entendimẽto, permitio elle pela razão que elle só entende, que com a lũa noua de Dezembro, que foy aos cinco dias do més, sobreuiesse hũa taõ grande tempestade de chuueyros & vento, que destas embarcaçoẽs todas nenhũa ficou que não desse à costa, de maneyra que achou que chegara a perda que fez esta tormenta a mil & nouecentos & setenta & dous juncos, em que entraraõ vinte & seis de Portugueses, em que morreraõ quinhentos delles, a fora mais de mil pessoas Christãs, & se perderaõ oitocentos mil cruzados de emprego da China.
  129. [3073](Cap. 203) Partidos nós daquy deste rio de Hiamangoo, & enseada de Canguexumâ, aos 16. dias de Ianeyro do anno de 1547. quiz nosso Senhor que em quatorze dias de boa mouçaõ chegamos ao Chincheo, hum dos celebres & ricos portos do reyno da China, sobre o qual â entrada do rio então estaua hum famoso cossairo por nome Chepocheca cõ quatrocentas vellas grossas, & sessenta vancoẽs de remo, na qual frota tinha sessenta mil homẽs, de que sós os vinte mil eraõ do seruiço dos nauios, & os mais de peleja, & toda esta grande copia de gente sustentaua de soldos & mantimentos com as presas que fazia no mar.
  130. [3077](Cap. 203) Elle mostrou aluoroçarse tanto com isto, que nos, por isto que nelle vimos, nos fomos à nao, & trouxemos o Iapaõ ao esprital onde elle pousaua; o qual o recolheo então comsigo, & o leuou daly para a India para onde estaua de caminho, & despois que chegou a Goa o fez lá Christaõ, & lhe pós nome Paulo de santa Fé, o qual em pouco tempo soube ler & escreuer, & toda a doutrina Christã conforme á determinação deste bemauenturado padre, que era, tanto que viesse aquella moução de Abril, yr denunciar ao barbarismo desta ilha Iapaõ Christo Filho de Deos viuo posto na Cruz por peccadores, como elle custumaua dizer, & leuar este homem comsigo para seu interprete, como despois leuou & ao seu companheyro que tambem com elle juntamente se fez Christão, a que o padre pós nome Ioanne, os quais ambos lhe foraõ lâ despois muyto fieis em tudo o que cumprio ao seruiço de Deos, & por cuja causa o Paulo de santa Fè despois foy desterrado para a China, onde foy morto por hũs ladroẽs, como adiãte declararey quando fallar deste desterro.
  131. [3187](Cap. 208) E na companhia de oitocentas almas que com a sua doutrina aly conuertera, deixou o Paulo de santa fee, o qual perseuerou em as doutrinar por espaço de mais cinco meses que aly esteue cõ elles, no fim dos quais, por se ver muyto afrontado dos bonzos, se embarcou para a China, onde foy morto por hũs ladroẽs que no reyno de Liampoo andauão ao salto.
  132. [3198](Cap. 208) merces, mas porque esta noua me não pareceo tão verdadeyra como em meu coração desejo, determiney de mãdar saber por esse Christão a certeza della, pelo que lhes peço muyto que me mandẽ dizer donde vẽ, & de que porto partiraõ, & em que tẽpo determinão tornar para a China, porque queria, se Deos N. Senhor for disso seruido, trabalhar o possiuel por passar este anno à India, & de sy me escreuão por seus nomes, o da nao, & o do capitão della, & toda a mais certeza da paz & da quietação de Malaca, & se aparelhẽ, cõ furtarẽ aos negocios hũ pedaço de tẽpo, para examinarem suas consciencias, porque esta he a fazẽda em que o ganho està mais certo que na seda da China, por muyto que se nella dobre o dinheyro, porque eu determino, se Deos N. Senhor for seruido, ser lâ logo cõ elles tãto que vir seu recado, Christo Iesu, por quẽ he, nos tenha a todos de sua mão, & nos conserue nesta vida por graça no seu santo seruiço, amen.
  133. [3200](Cap. 208) O mensageyro cõ esta carta chegou onde nos estauamos, & de todos foy tão bẽ recebido como era razão, & lhe responderaõ logo por seis ou sete vias, assi o capitão como os mercadores, em que lhe derão muitas nouas da India & de Malaca, & que elles determinauão de se partirẽ daly a hũ més para a China cõ a sua nao, onde ficauão tres á carga que em Ianeyro auião de yr para Goa, em hũa das quais estaua seu amigo Diogo Pereyra, com quẽ sua reuerencia iria muyto á sua vontade.
  134. [3229](Cap. 210) Daquy entramos em hũa varanda muyto comprida que corria ao longo de hũas larangeyras, & passando por dia fomos dar noutra casa do tamanho das duas primeyras, na qual estaua o Facharandono irmaõ del Rey, que despois socedeo em Rey de Omãguche, a quẽ o padre fez hum grande acatamento, ao qual elle tambem respondeo cõ as mesmas cortesias dizendo, certificote padre bonzo que hoje he o dia do prazer desta casa, & em que el Rey meu senhor se ha por mais rico, que se tiuera os trinta & dous tisouros da prata da China.
  135. [3247](Cap. 211) Como despidindose o padre del Rey para se embarcar para a China o detiuerão mais algũs dias, & de algũas disputas que teue cos Bonzos.
  136. [3314](Cap. 213) De tudo o mais que o padre passou com estes bonzos atê se embarcar para a China.
  137. [3346](Cap. 214) Da grande tormenta que passamos indo de Iapaõ para a China, & como fomos liures della por oraçoẽs deste seruo de Deos.
  138. [3362](Cap. 214) Eu então porque vy o padre bocejar muytas vezes lhe disse, vase vossa reuerẽcia encostar hum pouco aly naquelle meu camarote, & quiçà que repousarâ, o que elle aceitou dizendo que fosse pelo amor de Deos, & que me pedia muyto que mandasse ao meu China que lhe fechasse a porta, & se não fosse daly, porque quando o chamasse lha abrisse, & isto podia ser das seis até as sete horas da menham pouco mais ou menos, & recolhido no camarote, esteue nelle todo o dia até quasi sol posto, & acertando eu neste comenos de chamar o China que estaua à porta da banda de fora paraque me desse hum pucaro de agoa, lhe pregũtey se dormia ainda o padre, & elle me respondeo, nunca dormio, mas está de joelhos chorando de bruços sobre o catele, & eu lhe disse então que se tornasse a assentar â porta, & que lhe acudisse quando chamasse.
  139. [3371](Cap. 215) Dos varios casos que acontecerão a este bemauenturado padre atê chegar à China, & da maneyra da sua morte.
  140. [3372](Cap. 215) Correndo nos daquy desta paragem, onde Deos nosso Senhor por sua misericordia, & pelas oraçoẽs deste bemauenturado padre nos quis fazer esta tão milagrosa merce, em treze dias de nossa viagem lhe aprouue que chegassemos ao reyno da China, & surtos no porto de Sanchão, onde naquelle tempo se fazia o nosso trato, jâ quando ahy chegamos, por causa de ser muyto tarde não achamos mais que hũa só nao, de que era capitão Diogo Pereyra, & esta jâ de verga dalto para se partir ao outro dia para Malaca, na qual o padre se embarcou, porque a de Duarte da Gama em que viera de Iapão lhe era necessario yr inuernar a Sião, por vir aberta pela roda de proa do grande trabalho que passara na tormenta que atras tenho contado, & là se concertar & prouer de muytas cousas de que tinha necessidade.
  141. [3373](Cap. 215) Nesta viagem que o padre fez da China para Malaca em companhia de Diogo Pereyra que era muyto seu amigo, lhe deu conta dos termos em que ficauão as cousas da Christandade em Iapão, & quão importante lhe era a elle trabalhar todo o possiuel por ver se podia ter entrada na China, assi para lá diuulgar, & dar noticia a aquella gentilidade da ley de Christo nosso Senhor, como por acabar de tomar conclusaõ cos bonzos do reyno de Omanguche, os quais vendose confundidos com as praticas & disputas que tiuera com elles acerca da Fê, lhe responderaõ já por derradeyro, que como da China lhe vieraõ aquellas leys que elles pregauão, & que auia seiscentos annos que tinhaõ aprouadas por boas, se não desdiriaõ por nenhum caso se não quando soubessem que elle conuencera os Chins com as proprias razoẽs com que a elles lhes fizera confessar ser esta ley boa & verdadeyra, & ser para ouuir o que elle pregaua.
  142. [3375](Cap. 215) Este negocio pos o padre em pratica perante os mais entendidos que hião na nao, & lhe pedio nelle seus pareceres, por serem homens que desta monarchia da China tinhaõ muyto conhecimento & experiencia, & elles lhe responderaõ que por nenhum caso era possiuel ter o padre entrada na China para aquelle effeito, senaõ com o Visorrey da India mandar lâ hum embaixador em nome del Rey nosso Senhor para mais autoridade, & com hum grande presente, offerecendolhe sua amizade noua com palauras formadas ao modo com que se lhe custuma falar.
  143. [3377](Cap. 215) Sobre este negocio se praticou naquella viagem por muytas vezes, & o Diogo Pereyra se offereceo tomar a cargo por seruiço de Deos, & pela amizade que tinha co padre, metelo na China â custa de sua fazenda, & fazer toda a despesa que fosse necessaria assi do presente como de tudo o mais, o que o padre aceitou delle, & lhe prometeo por isso satisfaçaõ del Rey nosso Senhor.
  144. [3380](Cap. 215) Elle contente assaz cõ esta boa reposta do Visorrey, se auiou o mais depressa que pode de tudo o que lhe era necessario: & dandolhe o Visorrey prouisoẽs para Diogo Pereyra yr nesta santa jornada por embaixador a el Rey da China, cometidas a dom Aluaro de Tayde que então estaua por capitão da fortaleza, se tornou a Malaca, porem o capitaõ lhe naõ quiz guardar as prouisoens, porque ao tempo que o padre chegou estaua muyto de quebra com Diogo Pereyra por lhe não emprestar dez mil cruzados que lhe pedira.
  145. [3381](Cap. 215) E trabalhando o padre todo o possiuel por soldar com sua virtude esta quebra, & esta discordia, nunca já mais pode, porque como ella estaua fundada em odio & cubiça, & o demonio era o que atiçaua este fogo, em vinte & seis dias em que sobre isso se fizerão algũas diligencias nunca o capitão quiz conceder no que o padre pedia, nem dar licẽça paraque Diogo Pereyra o leuasse â China, como da India vinha ordenado, com hum grandissimo gasto jâ feito, dando em tudo nouos entendimentos ás prouisoẽs do Visorrey, & dizendo a modo de escarneo que aquelle Diogo Pereyra que sua senhoria dezia era hum fidalgo que ficaua em Portugal, & não aquelle que o padre apresentaua, que fora ontem criado de dõ Gonçallo Coutinho, & não tinha partes para yr por embaixador a hum tamanho monarcha como era o Rey da China.
  146. [3382](Cap. 215) Pelo qual alguns homens honrados, mouidos do zelo da honra de Deos, vendo que este negocio caminhaua sempre para pior, sem o capitão querer fazer nenhũa razão de sy, nem ter respeito ao que se lhe punha diante, se ajuntaraõ todos hũa menham, & lhe foraõ pedir que não quisesse tomar sobre sy hũa cousa que tanto tocaua em detrimento da honra de Deos, porque lhe seria tomada disso muyto estreita conta na outra vida, & que olhasse tambem a vnião com que todo o pouo clamaua delle, por tolher a hum homem taõ santo como aquelle yr prégar a ley de Christo a aquella gentilidade, por meyo do qual parecia que queria nosso Senhor abrir hũa porta ao seu Euangelho, para saluaçaõ de tãtas almas, ao que elle dizem que respondeo, que ja era velho para lhe darem conselho, que se o padre queria tomar esse trabalho por Deos, que se fosse ao Brasil, ou a Manamotapa que eraõ terras onde tambem auia Gentios como na China, porque tinha jurado que em quanto elle fosse capitão, naõ auia Diogo Pereyra de yr à China, nẽ por mercador, nem por embaixador, & que lhe tomasse Deos disso conta, porque elle lha daria quando lha pedisse, por que aquella ida que Diogo Pereyra queria fazer à sombra do padre para trazer cem mil cruzados da China, era mais propriamente sua pelos seruiços do Conde Almirante seu pay, que de hum criado de dom Gonçalo Coutinho, a quem o padre, sem ter razão, queria sustentar em cousa taõ mal feita, & com isto os despidio.
  147. [3389](Cap. 215) E sem embargo do tudo isto o padre se embarcou nesta mesma nao para a China, mas bem differente do que ouuera de yr se fora com Diogo Pereyra, mas elle ficou em Malaca, & a nao foy toda por cõta do capitão & dos seus apaniaguados, & cõ capitão posto de sua mão, & o padre foy ingreme, sem autoridade nenhũa, às esmollas do contramestre, & sem leuar outra cousa mais que só hũa loba que leuaua vestida.
  148. [3401](Cap. 215) Porem como o mesmo Deos, cujos segredos ninguem pode rastejar, não era seruido que elle entrasse na China, & a razão porque elle só a sabe, o desuiou por hũs meyos que naturalmente parecião ser justos, como o saõ todas as suas cousas, os quais foraõ confessar este Gentio Chepocheca que elle estaua muyto satisfeito do interesse que lhe dauão por esta yda, porem que o seu coração lhe dezia que tal não fizesse porque lhe auia de custar a vida a elle & a todos os seus filhos.
  149. [3407](Cap. 216) Procurãdose logo o enterramento deste bemauenturado corpo, se pos em ordem todo o necessario o milhor que entaõ pode ser cõforme â disposiçaõ da terra em que estauão, & ao Domingo á tarde duas horas despois da vespera o leuaraõ ao lugar onde a coua estaua feita, que poderia ser pouco mais de hum tiro de pedra acima da praya, na qual foy enterrado com grande sentimento de todos, principalmente dos mais virtuosos & tementes a Deos, porem não faltaraõ algũs em quem este sentimento se não enxergou de fora, se de dentro o tinhão ou não, Deos o sabe, elle os julgue que sabe a verdade das cousas, & as razoẽs dellas, mas o que se soube publicamente foy que daly a quinze dias escreuendo hũ homem, que por sua honra não nomeyo, hũa carta a dom Aluaro, em hum vancaõ que partio da China para Malaca, num dos capitolos della lhe disse assi secamente, câ morreo mestre Francisco, mas na sua morte não fez milagre, & cá jaz enterrado nesta praya de Sanchaõ cõ os mais que na nao falleceraõ, & quando nos embora formos, o leuaremos se estiuer para isso, porque não digaõ os praguentos de Malaca que naõ somos Christãos como elles.
  150. [3411](Cap. 216) O santo corpo foy metido em hũa caixa que pela medida delle aly logo se fez, & o leuaraõ â mesma não em que veyo, na qual foy ate Malaca num camarote do piloto, onde despois que chegou, ao outro dia ás dez horas o prouedor da misericordia com toda a irmandade, & o Vigayro, & todos os clerigos da igreja mayor, acompanhados de toda a gente da terra, saluo do capitão & dos seus aceitos, o foraõ buscar á nao, & o leuaraõ á irmida de nossa Senhora do outeyro, que era a casa onde naquella terra sempre na vida fizera sua habitação, & donde auia noue meses & vinte & dous dias que se embarcara para a China.
  151. [3426](Cap. 217) E logo atras nesta mesma ordẽ estauão mais outras dez ou doze embarcaçoẽs, de maneyra que quãdo chegou ao caiz iria acõpanhado de vinte embarcaçoẽs de remo, em que iriaõ cẽto & cinquenta Portugueses da China & de Malaca, gẽte toda muyto limpa & rica, & estes, como digo todos cõ tochas & cirios acesos, & os seus moços, que seriaõ mais de trezeẽtos, com vellas grãdes como brandoẽs, o qual autorizado & Christaõ aparato causaua muita deuação em todos os que o viaõ.
  152. [3463](Cap. 220) E chegando a ella ao outro dia, prouue a nosso Senhor que a achamos liure daquelle trabalho, mas com fazer muyta agoa pela roda de proa, que despois se lhe tomou em Patane onde chegamos daly a sete dias, & eu cõ outros dous desembarquey em terra, & fuy ver el Rey, & darlhe hũa carta do capitaõ de Malaca, o qual nos recebeo com muyto gasalhado, & lendo a carta do capitão, por ella entendeo que a tençaõ com que aly vinhamos, era para comprarmos mantimẽtos, & nos prouermos de algũas cousas que não traziamos de Malaca, & proseguirmos nossa viagem â China, & dahy a Iapão, para o padre com os mais que leuaua comsigo pregarem lá a ley Christam a aquelles Gentios; pelo qual el Rey, despois de estar hũ pouco pensatiuo, sorrindose para os seus lhes disse, quanto milhor fora a estes, ja que se auenturaõ a tantos trabalhos, irem â China fazerse ricos, que pregarem patranhas a reynos estranhos.
  153. [3468](Cap. 220) O padre mestre Belchior praticou logo cos capitaens dellas sobre o que faria de sy, & por parecer de todos foy assentado que mandasse a carauella em que vinha para Malaca por naõ ser embarcação sufficiente para taõ lõga viagem como era daly a Iapaõ, o qual se fez assi, & o padre se embarcou com hũ Francisco Toscano homem rico & honrado, que lhe fez o gasto em toda a viagem, & muyta parte do tempo que esteue na China a elle & a toda a companhia que leuaua comsigo.
  154. [3472](Cap. 221) Como desta ilha de Champeiloo fomos ter â de Sanchaõ, & dahy a Lampacau, & dasse conta de dous casos desestrados que acontecerão na China a duas pouoaçoẽs de Portugueses.
  155. [3474](Cap. 221) Despois que isto foy preparado da maneyra que então parecia que conuinha, o padre mestre Belchior disse Missa de festa, cantada, que os mininos orfaõs & algũs homẽs destros no canto officiaraõ com muyto boas fallas, & com ornamentos de brocado, & com castiçais & alampadas de prata, em que ouue sermão breue apropriado à solẽnidade que se festejaua, em que se tratou da vida & trabalhos do santo defunto, & do grande zelo que sempre tiuera da honra de Deos, & da augmentação da sua santa fé, & da saluação das almas, & do santo proposito cõ que entrara naquelle reyno da China, onde nosso Senhor fora seruido de o chamar para a sua gloria, o qual sermão foy ouuido de todos cõ muyta deuação, & não sem algũas lagrimas.
  156. [3485](Cap. 221) Logo dahy a dous annos, querendo os Portugueses tornar a fazer sua habitaçaõ em outro porto que se chamaua Chincheo no mesmo reyno da China cẽ legoas abaixo deste de Liãpoo, para terem nelle seus tratos & mercancias, os mercadores da terra pelo muyto proueito que disso lhes vinha, acabaraõ cos Mandarins, por peitas muyto grossas que por isso lhes deraõ, que dissimuladamente o consentissem.
  157. [3495](Cap. 221) Assi que destes dous tristes successos que tenho contado, venho a inferir, que parece que as nossas cousas que agora correm na China, & a quietação & confiança com que tratamos com ella, auendo que estas pazes que ella tem com nosco saõ firmes & seguras, não durarão mais que em quanto nossos peccados não ordenarem que aja algum motiuo como os passados para se ella aleuantar contra nòs, o qual nosso Senhor não permitta pela sua infinita misericordia.
  158. [3503](Cap. 222) No primeyro dia de Feuereyro tremeo a terra das onze horas da noite atè a hũa, & ao outro logo seguinte, da meya noite atê as duas horas, & ao outro da hũa atè as tres, com hum grande & espantosissimo estrondo de curiscos, & tempestade, & arrebentando toda a terra em borbolhoens dagoa que do centro della parecia que vinha feruendo, se souerteo supitamente distancia de sessenta legoas em roda, sem de toda a gente se saluar mais que só hum minino de sete annos, que por espanto se leuou a el Rey da China.
  159. [3513](Cap. 222) Affirmouse tambẽ por geral dito de todos, que nestes tres dias em que isto acõteceo em Sansy, chouera sempre sangue na cidade do Pequim onde el Rey da China então residia, pela qual causa a mayor parte della se despejou, & elle fugio para o Nanquim, onde tambem se disse que mandara fazer muyto grãdes esmollas, & libertar infinidade de presos, no qual cõto permitio Deos que foraõ hũs cinco Portugueses que auia mais de vinte annos que estauão presos na cidade de Pocasser, os quais aquy em Cantão, onde vieraõ ter, nos cõtaraõ muyto grandes cousas, entre as quais nos affirmaraõ que passaraõ as esmollas que el Rey fez por este caso, de seiscẽtos mil cruzados, a fora tẽplos muyto sumptuosos que edificou para aplacar a ira de Deos, em que entrou hũ que se fez nesta cidade por nome Hifaticau, amor de Deos, casa muyto sumptuosa & de grande magestade.

Chins 1(1), 40(1), 42(1), 44(1), 45(1), 46(1), 47(1), 48(1), 50(2), 52(1), 54(1), 55(3), 57(1), 58(2), 63(4), 64(4), 65(2), 66(2), 68(4), 70(2), 71(1), 72(1), 74(4), 75(1), 76(1), 78(2), 79(2), 81(1), 83(1), 88(4), 89(7), 90(2), 91(2), 92(2), 93(1), 94(2), 95(2), 96(5), 97(1), 103(2), 105(4), 107(2), 108(2), 109(5), 111(2), 117(2), 118(2), 119(3), 121(1), 123(1), 133(3), 134(2), 137(2), 140(2), 142(3), 143(2), 159(1), 166(2), 178(1), 179(4), 180(1), 202(1), 215(1), 220(1), 221(4).

Nas orações: 3, 486, 510, 534, 545, 563, 574, 589, 605, 606, 626, 653, 655, 664, 670, 690, 708, 754, 758, 763, 764, 767, 769, 779, 788, 800, 807, 820, 823, 824, 827, 842, 855, 869, 899, 901, 904, 910, 920, 923, 948, 949, 955, 959, 975, 1000, 1050, 1055, 1061, 1066, 1072, 1079, 1081, 1084, 1086, 1088, 1100, 1115, 1122, 1128, 1148, 1158, 1164, 1176, 1177, 1180, 1188, 1191, 1194, 1197, 1207, 1316, 1325, 1360, 1362, 1367, 1376, 1405, 1413, 1421, 1423, 1447, 1451, 1453, 1457, 1460, 1483, 1489, 1582, 1583, 1586, 1589, 1609, 1611, 1630, 1666, 1806, 1816, 1819, 1825, 1829, 1889, 1890, 1932, 1942, 1956, 1960, 1966, 1981, 1989, 2261, 2454, 2462, 2653, 2671, 2673, 3060, 3373, 3471, 3475, 3480, 3490, 3491.

  1. [3](Cap. 1) Mas por outra parte quãdo vejo que do meyo de todos estes perigos & trabalhos me quis Deos tirar sempre em saluo, & porme em seguro, acho que não tenho tanta razão de me queixar por todos os males passados, quãta de lhe dar graças por este só bẽ presente, pois me quis conseruar a vida, paraque eu pudesse fazer esta rude & tosca escritura, que por erança deixo a meus filhos (porque só para elles he minha tenção escreuella) paraque elles vejão nella estes meus trabalhos, & perigos da vida que passei no discurso de vinte & hũ ãnos em que fuy treze vezes catiuo, & dezasete vendido, nas partes da India, Etiopia, Arabia felix, China, Tartaria, Macassar, Samatra, & outras muitas prouincias daquelle oriental arcipelago, dos confins da Asia, a que os escritores Chins, Siames, Gueos, Elequios nomeão nas suas geografias por pestana do mũdo, como ao diante espero tratar muito particular, & muito diffusamente, & daqui por hũa parte tomem os homẽs motiuo de se não desanimarem cos trabalhos da vida para deixarem de fazer o que deuem, porque não ha nenhũs, por grandes que sejão, com que não possa a natureza humana, ajudada do fauor diuino & por outra me ajudem a dar graças ao Senhor omnipotente por vsar comigo da sua infinita misericordia, a pesar de todos meus peccados, porque eu entendo & cõfesso que delles me nacerão todos os males que por mim passarão, & della as forças, & o animo para os poder passar, & escapar delles com vida.
  2. [486](Cap. 40) Antonio de Faria, vendo o que lhe disse este moço cafre, o qual lhe affirmara por muytas vezes que toda a gente de peleja o perro aly trouxera comsigo, & que no junco não ficarão mais que quarẽta marinheyros Chins, determinou de se aproueitar daquelle bõ successo.
  3. [510](Cap. 42) Aquy dos quatorze soldados que hião na lorcha, desembarcaraõ os cinco em terra, com mais dous Chins da esquipação que deixarão em refẽs suas molheres no junco, & correraõ o lugar todo por fora em roda, em que gastarão quasi tres horas, sem auer nunca sentimento delles, & tornandose a embarcar, se sayrão a remo & à vella, sem rumor ou rebuliço algum, por se temerem que se ahy quisessem bulir com algũa cousa, nenhũ delles escaparia.
  4. [534](Cap. 44) Antonio de Faria acenou então aos soldados que leuassẽ mão do jogo, & da porfia que tinhão, & escondessem as peças que estauão rifando, porque as não conhecessem aquelles homẽs, que os terião em cõta de ladroẽs; & elles o fizerão logo, & querendo satisfazer à desconfiança dos Chins, por não acabarem de se certificar de todo no que ja imaginauão, que era sermos nos gente de mao titulo, lhes mandou abrir as escotilhas do junco que a noite dantes se tomara ao Capitão Sardinha, que estaua carregado de pimẽta, os quais em o vendo abarrotado da maneyra que estaua, ficarão algum tanto mais quietos, & fora de suas sospeitas, dizendo hũs para os outros, òra, ja que sabemos que saõ mercadores, bẽ lhe podemos responder a suas perguntas, porque não cuydem de nos que por sermos boçais o deixamos de fazer, como homẽs que não sabemos mais que pescar ostras & peixe.
  5. [545](Cap. 45) a que elle respondeo, aconselhote como amigo que não entres em nenhum desta ilha de Ainão, nẽ te fies dos Chins desta terra, porque te affirmo que nenhum te ha de tratar verdade em cousa que te diga, & fiate de mim, porque sou muyto rico, & não te ey de mentir como homẽ pobre.
  6. [563](Cap. 46) E perguntãdolhe Antonio de Faria se eraõ aquelles mininos filhos dos Portugueses que dezia, respondeo que naõ, mas que eraõ filhos de Nuno Preto, & de Giaõ Diaz, & de Pero Borges cujos eraõ tãbem os moços & as moças, os quais Portugueses elle tambem matara em Mompollacota na barra do rio de Siaõ, num junco de Ioaõ de Oliueyra, em que tamben matara dezasseis Portugueses, & que a elles ambos, hũ por ser carpinteyro, & outro por ser calafate, dera a vida, & que auia ja perto de quatro annos que os trazia assi cõsigo, matandoos sempre de fome, & de açoutes, & que quando nos cometera, naõ lhe pareceo que eraõ Portugueses, se naõ Chins mercadores como os mais que elle sempre custumaua a roubar onde os achaua de bõ lanço, como cuydaua que achara a nòs; & perguntado se conheceria o ladrão entre aquelles mortos, disse que sy, cõ que Antonio de Faria se leuantou logo, & tomandoo pela mão se passou com elle ao outro jũco que estaua abalroado com este, & mostrandolhe todos os que estauão mortos no conuès, disse que nenhum daquelles era, & mandando esquipar as manchuas, o foy em pessoa buscar entre os outros mortos que andauaõ pelo mar, onde foy achado com hũa grande cutillada na cabeça, & hũa estocada por meyo dos peitos, & trazendoo acima ao conues do junco lhe tornou a perguntar se era aquelle, a que elle respondeo que sy sem falta nenhũa, a que Antonio de Faria lhe deu credito por causa de hũa cadea de ouro grossa que trazia cingida, com hum idolo de duas cabeças da feiçaõ de lagarto, tambẽ de ouro, co rabo & maõs esmaltados de verde & preto.
  7. [574](Cap. 47) Chegada a lanteaa em que vinha o tio da noiua com esta carta, Antonio de Faria mandou esconder todos os Portugueses, & que não aparecessem mais que sòs os Chins que leuauamos por marinheyros, porque não duuidasse chegar a nós, a lanteaa chegandose muyto seguramẽte ao jũco, tres dos que vinhaõ nella subiraõ logo acima, & preguntaraõ pelo noiuo, mas a reposta que os nossos lhe deraõ foy apanhalos a todos assi como vinhão, & dar com elles da escotilha embaixo, & como todos elles, ou os mais vinhão bebados, nem os que ficauão na lanteaa sentiraõ o rumor que os nossos fizeraõ, nem se puderaõ afastar taõ depressa que de cima do chapiteo lhe não dessem hum cabo â ponta do masto com que o atracarão de maneyra que nunca ja mais se puderaõ desembaraçar, & lançandolhe de cima algũas panellas de poluora, os fizeraõ lançar a todos ao mar, & saltaraõ logo na lanteaa seis ou sete soldados com outros tantos marinheyros & se senhorearaõ della, na qual despois foy necessario tornar a recolher os tristes que andauão na agoa bradando que se afogauão.
  8. [589](Cap. 48) E chegado de todo o numero de almadias hũa somente a bordo, pedio seguro para entrarem, a que foy respondido, que sem nenhum receyo o podião fazer, porque todos eramos seus irmãos; & com isto, de noue que vinhão na almadia, os tres somente subirão ao junco, & Antonio de Faria lhes fez muyto gasalhado, & fazẽdoos assentar em hũa alcatifa, lhes disse que elle era hum mercador natural do reyno de Siaõ, & que vindo de veniaga para a ilha de Ainão, lhe disseraõ que naquella cidade faria milhor & mais seguramẽte sua fazenda que em outra parte, por serem os mercadores & o pouo della de mais verdade que os Chins daquella costa & ilha de Ainão, a que responderaõ, não estàs errado nisso que dizes, por que se es mercador, como pareces, crè que em tudo se te farà aquy muyta honra, pelo qual seguramente podes dormir teu sono descansado, sem te arreceares de nenhũa cousa.
  9. [605](Cap. 50) E auendo ja algũs dias que continuaua com assaz de trabalho nesta enseada da Cauchenchina, estando nòs hum dia do nacimento de nossa Senhora que he a oito dias de Setembro, metidos num porto que se chamaua Madel, com receyo da lũa noua, que aquy neste clima vem muytas vezes taõ tempestuosa de ventos & chuuas, que não ha nauio que a possa aguardar, à qual tormenta os Chins chamão tufão, auendo ja tres ou quatro dias, que o tempo andaua toldado, & com mostras do que se receaua, & os juncos se vinhão meter não colheitas que achauão mais perto, prouue a nosso Senhor que na volta de muytos que neste porto entraraõ, fosse hum de hum cossayro muyto afamado que se chamaua Hinimilau, Chim de nação, que de Gentio que era se tornara Mouro auia pouco tempo, & parece, segundo se presumia, que prouocado pelos cacizes da seita Mafometica, que nouamente tinha tomado, ficou taõ inimigo do nome Christaõ, que dezia publicamẽte que lhe deuia Deos o Ceo pelo grande seruiço que lhe tinha feito na terra em a yr pouco a pouco despejãdo da mà geração Portuguesa, que por leite mamado nos peitos das mays se deleitaua em offensas suas como os proprios habitadores da casa do fumo; & assi por estas palauras, & por outras semelhãtes, dezia de nós cousas tão torpes & abominaueis, quais nunca se imaginaraõ.
  10. [606](Cap. 50) Entrando este cossairo pelo rio dentro, num junco muyto grande & alteroso, com a gente toda occupada no marear das vellas, por ser grãde a çarraçaõ do tempo, & com muyto vento & chuueyros, em prepassando por junto donde nòs estauamos surtos, nos saluou a Charachina, a que respondemos pelo mesmo modo, como se custuma nestas entradas, sem ate entaõ nos conhecer por Portugueses, nem nòs a elles, mais que somente cuydarmos que eraõ elles Chins como os outros, que cada hora entrauão por causa do tempo de que vinhaõ fugindo.
  11. [626](Cap. 52) E deste honrado feito ficaraõ os Chins taõ assombrados, que pasmauão onde ouuiaõ nomear Portugueses, em tanto que vendo os Necodàs senhorios dos juncos que estauão naquelle porto, que a cada hum delles se podia fazer outro tanto, se ajuntaraõ todos em hũa consulta, a que elles chamão bichara, & nella elegeraõ entre sy dous dos mais hõrados, & mais sufficientes para o que pretẽdiaõ, pelos quais como Embaixadores mandaraõ dizer a Antonio de Faria, que como a Rey do mar lhe pedião que debaixo do seguro de sua verdade os quisesse emparar, para poderem sayr daly onde estauão a fazer suas viagẽs, antes que se lhe acabasse a monçaõ, & que lhe darião logo por isso em reconhecimento de tributarios, & subditos seus como escrauos, vinte mil taeis de prata, de que logo sem falta nenhũa lhe fariaõ bõ pagamento, como a senhor.
  12. [653](Cap. 54) Os Chins que estauão descuydados disto, tanto que sentiraõ a reuolta, acudiraõ logo à praya com grande pressa, & vendo a embarcaçaõ tomada ficarão tão pasmados que nenhum delles se soube dar a conselho; & tirandolhe nós com hum meyo berço de ferro que trazião na lanteaa, se acolheraõ todos ao mato, onde então ficaraõ chorando o successo da sua mà fortuna, como nos atê então tinhamos chorado o nosso.
  13. [655](Cap. 55) Despois de sermos todos recolhidos na lanteaa, & seguros de nos poderem os Chins empecer em cousa algũa, nos pusemos a comer muyto descançadamẽte o seu jantar que hũ velho lhe tinha aparelhado, o qual era dous tachos de arroz com adẽs & toucinho picado, que então nos foy a todos de muyto gosto, segundo o apetite que todos lhe tinhamos.
  14. [664](Cap. 55) Com esta determinação demos a vella ja quasi sol posto daquy desta ilha, ficando os Chins na praya como pasmados, & corremos aquella noite com a proa a Lesnordeste, & sendo ja quasi menhã ouuemos vista de hum ilheo que se dezia Guintoo, no qual tomamos hũa barcaça de pescadores cõ muyta soma de peixe fresco, da qual tomamos o necessario, cõ mais oito homẽs de doze que nella achamos, para nos marearem a lanteaa, porque a nossa gẽte não estaua para o poder fazer, por vir muyto fraca & debilitada dos trabalhos passados.
  15. [670](Cap. 55) Estaua então naquelle porto surto hum junco pequeno só, & sem auer outro nenhum, o qual tinha pouca gente, & esses que eraõ estauaõ então todos dormindo, & vendo Antonio de Faria que era esta boa occasiaõ para effeituar seu intento, fez logo arriar da amarra, & se igualou com elle, & escolhendo dos vinte & sete soldados que leuaua os quinze, com mais oito moços, se subio acima ao conuès do junco, sem atè então ser sentido de ninguẽ, & achando nelle dormindo seis ou sete Chins marinheyros, os mandou atar de peis & de maõs, ameaçandoos que se bradassem os auia de matar a todos, pelo que nenhum delles com medo ousou de fallar, & cortandolhe ambas as amarras com que estaua surto, o mais depressa que pode se fez à vella para fora do rio, & velejando tudo o que restaua da noite sempre coa proa no mar, foy amanhecer junto de hũa ilha que se chamaua Pullo Quirim noue legoas dõde tinha partido.
  16. [690](Cap. 57) Chegados nòs ao porto do Chincheo achamos ahy cinco naos de Portugueses que auia ja hũ mès que eraõ chegadas destas partes que disse, dos quais fomos muyto bem recebidos & agasalhados com muyta festa & contentamento, & despois que nos deraõ nouas da terra, & da mercancia, & da paz & quietaçaõ do porto, nos disseraõ que de Liampoo nao sabião nada, mais que dizeremlhe os Chins, que auia là muytos Portugueses de inuernada, & outros vindos nouamente de Malaca, da Çunda, de Sião, & de Patane, & que fazião na terra suas fazendas pacificamente, & que a armada grossa de que nos temiamos, não era là, mas que se presumia que era ida âs ilhas do Goto em socorro do Sucão de Pontir, aquẽ se dezia que hum seu cunhado tyrannicamente tinha tomado o reyno, & porque este Sucão se fizera nouamẽte subdito do Rey da China, com tributo de cem mil taeis cada anno lhe dera aquella armada dos quatrocẽtos juncos, em que se affirmaua que hião cem mil homẽs para o meterẽ de posse do reyno ou senhorio que lhe tinhão tomado; com a qual noua todos ficamos descançados, & demos por isso muytas graças a nosso Senhor.
  17. [708](Cap. 58) Acharaõse tambem na armada cento & sessenta espingardas, & quarenta peças de artilharia de bronze, em que entrauão doze falcoẽs, dous camellos, hũa espera, & cinco roqueyros que tirauão pilouros de pedreyros, & os mais berços, com dous caẽs como meyas esperas, & sessenta quintais de poluora, cinquenta & quatro de bõbarda, & seis de espingarda, a fora a que ja era dada aos arcabuzeyros, & nouecentas panellas, as quatrocentas de poluora, & as mais de cal virgem em pò, como os Chins custumão, & muytas rocas de pedra, & setas, & lãças, & bombas de fogo que hum leuantisco nos fazia por seu estipendio que por isso se lhe daua, & quatro mil zargunchos com põtas de ferro, que ao abalroar seruem de arremesso, & seis bateis de calhao, por ser cousa cõ que toda a esquipaçaõ peleja, & doze arpeos de abalroar com suas fateixas talingadas em cadeas de ferro muyto compridas, & outros muytos artificios de fogo que os Chins nos inuentaraõ com cubiça do muyto que por isso se lhes daua.
  18. [754](Cap. 63) Como aquella braua tormenta acalmou de todo, Antonio de Faria se passou logo ao outro junco grande que tinha tomado a Coja Acem de que então era Capitão Pero da Sylua de Sousa, & dando a vella se partio com toda a mais cõpanhia que eraõ tres juncos & hũa lorcha ou lanteaa como lhe chamão os Chins, & foy surgir na angra de Nouday, para dahy saber nouas dos treze catiuos; & mãdou logo â boca da noite dous baloẽs esquipados a espiar o porto, & sondar o rio, & ver o surgidouro & o sitio da terra, & que nauios estauão dentro, & outras cousas necessarias a sua determinaçaõ, & mandoulhes que trabalhassem por tomarem algũs homẽs naturaes da cidade, para saber delles a certeza do que pretendia, & lhe darem nouas do que era feito dos Portugueses, porque arreceaua que os tiuessem ja leuados pela terra dentro.
  19. [758](Cap. 63) E jurandolhe Antonio de Faria com toda a cerimonia necessaria a seu intento, que elle lhe cumpriria sua palaura, o Chim se ouue por satisfeito, & lhe disse: esses teus homẽs por quem preguntas, eu os vy ha dous dias prender na chifanga de Nouday, & botarlhe ferros nos peis, dando por razão que eraõ ladroẽs que roubauaõ as gentes no mar, de que Antonio de Faria ficou suspenso & assaz enfadado, parecẽdolhe que podia ser aquillo assi: & querendo logo com muyta pressa prouer no remedio da soltura delles, pelo perigo que entendia que podia auer na tardança, lhes mandou hũa carta por hum destes Chins, ficando por elle em refẽs todos os mais, o qual se partio logo pela menham muyto cedo; & como a estes Chins lhes releuaua verẽse fora do em que se vião, este, que era marido de hũa das duas que foraõ tomadas na barca da louça, & então ficauão no junco, se deu tanta pressa, que quando veyo ao meyo dia tornou com a reposta escrita nas costas da carta, & assinada por todos cinco, em que breuemente lhe relatauaõ a cruel prisaõ em que os tinhaõ, & que sem falta nenhũa os auião de matar por justiça, pelo que lhe pedião pelas chagas de nosso Senhor Iesu Christo que os não deixasse aly perecer ao desemparo, & que lhe lembrasse sua fè & verdade, pois, como sabia, por seu respeito vieraõ ter a aquelle triste estado, & outras piedades a este modo, como de homẽs que estauão catiuos em poder de gente cruel & fraca como saõ os Chins.
  20. [763](Cap. 64) E com isto se fez logo hũa petiçaõ conforme ao estilo com que no auditorio se lhe custuma a falar, & a mandou Antonio de Faria ao Mandarim por dous Chins dos que se tomaraõ, os que parecião de mais respeito, & com ella lhe mandou hũa odiaa que valia duzentos cruzados, parecendolhe que entre gente de primor aquillo bastaua para não querer mais, o que foy muyto pelo contrario como logo se verà.
  21. [764](Cap. 64) Partidos os Chins que leuauão a petição & o presente, tornaraõ logo ao outro dia cõ a reposta escrita nas costas da petiçaõ, a qual era hum despacho que dezia desta maneyra.
  22. [767](Cap. 64) Os mesmos dous Chins se tornaraõ a partir logo com este recado escrito em hũa carta cerrada como de hũa pessoa para outra, sem cerimonia de petição, nem outras vaidades que elles entre sy nestes casos gentilicamẽte custumão, paraque visse o Mandarim na isenção da carta quão determinado estaua no que lhe dezia.
  23. [769](Cap. 64) E o outro põto foy dizerlhe que porque el Rey de Portugal seu senhor era com verdadeyra amizade irmão de el Rey da China, vinhão elles a sua terra, como tambem os Chins por este respeito custumauão yr a Malaca, onde eraõ tratados com toda a verdade, fauor, & justiça, sem se lhes fazer agrauo nenhum.
  24. [779](Cap. 65) cõ as quatro barcaças que tinha tomado, & foy surgir em seis braças & meya pegado cos muros da cidade: & amainando as vellas sem salua nẽ estrondo de artilharia, pós bandeyra de veniaga ao custume dos Chins, paraque com as mostras destas pazes lhe não ficassem nenhũs comprimẽtos por fazer, inda que sabia, que segundo isto da parte do Mandarim estaua danado, que nenhũa cousa daquellas lhe auia de aproueitar: daquy lhe tornou a mandar outro recado com promessa de mais interesse pelos catiuos, & cumprimentos de muytas amizades, a que o perro se indinou de tal maneyra, que mandou aspar o coitado do Chim, & mostralo do muro a toda a armada, com a qual vista Antonio de Faria acabou de perder as esperanças que ainda algũs lhe fazião ter; & crecendo com isto a colera aos soldados, lhe disseraõ, que pois tinha assentado de sayr em terra, não esperasse mais, porque seria dar tempo aos inimigos para ajuntarem muyta gente: elle parecendolhe bem este conselho, se embarcou logo com todos os que estauão determinados para este feito, que ja estauão prestes para isso, & deixou recado nos juncos que não deixassem nunca de tirar aos inimigos & á cidade, onde vissem mayores ajuntamentos de gente, porem isto auia de ser em quanto elle não andasse trauado com elles.
  25. [788](Cap. 65) O Mandarim com a gente que tinha comsigo nos quiz fazer rosto ao entrar da porta, com que entre elles & nòs se trauou hũa cruel briga, em que por espaço de quatro ou cinco credos se hião elles ja metendo com nosco cõ muyto menos medo que os outros da ponte, se hum moço nosso não derrubara o Mandarim do cauallo abaixo com hũa espingardada que lhe deu pelos peitos, com que os Chins ficaraõ taõ assombrados que todos juntamente voltaraõ logo as costas, & se começaraõ a recolher sem nenhũa ordẽ pelas portas dentro, & nòs todos de volta com elles derrubandoos às lançadas, sem nenhum ter acordo de fechar as portas, & leuandoos assi como a gado por hũa rua muyto comprida, vazaraõ por outra porta que hia para o sertão, pelo qual se acolheraõ todos sem ficar nẽ hũ só.
  26. [800](Cap. 66) Partidos nòs daquy deste porto de Nouday, auendo ja cinco dias que vellejauamos por entre as ilhas de Comolem & a terra firme, hum sabbado ao meyo dia nos veyo cometer hum ladraõ por nome Prematà Gundel, grandissimo inimigo da naçaõ Portuguesa, & a quem ja por vezes tinha feito muyto dano, assi em Patane, como em Çunda, & Sião, & nas mais partes onde acertaua de os achar a seu proposito, & parecendolhe que eramos Chins, nos cometeo com dous juncos muyto grandes, em que trazia duzentos homẽs de peleja, a fora a esquipação da mareagem das vellas, & aferrando hum delles o junco de Mem Taborda, o teue quasi rendido, porem o Quiay Panjaõ, que hia hum pouco mais ao mar, vendoo daquella maneyra voltou sobre elle, & abalroou o junco do inimigo assi infunado como vinha, & tomãdoo pela quadra destibordo, lhe deu tamanha pancada que ambos aly logo se foraõ ao fundo, com que o Mem Taborda ficou liure do perigo em que estaua; a isto acudiraõ com muyta pressa tres lorchas nossas que Antonio de Faria leuara do porto de Nouday, & quis nosso Senhor que chegando ellas saluaraõ a mayor parte da nossa gente, & os da parte contraria se afogaraõ todos.
  27. [807](Cap. 66) E nauegando nòs desta maneyra, chegando daly a seis dias às portas de Liampoo, que saõ duas ilhas tres legoas donde naquelle tempo os Portugueses fazião o trato de sua fazenda, que era hũa pouoação que elles tinhaõ feita em terra de mais de mil casas, com gouernança de vereadores, & ouuidor, & alcaides, & outras seis ou sete varas de justiça & officiais da Republica, onde os escriuaẽs no fim das escrituras publicas que fazião punhaõ, E eu foaõ, publico tabalião das notas & judicial nesta cidade de Liampoo por el Rey nosso Senhor, como se ella estiuera situada entre Santarem & Lisboa, & isto com tanta confiança & oufania, que auia ja casas de tres & quatro mil cruzados de custo, as quais todas, assi grandes como pequenas, por nossos peccados foraõ despois de todo destruydas & postas por terra pelos Chins, sem ficar dellas Cousa em que se pudesse pór olhos, como mais largamente contarey em seu lugar.
  28. [820](Cap. 68) E sendo pouco mais de duas horas ante menham, com noite quieta, & de grande luar, se fez à vella com toda a armada, com muytas bãdeyras & toldos de seda, & as gaueas & sobregaueas guarnecidas de telilha de prata, & estendartes do mesmo muyto compridos, acompanhado de muytas barcaças de remo, em que auia muytas trombetas, charamellas, frautas, pifaros, atambores, & outros muytos instrumentos, assi Portugueses, como Chins; de maneyra que todas as embarcaçoẽs hião cõ suas inuençoẽs differentes, a qual milhor.
  29. [823](Cap. 68) Antonio de Faria despois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estaua aparelhado, fez sua salua de muyta & muyto boa artilharia, aque todas as naos & juncos & as mais embarcaçoẽs que tras disse, responderaõ por sua ordem, que foy cousa muyto para ver, de que os mercadores Chins estauão pasmados, & perguntauão se era aquelle homem, a que se fazia tamanho recebimento, irmão, ou parente do nosso Rey, ou que razão tinha cõ elle, a que algũs cortesaõs respondião, que não, mas que verdade era que seu pay ferraua os cauallos em que el Rey de Portugal andaua, & que por isso era tão hõrado que todos os que aly estauaõ podião muyto bẽ ser seus criados, & seruillo como escrauos.
  30. [824](Cap. 68) Os Chins parecendolhe que podia ser aquillo assi, olhauão hũs para os outros a maneyra de espanto, & dezião, certo que muyto grandes Reys ha no mũdo de que os nossos antigos escritores não tiueraõ nenhũa noticia, para fazerem menção delles nas suas escrituras, & hum destes Reys de que mais caso se deuera de fazer parece que deue ser o destes homẽs, porque segundo o que delle temos ouuido he mais rico & mais poderoso & senhor de muyto mayor terra que o Tartaro nẽ o Cauchim, & quasi que se pudera dizer, se naõ fora peccado, que emparelhaua co filho do Sol, lião coroado no trono do mundo, o que todos os outros que estauão à roda lhe confirmauã, & dizião, iso bem claro està, & bem se vè pelas muytas riquezas que esta nação barbada geralmente possue em toda a terra por força de braço armado, em afronta de todas as outras nações.
  31. [827](Cap. 68) Nesta lanteaa se embarcou Antonio de Faria, & chegando ao caiz com grande estrondo de trombetas, charamellas, ataballes, pifaros, atambores, & outros muytos tangeres de Chins, Malayos, Champaas, Siames, Borneos, Lequios, & outras nações que aly no porto estauão à sombra dos Portugueses, por medo dos cossayros de que o mar andaua cheyo, o desembarcarão della em huma rica cadeyra de estado, como Chaem do gouerno dos vinte & quatro supremos que ha neste imperio, a qual leuauão oito homens vestidos de telilha, com doze porteyros de maças de prata & sessenta albardeyros com panouras & alabardas atauxiadas de ouro, que tambem vierão alugadas da cidade, & oito homens a cauallo com bandeyras de damasco branco, & outros tantos com sombreiros de citim verde, & cramesim, que de quando em quando bradauão â Charachina, paraque a gente se afastasse das ruas.
  32. [842](Cap. 70) Neste bosque estauaõ postas tres mesas muyto cõpridas ao longo de hũas latadas de murta, com que todo o terreiro estaua cerrado, onde auia muytos esguichos de agoa que por cantimprosas corria de hũs aos outros, por hũs modos & inuençoẽs, que os Chins ordenaraõ, taõ sotis & artificiosas, que nũca ninguem pode entender o segredo delles, porque com a furia do asopro de hum folle, como de orgão, a que todos tinhão sua correspondẽcia, esguichauão tão alto, que quando tornaua a agoa a cair para baixo, vinha tão miuda, que não molhaua mais que sò como orualho, de maneira que cõ hum só pote de agoa se borrifaua todo o terreiro, que era como hũa grande praça: defronte destas tres mesas estauão tres aparadores da mesma maneira, com grande soma de porcelanas muito finas, & seis gomis de ouro muito grandes, que os mercadores Chins trouxerão da cidade de Liampoo, que la pedirão emprestados aos Mandarins, porque todo o seruiço destes he com baixellas douro, porque a prata he de gente mais baixa & de menos qualidade, & trouxerão mais outras muitas peças, como forão pratos grandes, saleiros, & copos tambẽ de ouro, com que a vista se deleitaua muito, se de quando em quando lhe não causara inueja.
  33. [855](Cap. 71) E indo nós assaz confusos cõ a imaginação destes perigos, fomos os primeyros cinco dias com vento bonança à vista da terra atè a boca da enseada das pescarias do Nãquim, aquy atrauessamos hum golfaõ de quarenta legoas, & ouuemos vista de hũa serra muyto alta que se dezia Nangafau, ao longo da qual com a proa ao Norte corremos mais outros cinco dias, no fim dos quais nos escaceou o vento, & por serẽ os mares ja aquy muyto grossos, se meteo o Similau num rio pequeno, & de bom surgidouro, pouoado de hũa gẽte muyto alua, de boa estatura, & cõ olhos pequenos como os Chins, mas em tudo o mais muyto differente delles, assi na fala como no trajo.
  34. [869](Cap. 72) Estes peixes se encrespaõ de quãdo em quando como porcos espins, com que ficão assaz temerosos no aspeito, tinhaõ o fucinho muyto agudo, & preto, com dentes que lhe sahião fora do queixo a modo de jauaris, de cumprimento de quasi dous palmos, a estes dezia o Similau que chamauão os Chins Puchissucoẽs.
  35. [899](Cap. 74) Chegados nòs a esta enseada do Nanquim, Antonio de Faria foy aconselhado pelo Similau que por nenhũ caso consintisse mostrarense os Portugueses a gente nenhũa, porque arreceaua que vendoos ouuesse aluoroço nos Chins, visto como por aquelle lugar nunca atè então se vira gente estrangeyra, porque só elles bastauão para darem razão do que lhes preguntassem, & que seu parecer era tambem que nauegassem antes pelo meyo da enseada que ao longo da terra, por respeito da muyta frequencia de lorchas & lanteaas que continuamente passauão de hũa parte para a outra, o que assi pareceo a todos, & assi se fez.
  36. [901](Cap. 74) Cõ esta miseria chegamos a hũs edificios muyto antigos, que se chamauão Tanamadel, nos quais saimos em terra hũa antemenham, & demos nũa casa que estaua afastada hũ pouco delles, onde prouue a nosso Senhor que achamos hũa grãde soma de arroz & de feijoẽs, & muytos potes de mel, & adẽs chacinadas, & cebollas, & alhos, & canas daçucar, de que nos prouemos bem à nossa vontade; a qual casa nos disseraõ hũs Chins que nella tomamos, que era despensa de hum esprital que estaua daly duas legoas, de que se prouião os peregrinos que por aquella parte passauão em romaria a visitar os jazigos dos Reys.
  37. [904](Cap. 74) E saindo logo em terra com toda a gente, o andou buscando atè quasi a menham, sem o poder achar, nẽ pessoa viua que lhe pudesse dar nouas delle, & tornandose a recolher ás embarcaçoẽs, achou dos quarenta & seis marinheyros Chins que leuaua, os trinta & dous fugidos, que receosos do perigo em que se vião, determinaraõ tambem de se saluar daquella maneyra, de que Antonio de Faria com todos os mais que se acharaõ cõ elle ficaraõ taõ pasmados, que apertando as maõs, & pondo os olhos no Ceo, emmudeceraõ de maneyra, que sós as lagrimas eraõ as que fallauaõ, & dauão testemunho do que os seus coraçoẽs sentião.
  38. [910](Cap. 74) Estes cinco Chins leuou Antonio de Faria comsigo presos a banco, & seguio por sua derrota mais dous dias & meyo, no fim dos quais prouue a nosso Senhor que dobrando hũa põta da terra que se dezia Guinaytaraõ descubrimos esta ilha de Calẽpluy, a qual auia oitenta & tres dias que andauamos buscando com tanta confusaõ de trabalhos & medos, quantos atras ficão contados.
  39. [920](Cap. 75) Despois de ser bem vista & examinada esta ilha ou lizira, por estar, como disse, situada no meyo do rio, Antonio de Faria se determinou, inda que era ja tarde, de sayr em terra, para ver se podia tomar lingoa em algũa daquellas irmidas, que o certificasse do que lhe era necessario saber, porque segũdo a informaçaõ que tiuesse, assi se determinaria, ou em yr por diante, ou em se recolher, & deixando a guarda necessaria em ambas as embarcaçoẽs, elle com quarenta soldados, & vinte escrauos, tantos de lanças como de arcabuzes, & quatro Chins que sabião a terra, porque ja aly tinhão ydo algũas vezes, para nos encaminharem & seruirem de interpretes, cometeo a desembarcaçaõ, & deixou o padre Diogo Lobato por Capitão das duas panouras, por ser homem sesudo, & de grandes espritos.
  40. [923](Cap. 76) Caminhando Antonio de Faria para a irmida que tinha diante, co mayor silencio que podia, & não sem algum receyo, por não saber atè então o em que se tinha metido, leuando todos o nome de Iesu na boca, & no coraçaõ, chegamos a hum terreyro pequeno que estaua diante da porta, & inda ate quy não ouuemos vista de pessoa nenhũa, & Antonio de Faria, que hia sempre diante com hum montante nas mãos, apalpou a porta, & a sintio fechada por dentro, & mãdando a hũ dos Chins que estaua junto com elle, que batesse, elle o fez por duas vezes, & de dentro lhe foy respondido, seja louuado o Criador que esmaltou a fermosura dos Ceos, rodee por fora, & saberey o que quer: o Chim rodeou a irmida, & entrou nella por hũa porta trauessa, & abrindo a em que estaua Autonio de Faria, elle com toda a gente entrou dentro na irmida, & achou dentro nella hum homem velho, que ao parecer seria mais de cẽ annos, com hũa vestidura de damasco roxo muyto comprida, o que no seu aspeito parecia ser homẽ nobre, como despois soubemos que era, o qual em vendo o tropel da gente, ficou tão fora de sy que cahio de focinhos no chão, & tremendo de peis & de maõs, não pode por então fallar palaura nenhũa, porem passado hum grande espaço em que a alteraçaõ deste sobresalto ficou quieta, & elle tornou sobre sy, pondo os olhos em todos, com rosto alegre & palauras seueras, preguntou que gente eramos, ou que queriamos; o interprete lhe respondeo por mandado de Antonio de Faria, que elle era hum Capitão daquella gente estrangeyra natural do reyno de Sião, & que vindo de veniaga num junco seu com muyta fazenda para o porto de Liampoo, se perdera no mar, do qual se saluara milagrosamente com todos aquelles homẽs que aly trazia comsigo, & que porque prometera de vir em romaria a aquella terra santa a dar louuores a Deos pelo saluar do grande perigo em que se vira, vinha agora a cũprir sua promessa, & juntamente lhe vinha pedir a elle algũa cousa de esmola com que se tornasse a restaurar de sua pobreza, & que elle lhe protestaua que daly a tres annos lhe tornaria dobrado tudo o que agora tomasse.
  41. [948](Cap. 78) E nós tambem onde estauamos o entendemos logo, porque sendo passada hũa hora despois da meya noite, vimos encima da cerca do pagode grande dos jazigos dos Reys, hũa muyto comprida carreyra de fogos, como que fazião sinal, & preguntando aos nossos Chins que lhes parecia aquillo, responderão todos que sem falta nenhũa eramos sentidos, pelo que nos aconselhauão que sem mais detença nos fizessemos logo à vella.
  42. [949](Cap. 78) Disto se deu logo rebate a Antonio de Faria, que neste tempo estaua dormindo, o qual acordou logo muyto depressa, & largando o cabo por mão fez tomar o remo, & assi como pasmado se foy direito à ilha, a ver se sentia nella algũa maneyra de aluoroço, & chegando ao caiz, ouuimos grande estrondo de sinos que se tangião em todas as ermidas, & de quando em quãdo rumor de gente, a que os Chins disseraõ, senhor, não tens ja mais que ver nẽ que saber, acolhete pelo amor de Deos, & nẽ sejas causa de nos matarem aquy a todos: porem Antonio de Faria, sem fazer caso do que elles dezião, saltou em terra com seis homẽs de espadas & rodellas, & subio pelas escadas do caiz acima quasi afrontado & fora de sy, & subindo desatinadamente por cima das grades, de que toda a ilha, como ja disse, era cercada, correo como doudo de hũa parte para a outra, sem sentir cousa algũa, & tornandose às embarcaçoẽs muyto afrontado, praticou com todos sobre o que nisto se deuia de fazer, & despois de se darem muytas razoẽs, que elle não queria aceitar, lhe fizeraõ os mais dos soldados requerimẽto que em todo o caso se partisse logo, & elle arreceoso de auer algum motim, respondeo que assi o faria, mas que para sua honra lhe conuinha primeyro saber o de que auia de fugir, & que por tanto lhes pedia muyto por merce que o quisessem aly esperar, porque queria ver se podia tomar algũa lingoa que o certificasse mais na verdade desta sospeita, & que para isso lhes não pedia mais de espaço que só meya hora, visto como ainda auia tempo para tudo antes que fosse menham.
  43. [955](Cap. 79) Sete dias auia ja que faziamos nossa viagem pelo meyo da enseada do Nanquim, para cõ a força da corrente caminharmos mais depressa, como quẽ só nella tinha sua saluaçaõ, porem todos tão tristes & descontentes, que como homẽs fora de sy nenhum de nos fallaua a proposito, quando chegamos a hũa aldea que se chamaua Susoquerim, & como ainda aly não auia nouas de nós, nem donde vinhamos, surgimos no porto della, & despois de nos prouermos de algũ mãtimento, & nos informarmos dissimuladamente do caminho que auiamos de leuar, nos partimos daly a duas horas, & o mais depressa que pudemos entramos em hum esteyro menos seguido de gente que a enseada por onde tinhamos vindo, que se chamaua Xalingau, pelo qual corremos mais noue dias, nos quais caminhamos cento & quarenta legoas, & tornando a entrar na mesma enseada do Nanquim, que ja aquy era de mais de dez ou doze legoas de largo, velejamos por nossa derrota cõ ventos Oestes de hum bordo no outro mais treze dias, & bem enfadados do muyto trabalho & medo que passauamos, & ja com pouco mantimento, & sendo à vista das minas de Conxinacau, que estaõ em quarenta & hum graos, & dous terços, nos deu hũ tẽpo do Sul, aque os Chins chamão tufaõ, taõ forte de vento, & çarraçaõ & chuueyros, que não parecia cousa natural; & como as nossas embarcaçoẽs eraõ de remo, & não muyto grãdes, & baixas, & fracas, & sem marinheyros, nos vimos em tanto aperto, que quasi desconfiados de nos podermos saluar, nos deixamos yr assi rolando à costa, auendo por menos mal morrermos entre os penedos, que afogados no mar; & seguindo nòs com este proposito nosso caminho, sem podermos effeituar este miserauel intento, que então escolhiamos por menos mao, & menos trabalhoso, nos saltou o vẽto ao Nornoroeste ja sobola tarde com que os mares ficaraõ taõ cruzados, & tão altos na vaga do escarceo, que era cousa medonha de ver.
  44. [959](Cap. 79) E continuando neste trabalho & agonia atè quasi as dez horas, com tanto medo & desauentura quãto me não atreuo a declarar com palauras, viemos a dar à costa, & meyos alagados nos foraõ os mares rolando atè hũa ponta de pedras que estaua adiante, na qual, em chegando, co rolo do mar nos fizemos logo em pedaços, & pegados todos hũs nos outros, cõ grande grita de Senhor Deos misericordia, nos saluamos dos vinte & cinco Portugueses que eramos os quatorze somente, & os onze ficaraõ aly logo afogados cõ mais dezoito moços Christaõs, & sete Chins marinheyros, & esta desauentura socedeo hũa segunda feyra cinco do mez de Agosto, do anno 1542. pelo qual nosso Senhor seja louuado pera sempre.
  45. [975](Cap. 81) E dandonos a carta de encomenda para o esprital, nos partimos com ella ja quasi ao meyo dia, & chegamos à villa hũa hora ou duas antes do sol posto, & nos fomos logo direitos à casa do repouso dos pobres, porque assi lhe chamão os Chins, inda que eu aquy, por me entenderem, lhe chamo esprital, como se custuma entre nós; & dada a carta que leuauamos aos tanigores da irmandade, que então estauão todos juntos a hũa mesa despachando os negocios dos pobres, elles a tomarão com hũa noua cerimonia de acatamẽto, & mãdarão ao escriuão que a lesse, o qual se ergueo logo em pé, & cõ voz entoada a leo perante todos, os que estauão â mesa, cuja forma era a seguinte.
  46. [1000](Cap. 83) Este monstro dezião que era figura do mundo que os Chins pintão ás auessas, & porque todas as cousas delle saõ mentirosas, para desenganar a os que fazem caso delle lhes diz, tudo o que ha em mym he assi, como se dissesse, feito ás auessas, cos peis para cima & com a cabeça para baixo.
  47. [1050](Cap. 88) E o quinto rio por nome Leysacotay, corta, segundo a opinião de todos os Chins a terra a Leste ate o anchacilado de Xinxipou, que confina cos Moscouitas, & dizem que se mete num mar innauegauel, por causa de estar o clima em altura de setenta graos.
  48. [1055](Cap. 88) Affirmarãonos os Chins, que tẽ esta cidade oitocentos mil vezinhos, & vinte & quatro mil casas de Mãdarins, & sessenta & duas praças muyto grãdes, & cẽto & trinta casas de açougues de oitenta talhos cada hũa, & oito mil ruas, de que as seiscentas, que saõ as mais nobres, tẽ todas ao cõprido de hũa banda & da outra grades de latão muyto grossas feitas ao torno.
  49. [1061](Cap. 88) Affirmarãonos mais os Chins que tinha dez mil teares de seda, porque daquy vay para todo o reyno.
  50. [1066](Cap. 88) Dos paços reais não direy nada, porque os não vimos senão de fora, nẽ delles soubemos mais que o que os Chins nos disseraõ, o qual he tãto que he muyto para arrecear cõtalo, & por isso não tratarey por agora delles, porque tenho por dauãte cõtar o que vimos nos da cidade do Pequim, dos quais cõfesso que estou ja agora arreceãdo auer de vir a cõtar ainda esse pouco que delles vimos, não porque isto possa parecer estranho aquẽ vio as outras grandezas deste reyno da China, senão porque temo que os que quiserem medir o muyto que ha pelas terras que elles não virão, co pouco que uem nas terras em que se criarão, queirão por duuida, ou por ventura negar de todo o credito a aquellas cousas que se não conformão co seu entendimento, & com a sua pouca experiencia.
  51. [1072](Cap. 89) Ao quarto dia da nossa viagem chegamos a hũa boa cidade que se chamaua Pocasser, mayor que Cantão duas vezes, & muyto bem cercada de muro de cantaria muyto forte, com torres & baluartes quasi a nosso modo, & hum caiz na frontaria do rio, quanto dezia o rosto do muro, de mais de dous tiros de falcão de comprido, todo fechado com duas ordẽs de grades de ferro, com suas entradas de portas muyto fortes para seruintia da gente, & descarga dos juncos, & outras embarcaços que continuamente aly carregauão de todas as mercadarias para diuersas partes do reyno, principalmente de cobre, açucar, & pedra hume, de que ha grandissima copia, & no meyo de hum grande terreyro, quasi no cabo de toda a cidade està hum castello muyto forte que tem tres baluartes, & cinco torres, em hũa das quais, que era a mais alta, nos disseraõ os Chins que o pay deste Rey tiuera preso hum Rey da Tartaria noue annos, o qual ahy morrera de peçonha que os seus mesmos vassallos lhe mandarão dar, por não darem por elle o resgate que o Rey Chim pedia.
  52. [1079](Cap. 89) Do arco desta capella para fora logo à entrada do cruzeyro em oito tirantes que atrauessauão toda a casa, estaua hũa muyto grande soma de alampadas de prata muyto grandes & ricas, que os Chins nos disserão que as molheres dos Chaẽs, Aytaos, Tutoẽs, & Anchacys, que saõ as mais honradas do reyno que se acharão presentes à morte da Raynha, aly mandaraõ por em memoria daquella honra, as quais alampadas dezião que erão duzentas & cinquenta & tres.
  53. [1081](Cap. 89) Entre esta soma de estatuas (que segundo os Chins nos affirmarão, eraõ mil & duzentas) estauão vinte & quatro serpentes do mesmo brõzo muyto grãdes, & encima de cada hũa dellas estaua assentada hũa molher com hũa espada na mão, & hũa coroa de prata na cabeça, estas vinte & quatro molheres dezião que tinhão titulos de Raynhas para honra de seus decẽdẽtes, porque todas se sacrificaraõ na morte daquella Raynha, paraque lá na outra vida as almas destas seruissem a sua, como câ nesta os corpos seruiraõ ao seu corpo, cousa que os Chins da geração destas molheres, tẽ por muyto grande hõra, & o trazem por timbre nos escudos de suas nobrezas.
  54. [1084](Cap. 89) Hum destes monstros que estâ logo na entrada do terreyro â mão direyta, aque os Chins nomeauão por serpe tragadora da concaua funda da casa do fumo, que segundo suas historias cõtaõ, he Lucifer, estâ em figura de hũa dessemelhauel serpente, com sete cobras que lhe sahião dos peitos muyto feas & temerosas, todas conchadas de verde & preto, com muytos espinhos de mais de palmo em comprido por todos os corpos, como tem os porcos espins, & cada hũa dellas tinha na boca hũa molher atrauessada cos cabellos todos derrubados para tras, como que estaua esmorecida: o mõstro tinha na boca, que era muyto grande & descompassada, hũ lagarto meyo fora de mais de trinta palmos de cumprimento, & da grossura de hũa pipa, cos narizes & ventãs, & beiços tão cheyos de sangue que todo o mais corpo desta grande serpente daly para baixo estaua tinto delle, & tinha apertado entre as mãos hum grande elefante, que parecia ser com tanta força, que as tripas & os bofes lhe sahião pela boca fora, & tudo isto taõ proprio, & tanto ao natural, que as carnes tremião de verem hũa figura que por ventura nunca entrou em imaginaçaõ de homẽs, a volta do rabo, que seria de mais de vinte braças, estaua enrodilhado noutro dessemelhauel monstro, que era o segundo dos quatro que disse que estauão nas quadras do terreyro, o qual estaua em figura de homem de mais de cem palmos dalto, a que os Chins chamauaõ Turcamparoo, & dezião que era filho daquella serpente; este, alem de ser muyto feyo, estaua com ambas as maõs metidas na boca, que a fazia tamanha como hũa porta, & com hũa ordem de dentes lá dentro no concauo della, & com a lingoa negra de mais de duas braças botada para fora, que tambem era cousa muyto temerosa de ver, & que fazia arripiar as carnes.
  55. [1086](Cap. 89) O quarto monstro era hũa figura de hum homem que estaua em cocaras, assoprãdo com hũas bochechas tamanhas & tão inchadas que parecia hum papafigo de vella infunado com muyto grande vento, & tambem era de tão desacustumada grandeza, & de hum aspeito taõ feyo & temeroso, que apenas o podia sofrer a vista; a este chamão os Chins Vzanguenaboo, o qual dezião que era o que no mar fazia as tempestades, & na terra derrubaua os edificios, & a este daua o pouo muytas esmollas porque lhe não fizesse mal, & se escreuião todos por seus confrades cõ tributo de hũ màz cada anno, que saõ cinquenta reis, porque lhes não alagasse os seus juncoS, nẽ fizesse mal aos mareãtes, & outras muytas & diuersas abusoẽs que por sua grande cegueira crem tanto de verdade que morreraõ mil mortes por cada hũa dellas.
  56. [1088](Cap. 90) Partidos nós ao outro dia desta cidade de Pocasser, chegamos a outra que se dezia Xinligau, tambem muyto grande & muyto nobre, & de muyto boa casaria, cercada de muros de tijolo, com sua caua ao redor, & nos cabos dous castellos de entulho muyto fortes, & bem acabados, com torres & baluartes quasi a nosso modo, & nas entradas pontes leuadiças que se sospendião no ar por grossas cadeas de ferro, & no meyo de cada hum destes castellos hũa torre de cinco sobrados com muytas inuẽçoẽs de pinturas de diuersas cores, nas quais torres ambas nos affirmaraõ os Chins que estauão em tisouro quinze mil picos de prata do rendimento daquelle anchacilado, que o auó deste Rey aly mandara por em memoria de hum filho que aly lhe nacera por nome Leuquinau, que quer dizer, alegria de todos, o qual elles tem que foy santo, porque acabou em religiaõ, & està aly enterrado num templo da inuocação do Quiay Varatel, Deos de todos os peixes do mar, de que estes cegos contão muytos desatinos de leys que inuentou, & preceitos que deu, que he espanto ouuilos, de que a seu tempo farey menção.
  57. [1100](Cap. 90) O nome do macho era Quiay Xingatalor, & o da femea, Apancapatur, & preguntando nòs aos Chins pela significação daquellas figuras, nos responderão, que o macho era o que assopraua com aquellas bochechas tão inchadas o fogo do inferno para atormentar as almas daquelles que nesta vida lhe não dauão esmola, & a femea era a porteyra do inferno, & que os que nesta vida lhe dauão esmola, os deixaua fugir para hum rio de agoa muyto fria por nome Ochileuday, onde os tinha escondidos sem os diabos lhe fazerem mal nenhum.
  58. [1115](Cap. 91) Aquy nos mostrou hũ oratorio em que tinha hũa Cruz de pao dourada, com hũs castiçais & hũa alampada de prata, & nos disse que se chamaua Inez de Leiria, & que seu pay se chamara Tomé Pirez, o qual deste reyno fora por Embaixador a el Rey da China, & que por hum aleuantamento que hum nosso Capitão fizera em Cantão, ouuerão os Chins que era elle espia & não embaixador como elle dezia, & o prenderão com outros doze homẽs que trazia comsigo, & despois que por justiça lhes derão muytos açoutes & tratos, de que logo morreraõ os cinco, aos outros desterrarão, apartados hũs dos outros, para diuersos lugares, onde morrerão comidos de piolhos, dos quais hum só era viuo que se chamaua Vasco Caluo, natural de hum lugar da nossa terra que se dezia Alcouchete, porque assi o tinha muytas vezes ouuido a seu pay chorando muytas lagrimas quando nisto fallaua.
  59. [1122](Cap. 91) E que outras mais oraçoẽs lhe deixara seu pay escritas, que despois lhe furtarão os Chins, por onde não ficarão sabendo mais que só aquillo que nos tinha dito: a que respondemos que muyto bom era o que lhe tinhamos ouuido, mas que nos lhe deixariamos outras oraçoẽs muyto boas antes que nos fossemos, & ella nos disse, assi o fazey pelo que deueis a hum Deos tão bom como tendes, & que tanto fez por vòs, & por mim, & por todos.
  60. [1128](Cap. 92) Despois que partimos desta cidade de Sampitay, seguimos adiante por este rio da Batampina acima até hum lugar que se chamaua Lequimpau, de dez ou doze mil vezinhos, & de boa casaria, segundo as mostras de fora, & cercado de muro & barbacam com sua caua ao redor, junto da qual da banda de fora estaua hũa casa muyto comprida cõ trinta fornalhas por banda, em que fundião & apurauão grande soma de prata, que em carretas se trazia de hũa serra que estaua daly cinco legoas por nome Tuxenguim, & aquy nos disserão os Chins que nas minas della trabalhauão cõtinuamente passante de mil homẽs em arrancar prata, & que rendia todos os ãnos para el Rey dos Chins cinco mil picos de prata, & nos contarão mais outras particularidades curiosos de ouuir, que não escreuo por me temer que poderey ser proluxo.
  61. [1148](Cap. 93) Affirma tambem esta historia, que eu muytas vezes ouuy lér, que passados cinco dias despois deste successo, viraõ hũa menham vir pelo rio abaixo a armada das trinta jangas muyto bem concertadas, & sem gente nenhũa, & a razão disto foy, segundo affirma a mesma historia (a qual os Chins tem por muyto verdadeyra) que vindo esta armada toda junta, para sem nenhũa piedade effeituar na pobre Nancaa, & nos seus tres filhos, & na mais gente que estaua com ella, os danados & crueys intentos do tyranno Silau, estando hũa noyte surta num lugar que se dezia Catebasoy, se criara sobre ella hũa nuuem preta, a qual lançando de sy muytos fuzis & curiscos, chouera della hũa agoa muyto grossa, de gotas tão quentes em tanto estremo, que dando na gente que neste tempo estaua ainda acordada, a fez lançar toda ao rio, onde em menos de hũa hora pereceo toda, porque dizem que na carne onde tocaua qualquer daquellas gotas, a queimaua de tal maneyra, que com hũa dor incomportauel lhe penetraua até o mais intrinseco dos ossos, sem auer vestido nem outra cousa algũa que sobre sy pusessem que lhe pudesse fazer resistencia.
  62. [1158](Cap. 94) E por isto que este primeyro Rey disse quãdo esta pedra, que os Chins tẽ por hũa profecia muyto certa, fizerão despois os seus decendẽtes hũ estatuto em que se mãda so grauissimas penas, que nenhũa gente estrangeyra entre no reyno senão sós embaixadores & catiuos, pelo qual quãdo os tomão, he forçado degradaremnos de hũs lugares para outros, como nos fizerão aos noue que eramos.
  63. [1164](Cap. 94) Tem mais esta cidade em roda, segundo os Chins nos affirmarão, trezẽtas & sessenta entradas, em cada hũa das quais estão sempre quatro vpos, como pouco ha disse, armados, & com alabardas nas mãos, para darem razão de tudo o que passa nella, ha aly tambem hũas certas casas que saõ como casas de camara, que a cidade para isso tem deputadas com seus Anchacys & officiais de justiça, & a onde tambem se leuão os moços que se perdem, paraque seus pays os venhão aly buscar.
  64. [1176](Cap. 95) E em todas estas trezẽtas & quinze legoas não ha mais entradas que sós cinco que os rios da Tartaria fazem por estas partes, pelos quais decendo com impetuosa corrente, com que cortão por este sertão espaço de mais de quinhentas legoas, se vão meter no mar da China & da Cauchenchina, & hum destes, porque he mais poderoso que os outros, vay sayr no reyno Sornau (aque o vulgar chama Sião) pela barra de Cuy, & em todas estas cinco entradas o Rey Chim tem hũa força, & o Tartaro outra, em cada hũa das quais o Chim tem sete mil homẽs continuos aque paga muyto grandes soldos, de que os seis mil saõ de pè, & os mil de cauallo, & a mayor parte desta gente he estrangeyra, como saõ Mogores, Pancrùs, Champas, Coraçones, & Gizares da Persia, & outros de outras muytas terras & reynos que pelo amago deste sertão habitão, porque na verdade os Chins não saõ muyto homẽs de guerra, porque alem de serem pouco praticos nella, saõ fracos de animo, & algum tanto carecidos de armas, & de todo faltos de artilharia.
  65. [1177](Cap. 95) Em toda a distancia deste muro ha trezentas & vinte capitanias de quinhentos homẽs cada hũa, que saõ ao todo cento & sessenta mil homẽs, a fora ministros & officiais de justiça, & vpos da guarda dos Anchacys, & Chaẽs, & outra mais gẽte necessaria para o gouerno & sustentaçaõ deste pouo, que por todos nos affirmaraõ os Chins que chegauão a copia de duzentos mil homẽs continuos, a que el Rey paga mantimento somẽte, porque como todos, ou a mayor parte delles saõ forçados condenados a aquelle degredo, não he obrigado a lhes dar soldo senão mantimento sómente, como adiante declararey quando fallar na prisaõ do deposito destes degradados que estâ na cidade do Pequim, que tambem he outro notauel edificio & de admirauel grandeza, & estado, no qual ha continuamente presos em deposito para a fabrica deste grande muro, de trezentos mil homẽs para cima, & todos, ou a mayor parte de dezoito até quarenta & cinco annos, entre os quais ha muyta gente nobre, & homẽs muyto ricos & de grãde respeito, que por casos graues se lhe cõmutou o castigo que merecião para este deposito; no qual a modo de carcere perpetuo estão esperando para dahy os leuarem ao seruiço daquelle muro, donde podem ter recurso conforme aos estatutos da guerra que sobre isso saõ feitos, & aprouados pelos Chaẽs, que nisto & em tudo o mais tem os mesmos poderes del Rey, com magestade suprema de mero & mixto imperio, & no poder & alçada de cada hũ destes Chaẽs do gouerno, que saõ doze, cabe dar se quiser hum conto douro de renda, sem lhes ninguem yr â maõ a isso.
  66. [1180](Cap. 96) Partidos nós destas duas cidades de Pacão & Nacau, & seguindo nossa viagem pelo rio acima assi presos como tenho dito, chegamos a outra cidade que se chamaua Mindoo, pouco mayor que cada hũa destoutras, na qual para a parte do sertão espaço de meya legoa estaua hum muyto grande lago de agoa salgada, em que auia muyto grande soma de marinhas, o qual nos affirmaraõ os Chins que enchia & vazaua da propria maneyra que o faz o mar, estando pela terra dentro mais de duzentas legoas, & que rendia todos os annos para o Rey da China só do terço que deste sal lhe pagauão, cem mil taeis: & que a fora estes lhe rendia mais esta cidade outros cẽ mil taeis dos teares da seda, da canfora, do açucar, da porcelana, do vermelhão, & do azougue, das quais cousas nos disserão que auia aquy grandissima quantidade.
  67. [1188](Cap. 96) O qual edificio fizeraõ antigamente os Chins quando senhorearaõ a India, que foy, segundo parece pela sua conta, desdo anno do Senhor de mil & treze até o de mil & setenta & dous, pela qual conta se ve que a India esteue debaixo do imperio do Chim cinquenta & noue annos somente, porque o Rey successor do que a conquistou, que se chamaua Oxiuagão, alargou por sua vontade, por entẽder quanto sangue dos seus lhe custaua o pouco proueito que tiraua della.
  68. [1191](Cap. 96) E preguntando aos Chins pela causa daquella ruyna, nos disseraõ que aquella cidade se chamàra antigamẽte Cohilouza, que quer dizer, frol do campo, a qual em seu tempo fora muyto prospera, & que aueria cento & quarenta & dous annos que aly viera ter hũ homem estrangeyro em companhia de hũs mercadores do porto de Tanaçarim do reyno de Sião, o qual, segũdo estaua escrito em hum liuro por nome Toxefalem que fallaua nelle, parecia ser homem santo, inda que naquelle tempo pelas obras que fazia lhe chamauão os bonzos feiticeyro, porque em menos de hum mez resuscitara cinco mortos, & fizera outros muytas marauilhas, de que todos receberão grandissimo espanto, & tendo por vezes os sacerdotes algũas disputas com elle, os confundio & enuergonhou a todos de maneyra, que por naõ se verem cõ elle noutras altercaçoẽs, amutinaraõ o pouo todo, & lhe meteraõ em cabeça que se o naõ matassem os auia Deos de castigar com fogo do Ceo, pelo qual incitado o pouo pelo dito delles se vieraõ todos a casa de hum tecelão pobre, por nome Ioane onde este homem pousaua, & matando o tecellão & dous genros seus, & hum filho, porque o quiseraõ defender, o santo homem se veyo chorando a elles, & reprendendoos de suas vnioẽs causadas do seu mao viuer, antre algũas cousas que então lhes disse, hũa foy affirmarlhes que o Deos em cuja fé se auião de saluar se chamaua Iesu Christo, o qual viera do Ceo á terra a se fazer homem, & fora necessario morrer pelos homẽs, & que co preço do seu sangue derramado na Cruz pelos peccadores, se ouuera Deos por tão satisfeito em sua justiça, que entregandolhe o poder dos Ceos & da terra, lhe prometera que a todos os que professassem sua ley com fé & obras, se lhe não negaria o premio que por isso era prometido, & que todos os deoses aque os bonzos seruião & adorauão com sacrificios de sangue, erão falsos, & figuras em que o demonio se metia para os enganar: o que ouuindo os sacerdotes se acenderão tanto em colera, que bradãdo ao pouo lhe disseraõ, que maldito fosse o que naõ trouxesse lenha & fogo para o queimar, o que logo foy feito com muyta presteza, & começandose o fogo a atear com grandissima furia, elle lhe fez o sinal da Cruz, & lhe dissera hũas palauvas que lhes a elles não lembrauão, mas que tambẽ estauão escritas, com que o fogo se apagara logo.
  69. [1194](Cap. 96) Em quanto estes Chins nos forão contando isto, dobramos nòs hũa ponta da terra, & vimos hum terreyro pequeno cercado de aruores ao redor, em meyo do qual estaua hũa Cruz de pedra muyto grãde, & muyto bem feita, com cuja vista certifico em verdade que faltão palauras para dizer o que Deos nosso Senhor aly nos deu a sentir: & pedindo nòs todos de joelhos ao Chifuu que nos deixasse yr a terra a ver aquillo que aquelles homẽs nos dezião, o perro Gentio se escusou dizendo, que tinhamos longe o lugar onde auiamos de yr dormir, de que ficamos assaz desconsolados, mas como Deos nosso Senhor por sua misericordia nos quiz fazer essa merce quasi milagrosamente, ordenou que tendo ja caminhado mais de hũa legoa adiante, o qual fazia a força de remo, & com assaz de trabalho, dessem naquella hora a sua molher que leuaua prenhe tamanhas dores de parir, que lhe foy forçado tornar daly a arribar ao lugar que abaixo tinhamos deixado, que era hũa aldea de trinta ou quarenta casas por nome Xifangau, junto donde estaua a Cruz, & desembarcando aly em terra, tomou hũa casa em que pòs a molher onde a cabo de noue dias lhe morreo do parto.
  70. [1197](Cap. 96) Nòs lhe preguntamos então pela certeza daquillo que os Chins nos tinhão dito, & elles nos relatarão todo o processo deste negocio como passara, & nos mostrarão disso hum liuro impresso em que trataua de muyto grandes marauilhas que o senhor por aquelle santo homẽ aly tinha obrado, o qual dezia que se chamaua Mateus Escandel, & que fora Ermitão no monte Sinay, & dezia que fora Vngaro de nação, de hum lugar que se chama Buda.
  71. [1207](Cap. 97) E muytos Chins nos affirmarão que neste imperio da China tanta era a gente que viuia pelos rios, como a que habitaua nas cidades, & nas villas, & que se não fosse a grande ordem & gouerno que se tem no prouer da gẽte mecanica, & no trato & officios cõ que os cõstrangem a buscarem vida, que sem duuida se comeria hũa com a outra, porque cada sorte de trato & de mercancia de que os homẽs viuẽ se reparte em tres & quatro formas, desta maneyra.
  72. [1316](Cap. 103) Noue dias auia ja que com assaz de receyo estauamos esperando a publicaçaõ da nossa sentença, quando hum Sabado pela menham nos vierão buscar à prisaõ dous Chumbins da justiça, que saõ, como ja disse, os meirinhos da execução do crime, acompanhados de vinte ministros, aque tãbem ja disse que chamauão vpos, cõ alabardas & chuças, & barretes de malha, & outras cousas a este modo que os fazião temerosos à vista, os quais nos meteraõ em assaz de medo & agonia, & rodeandonos a todos noue nũa corrente de ferro muyto cõprida, nos leuarão ao Caladigão, que era a casa da audiencia, & onde se fazia a execuçaõ dos padecentes, com a qual ida ficamos de maneyra, que affirmo em verdade que naõ sey dar razão que declare bem o que então passamos, porque naquella hora hiamos tais, que nenhum de nós sabia por onde hia, mais que só cõformarmonos com a vontade de Deos nosso Senhor, & pedirmoslhe com muytas lagrimas que pelas dores da sua sagrada paixão, nos recebesse a pena daquella justiça em satisfação de nossos peccados; & em algũs passos onde o medo nos representaua mais a terriuel pena da cruel morte, nos punhamos todos em joelhos abraçados hũs cos outros, & lhe pediamos misericordia, de que os Chins se espantauão grandemente.
  73. [1325](Cap. 103) Encima dos primeyros tres degraos desta tribuna estauão oito porteyros cõ suas maças de prata em pé, & embaixo no chão sessenta homẽs Mogores muyto bem despostos, em duas fileyras, assentados em joelhos, com alabardas atauxiadas douro nas mãos, & na dianteyra destes, em pé, como tenentes, ou cabos de esquadras dous gigantes fantasticos muyto bem despostos, & ricamẽte vestidos, com seus treçados a tiracollo, & alabardas muyto grandes nas maõs, os quais os mesmos Chins chamão em sua lingoa gigauhos; em ambas as quadras desta tribuna estauão duas mesas muyto compridas postas embaixo na casa, a cada hũa das quais estauão assentados doze homẽs, dos quais os quatro erão como juizes ou corregedores, os dous escriuaẽs, outros quatro procuradores, & outros dous conchalys, que saõ como desembargadores, ou chançareis, & hũa destas mesas cos doze officiaes que tinha, era do crime, & a outra cos outros doze officiaes, era do ciuil, & todos os officiaes dambas estas mesas estauão vestidos de hũas vestes de citim branco muyto compridas & com mangas largas, para mostrarem com isto a largueza & a pureza da justiça.
  74. [1360](Cap. 105) Mas ja que me he forçado tratar disto, para cumprir o que atras deixo prometido, digo que esta cidade que nós chamamos Paquim, a que os seus naturais chamão Pequim, por ser este o seu primeyro nome, està situada em altura de quarenta & hum graos da banda do Norte, tem os seus muros de circuito, segundo os Chins nos affirmaraõ, & eu despois vy num liurinho que trata das grandezas della, que se chama Aquesendoo, que eu trouxe a este reyno, trinta legoas, dez de comprido, & cinco de largo, & outros affirmaõ que tem cincoenta, dezassete de cõprido & oito de largo.
  75. [1362](Cap. 105) Quanto ao como ella agora estâ pouoada de casaria muyto nobre, terà de circuito as trinta legoas que dizem, & està cercada toda de duas ordens de muros muyto fortes, com infinidade de torres & baluartes ao nosso modo, mas por fora desta cerca, que he a da propria cidade, vay outra de muyto mayor comprimento & largura, que os Chins affirmão que antiguamente fora toda pouoada, o que agora não he, mas tem sómẽte muytas aldeas & pouoaçoens diuididas hũas das outras, com muyta quantidade de quintãs ao redor muyto nobres; em que entraõ mil & seiscentas que tem muyta ventagem de todas as outras, as quais saõ aposentos dos procuradores das mil & seiscentas cidades & villas notaueis dos trinta & dous reynos desta Monarchia, que quando chamão a cortes se ajuntão nesta cidade cada tres annos sobre o gouerno do proueito comum, como adiante se darà relação.
  76. [1367](Cap. 105) E a cada hũ de todos estes se dá hũ tanto por cada més para seu mantimento, os quais, segũdo os Chins nos affirmaraõ, chegauão a copia de cem mil, porque em cada hũ destes aposentos dezião elles que auia duzentos homẽs.
  77. [1376](Cap. 105) E os Chins affirmaraõ que ha banquete que dura dez dias â Charachina, o qual na largueza, & grande apparato & pompa com que se faz, nos ministros & seruidores, nas musicas, nos passatempos de pescarias, de caças, de montarias, de jogos, de farças, de autos, & de desafios de gente de pé & de cauallo, faz de custo mais de vinte mil taeis.
  78. [1405](Cap. 107) Tẽ mais esta grande cidade dos muros para dentro, segũdo os Chins nos affirmaraõ, tres mil & oitocontas casas dos seus pagodes, em que continuamente se sacrifica hũa muyto grande quantidade de aues, & de animais siluestres dãdo por razão que aquelles saõ mais aceitos a Deos que os outros domesticos que a gente cria em casa, & para isto dão os sacerdotes muytas razoẽs ao pouo, com que o persuadem a terem esta abusaõ por artigo de fé.
  79. [1413](Cap. 107) Affirmaraõnos tãbem estes Chins que tem esta cidade cento & sessenta casas de açougues ordinarios, em cada hũa das quais auia cem talhos de todas as carnes quãtas se crião na terra, porque de todas esta gente come, vitella, carneyro, bode, porco, cauallo, bufara, bada, tigre, leão, cão, mulato, burro, zeura, anta, lontra, texugo, & finalmente todo o animal a que se pode pór nome, & em cada talho estâ logo limitado o preço de cada cousa destas.
  80. [1421](Cap. 108) Tem hum arco de pedraria muyto forte que vay fechar em duas torres, na volta do qual em todo cima estaõ seis sinos de vigia muyto grandes, aos quais quando tangem, respõdem todos os outros que estaõ dentro, que, segundo os Chins nos affirmaraõ, saõ mais de cento, & fazem hum estrondo assaz terribel & espantoso.
  81. [1423](Cap. 108) E pregũtando nòs aos Chins pela causa daquelle tamanho edificio, & da grande quantidade de presos que em sy tinha, nos respõderão, que despois que aquelle Rey da China, por nome Crisnagol dacotay acabara de fechar com muro as trezentas legoas de distancia que ha entre este reyno da China, & o da Tartaria, como ja atras fica contado, ordenara com parecer dos pouos, que para isso foraõ chamados a cortes, que todos aquelles que por justiça fossem condenados em pena de degredo, fossem degradados para a fabrica daquelle muro, aos quais se daria mantimento somente, sem el Rey lhes ficar por isso obrigado a satisfaçaõ nenhũa, pois lhes fora aquillo dado em pena de seus delictos.
  82. [1447](Cap. 109) No meyo deste terreyro estaua hũa coluna de jaspe de trinta & seis palmos de alto, & toda, ao que parecia, de hũa só pedra, encima da qual estaua hum idolo de prata em vulto de molher que com ambas as mãos estaua afogando hũa serpente muyto bem pintada de verde & preto, & logo mais adiante á entrada da porta que estaua entre duas torres muyto altas, armada sobre vinte & quatro colunas de pedra muyto grossas, estauão duas figuras de homẽs, cada hum com sua maça de ferro nas maõs, como que guardauão aquella entrada, cuja estatura & grandeza era de cento & quarẽta palmos, com hũs rostos taõ feyos em tanta maneyra que quasi tremião as carnes a quem os olhaua, aos quais os Chins chamauão Xixipitau Xalicão, que quer dizer, assopradores da casa do fumo.
  83. [1451](Cap. 109) As quais casas nos affirmaraõ os Chins que eraõ tres mil, & todas dalto abaixo estauão cheyas de caueyras de homẽs mortos atè os telhados, cousa de tamanho espanto, que ao que se julgaua, nẽ mil naos, por grandes que fossem, as poderião carregar.
  84. [1453](Cap. 109) E preguntando nòs aos Chins se tinha aquillo conto, responderaõ que sy, porque tudo estaua escrito por matricolas das tres mil casas que os talagrepos tinhaõ em seu poder, & que não auia casa daquellas que não rendesse cada anno de dous mil taeis para cima, de propriedades que defuntos lhe tinhaõ deixado por descargo de suas almas, o qual rendimento chegaua todo a cinco contos douro, dos quais el Rey leuaua os quatro, & os talagrepos o outro para despesa de toda aquella fabrica, & que os quatro que el Rey como padroeyro leuaua, se gastauão no mantimento que se daua aos trezentos mil degradados do Xinamguibaleu.
  85. [1457](Cap. 109) Esta monstruosa cobra, a que os Chins chamauão serpe tragadora da casa do fumo, tinha metido na cabeça hum pilouro de ferro coado de cinquenta & dous palmos, como que lhe tinhaõ tirado com elle.
  86. [1460](Cap. 109) Este idolo era o da inuocaçaõ de todo este edificio, & se chamaua Muchiparom, o qual dezião os Chins que era tisoureyro de todos os ossos dos mortos, & que vindo aquella serpe que tinhamos visto para os roubar, elle lhe tiraua com aquelle pilouro que tinha nas maõs, por onde ella logo com medo fugia para a concaua funda da casa do fumo, onde Deos a tinha lançado por ser muyto mà.
  87. [1483](Cap. 111) No meyo de hũa grande praça, fechada em roda com tres ordẽs de grades, & cõ duas fileyras de idolos, estaua hũa torre muyto alta cõ cinco curucheos de diuersas pinturas, & seus leoẽs de prata no mais alto delles, na qual nos dezião os Chins que estauão as ossadas destes cento & treze Reys, que se tinhão passado para aly daquellas capellas debaixo.
  88. [1489](Cap. 111) E preguntando nós aos Chins pela significaçaõ daquellas cousas, nos disseraõ, que despois que Deos alagàra o mundo com a agoa dos rios do Ceo, em que se afogara todo o genero humano, vendo que a terra ficaua deserta, & sem auer nella quem o louuasse, mandara do Ceo da Lũa a deosa Amida camareyra mór da Nacapirau sua molher paraque restaurasse a perda da gente que se afogara, a qual em pondo os peis em hũa terra que ja era desalagada, por nome Calempluy (que he aquella ilha ou lizira que atras disse, que estâ na enseada do Nanquim, onde Antonio de Faria desembarcou em terra) ella se tornara toda em ouro, & aly estãdo em pè & co rosto no Ceo, suara pelos sobacos grande soma de crianças, pelo do braço direyto machos, & pelo do ezquerdo femeas por não ter outro lugar no corpo por onde as pudesse parir, como tem as molheres do mundo que tem peccado, em castigo do qual as sojeitara Deos por ordem da natureza à miseria da corrupção çuja & fedorenta; para mostrar quanto lhe fedia o peccado cometido contra elle.
  89. [1582](Cap. 117) Despois de ser morta toda esta gente, a cidade abrasada, & os edificios de casas particulares, & templos sumptuosos, & tudo o mais que nella auia posto por terra, sem auer cousa que ficasse em pé, se detiueraõ aly sete dias, & no fim delles se tornaraõ para a cidade do Pequim onde então o seu Rey estaua, & donde os mandara a aquelle feyto, os quais leuaraõ comsigo infinidade douro & de prata sem outra fazenda nenhũa, por não terem em que a leuassem, porem a toda puseraõ o fogo antes que se partissem, paraque os Chins a não lograssem.
  90. [1583](Cap. 117) Dous dias despois de serem partidos, chegaraõ a hum castello que se dezia Nixiamcoo, no qual o Nauticor de Lançame general desta barbara gente assentou seu campo, & se atrincheyrou por todas as partes com tenção de o assaltar ao outro dia, por se dizer que quando por aly passara para Quansy, lhe mataraõ os Chins aly cem homens em hũa cilada que lhe fizeraõ de que estaua muyto magoado.
  91. [1586](Cap. 118) E recolhẽdose então desordenadamẽte os que pelejauão, elle se veyo retirãdo para o seu arrayal, onde aquelle dia esteue quieto, entendendo somente no enterramento dos mortos, & na cura dos feridos, de que tambem ouue hum grande numero, de que a mayor parte despois morreo, por serem as setas com que os Chins lhes tirauão eruadas cõ hũa peçonha taõ forte que nenhum remedio lhe aproueitaua.
  92. [1589](Cap. 118) E acertando hum destes que estaua na pratica de olhar para nós, por estar mais chegado â prisaõ onde nos estauamos, vio que entẽdiamos o que elles fallauão, & nos preguntou que gente eramos, & como se chamaua a nossa terra, & de que maneyra nos catiuaraõ os Chins, âs quais preguntas respondemos conforme à verdade do que se podia dizer, de que elle fez algũ caso, & discorrendo mais pela pratica, nos preguntou se pelejauamos na nossa terra, & se era o nosso Rey inclinado á guerra, a que hum dos nossos por nome Iorge Mendez, respõdeo que sy, porque todos eramos criados nella, & exercitados de muyto pequenos, da qual reposta o Tartaro se satisfez tãto, que chamando os seus dous companheyros lhes disse, vinde ouuir estes presos, porque vos certifico que me parecem homẽs em que cabe razão: os outros dous se chegaraõ logo, & nos estiueraõ ouuindo algũas cousas que lhe contamos de nós acerca do infortunio da nossa prisaõ.
  93. [1609](Cap. 119) E subindo logo nas costas destes tres Portugueses todos os Tartaros que estauão ao pé das escadas, o que tambem fizeraõ com muyto esforço, assi por terem seu Capitão diante, como por serem de sua natureza quasi tão determinados como os Iapoẽs, em muyto breue espaço foraõ encima do muro mais de cinco mil dos da nossa parte, os quais com o impeto que leuauão fizeraõ retirar os Chins, & a briga se trauou entre hũs & os outros tão braua, & tanto sem piedade, que em pouco mais de meya hora o negocio ficou logo concluydo, & o castello tomado cõ morte de dous mil Chins & Mogores que estauão dentro nelle, & dos Tartaros não mais que até cento & vinte.
  94. [1611](Cap. 119) E o Mitaquer com todos os Capitaẽs & gente nobre entrarão dentro, os quais vendo a grande quantidade dos mortos que estaua na praça do castello, ficarão ainda muyto mais espantados, & sem fazer caso dos seus que tambem aly acabaraõ, mandou queymar as bãdeyras dos Chins, & embandeyrar o castello das suas, com outra noua cerimonia de tãgeres & festas ao seu modo, & fez merces aos feridos, & armou alguns caualeyros com insignia de hũa manilha douro.
  95. [1630](Cap. 121) Ao outro dia às horas que nos disse, nos mandou à tenda noue cauallos bem concertados, nos quais caualgamos, & nos fomos á sua tenda, & elle se pos num piambre, que he como andas entre nós, o qual leuauão dous cauallos cõ bos jaezes, & hia todo cercado em roda dos seus sessenta alabardeyros, cõ seis pagẽs bem vestidos, em quartaos brancos, & nòs os noue hum pouco atras em nossos cauallos, & toda a outra mais gente a pé, & leuaua seus estromentos de estado, que de quando em quando tangiaõ, sem outro mais fausto nem apparato algum, & desta maneyra abalou para onde estaua el Rey, o qual estaua aposentado naquelle grande & sumptuoso edificio da Nacapirau, a que os Chins chamão Raynha do Ceo, de que atras ja fiz menção no capitolo cento & dez.
  96. [1666](Cap. 123) De maneira que de hũ cõto & oitocentos mil homẽs com que partio do seu reyno para cercar esta cidade do Pequim, sobre a qual esteue seis meses & meyo, leuou menos setecentos & cinquenta mil, os quatrocentos & cinquenta mil que morreraõ de peste, fome, & guerra, & trezentos mil que se lançaraõ cos Chins pelo grande soldo que por isso lhes dauão, a fora outras muytas ventagẽs de honras & merces de dinheyro que lhe fazião continuamente.
  97. [1806](Cap. 133) E despois de se fazerem de parte a parte as cortesias costumadas, & elle ter seguro para se poder chegar a nós, se chegou logo, & vendonos aos tres Portugueses, preguntou que gente eramos, porque na differença do rosto & barbas entendia que não eramos Chins.
  98. [1816](Cap. 133) E ao outro dia tanto que foy menham desembarcou em terra, & nos leuou comsigo a todos tres cõ mais dez ou doze Chins, os que lhe parecerão mais graues & autorizados em suas pessoas, quais os elle queria para o ornamento desta primeyra vista em que esta gente custuma a se mostrar com muyta vaydade.
  99. [1819](Cap. 133) A primeyra foy dizernos que lhe tinhão dito os Chins & Lequios, que Portugal era muyto mayor em quantidade assi de terra como de riqueza, que todo o imperio da China, ò que nòs lhe concedemos.
  100. [1825](Cap. 134) Logo ao outro dia seguinte este Necodà Chim desẽbarcou em terra toda a sua fazenda como o Nautaquim lhe tinha mandado, & a meteo nũas boas casas que para isso lhe derão, a qual fazẽda toda se vendeo em tres dias, assi por ser pouca, como por que estaua a terra falta della, na qual este cossayro fez tanto proueito, que de todo ficou restaurado da perda das vinte & seys vellas que os Chins lhe tomarão, porque pelo preço que elle queria pòr na fazenda lha tomauão logo, de maneira que nos confessou elle que com sós dous mil & quinhentos taeis que leuaua de seu fizera aly mais de trinta mil.
  101. [1829](Cap. 134) Os Iapoẽs vendo aquelle nouo modo de tiros que nunca ate então tinhão visto, derão rebate disso ao Nautaquim que neste tempo estaua vendo correr hũs cauallos que lhe tinhão trazido de fora, o qual espantado desta nouidade, mandou logo chamar o Zeimoto ao paul onde andaua caçando, & quando o vio vir com a espingarda âs costas, & dous Chins carregados de caça, fez disto tamanho caso, que em todas as cousas se lhe enxergaua o gosto do que via, porque como até então naquella terra nunca se tinha visto tiro de fogo, não se sabião determinar co que aquillo era, nem entendião o segredo da poluora, & assentarão todos que era feitiçaria.
  102. [1889](Cap. 137) Aquy nos detiuemos mais quinze dias, em que o junco de todo acabou de se fazer prestes, & nos partimos para Liampoo, hum porto de mar do reyno da China, de que atras fiz larga menção, onde os Portugueses naquelle tempo tinhão seu trato, & vellejando por nossa derrota, prouue a Deos que chegamos a elle a saluamento, onde dos moradores da terra fomos muyto bẽ recebidos, os quais auendo por cousa noua virmos nòs daquella maneyra entregues á pouca verdade dos Chins, nos perguntarão de que terra vinhamos, & onde nos embarcaramos com elles, a que respõdemos conforme â verdade do que passaua, & lhe demos conta de toda a nossa viagem, & da noua terra de Iapaõ que tinhamos descuberto, & da grande quantidade de prata que nella auia, & do muyto proueito que se fizera nas fazendas da China, de que todos ficarão taõ contentes que não cabião em sy de prazer, & logo ordenarão hũa deuota procissaõ para darem graças a nosso Senhor por tamanha merce, & nella foraõ da igreija mayor que era de nossa Senhora da Conceição, até outra de Santiago, que estaua no cabo da pouoação, onde ouue Missa & pregação.
  103. [1890](Cap. 137) Acabada esta tão pia & tão santa obra, começou logo a cubiça a entrar nos coraçoẽs dos mais dos homens daquella pouoaçaõ de tal maneyra, por querer cada hum delles ser o primeyro que fizesse esta viagem, que vieraõ hũs & outros a se diuidirem, & poremse em bandos, & com as armas na mão atrauessar cada hum as fazendas todas da terra donde naceo que vendo os mercadores Chins esta tão noua & desordenada cobiça, onde o pico de seda valia naquelle tampo a quarenta taeis, veyo em sos oito dias a subir a preço de cento & sessenta, & ainda assi a tomauão por força & de muyto mà feição.
  104. [1932](Cap. 140) Logo ao outro dia foy el Rey auisado por cartas do Broquem, assi da nossa prisaõ, como do que pelas preguntas tinha sabido de nòs, & lhe apontou algũas cousas em nosso fauor, as quais o mouerão a não mãdar logo fazer justiça de nòs, como dezião que tinha determinado por algũs mexericos que os Chins de nos lhe tinhão feito.
  105. [1942](Cap. 140) Tornandose este homem daly para el Rey lhe deu conta do que passara com nosco, & lhe affirmou que sem duuida nenhũa não eramos os que os Chins lhe tinhão dito de nós, & que a isso poria mil vezes a cabeça, de que el Rey dizem que por então ficou algũ tanto mais descarregado das más sospeitas que lhe fazião ter de nós.
  106. [1956](Cap. 142) A tia lhe respondeo a isto, muyto bem vejo a necessidade que ha dessa pressa, pela muyta que de câ foy para se executar nesses tristes esse castigo que el Rey pelo dito dos Chins mostrou tãta vontade, mas como a Raynha acordar, que pode ser daquy a hũa hora, ella me achará aos seus peis, porque esta nouidade seja causa para me ella preguntar pela razão della, porque mais ha de seys annos que não fiz outro tanto por minha mà disposição.
  107. [1960](Cap. 142) E a Raynha lhe disse, se estâ para isso, chamaya câ, & ella a fez logo entrar dẽtro, a qual chegando diante da Raynha, que ainda a este tempo estaua na cama, se prostrou ante ella, & fazendolhe o deuido acatamento, lhe disse chorando o a que vinha, & lhe deu a carta que leuaua, a qual lhe ella mandou que lesse, & beijandolhe a donzella por isso a mão, lha leo como conuinha a sua tenção, de que a Raynha dizem que ficou tão sentida, que não sendo ainda acabada de lér de todo, lhe disse muytas vezes com as lagrimas nos olhos, não mais, não mais, baste por agora o que tenho ouuido; & pois assi he como me tendes dito, não queyra Deos, nem a alma del Rey meu marido, por cujo respeito todas me pedẽ isso de esmola, que esses coitados percão a vida tanto sem causa, porque bem lhes basta por pena do que os Chins disseraõ delles, a execuçaõ que o mar nelles fez, & deixaime com isso, porque eu tomo â minha cõta esse vosso requerimẽto, & hiuos repousar hum pouco até que seja menham, & iremos todas tres tomar el Rey meu filho antes que se erga, & lerlheys essa carta, assi como ma lestes a mym, paraque se moua a piedade, & nos conceda leuemente isto que com tanta razão lhe imos pedir.
  108. [1966](Cap. 142) Pela informaçaõ que os Chins me deraõ do mao viuer desses estrangeyros, certificãdome cõ juramento solenne na fé que tinhaõ em todos os seus deoses que eraõ elles sem falta cossayros do mar, & roubadores na terra de fazendas alheyas, trazendo continuamente seus braços tintos do sangue daquelles que com justa causa defendião o seu, como era notorio por todo o vniuerso, ao qual por cubiça tinhaõ dado mil voltas, sem deixarem ilha, nem terra, nem porto, nem rio que não abrasassem, com males tão feyos & criminosos que temo dizellos por honra de Deos, me pareceo serem isto causas justas para elles serem castigados por justiça, & conforme âs leys do meu reyno o pus em pareceres dos Chũbins do gouerno, que todos perante mim jurarão em suas almas que erão elles merecedores não sómente de hũa morte, mas de mil se tãtas se lhe puderão dar, pelo qual me fuy cos seus pareceres, & mandey ao Nhay peretanda que de minha parte te notificasse que em termo de quatro dias pusesses em effeito execuçaõ deste castigo conforme â minha sentença.
  109. [1981](Cap. 143) Passados com bem de descanço nosso estes quarẽta & seis dias, sendo ja chegado tempo da monção, o Broquem nos mandou dar embarcação num junco de Chins que hia para o porto de Liampoo, no reyno da China, conforme ao que el Rey lhe tinha mandado, & ao Capitão do junco se tomarão grandes fianças a cerca da segurança de nossas pessoas, porque nos não fizesse traição no caminho.
  110. [1989](Cap. 143) Os habitadores de toda esta terra saõ como Chins, vestem linho, algodão, & seda, com alguns damascos que lhe trazem do Nanquim.
  111. [2261](Cap. 159) Hum destes se fez no dia da Lũa noua de Dezẽbro, que foy aos noue do mes, & he o dia em que esta gentilidade custuma a celebrar hũa festa a que a gente desta terra chama Massunteriuoo, & os Iapoẽs lhe chamão Forioo, & os Chins Manejoo, & os Lequios Chãpàs, & os Cauchins Ampatilor, & os Siames, Bramás, Pafuâs, & Çacotais lhe chamão Sansaporau de maneyra que ainda que pela diuersidade das lingoas os nomes em sy saõ differentes, todos na nossa lingoagem querem dizer hũa mesma cousa, que he memoria de todos os mortos.
  112. [2454](Cap. 166) Estes erão todos homens grandes cõ as barbas & os olhos como Chins.
  113. [2462](Cap. 166) Falamos aquy mais com outros homẽs brãcos, que se dezião Pauileus, muyto frecheyros, & grandes caualgadores, vestidos de queimoẽs de seda como Iapoẽs, & comião cõ paos como Chins.
  114. [2653](Cap. 178) Neste mesmo dia se tratou logo de fazerem Pangueyraõ, que, como já algũas vezes tenho dito, he dignidade imperial sobre todos os Pates & Reys daquelle grande arcipelago, a que os escritores Chins, Tartaros, Iapoẽs, & Lequios nomeão por Rate na quem dau, que quer dizer, pestana do mundo, como se pode ver num mapa, se for verdadeyro na graduaçaõ das alturas.
  115. [2671](Cap. 179) E como este desauenturado successo nos tirou de todo o sentido & as forças, nenhum de nòs ouue que se lembrasse de procurar meyo nenhũ de sua saluação, como fizeraõ os Chins que leuauamos no junco por marinheyros, que forão taõ industriosos que antes que fosse menham tinhão feito hũa jangada dos pedaços de paos, & das taboas que puderão auer às maõs, & cõ as cordas das vellas as atarão de maneyra que quarenta estauão encima bem á vontade, & como este tempo era aquelle pelo qual se disse, nem o pay pelo filho, nem o filho pelo pay, cada hum procuraua por sy só, sem lhe lembrar outra nenhũa cousa, assi Chins marinheyros, como escrauos nossos, tanto, que pedindo Martim Esteuez capitaõ & senhorio do junco aos seus proprios moços que estauão na jangada, que o quisessem recolher comsigo, lhe responderaõ que por nenhum caso podia ser, o que chegando ás orelhas de hum dos da nossa cõpanhia por nome Ruy de Moura, não podendo sofrer a ingratidão & descortesia com que já todos nos tratauão, se ergueo em pé do lugar onde jazia assaz ferido, & nos fez a todos hũa breue pratica, em que nos disse que nos lembrassemos quão afrontosa & auorrecida era a couardia, & que vissemos quão necessario nos era para nossa saluação trabalhar por tomarmos aquella jangada, & outras muytas palauras a este modo, as quais de tal maneyra nos auiuentaraõ os espritos, que determinados todos num proposito, com hum nouo esforço que nos então deu a hõra & a necessidade, remetemos vinte & oito Portugueses que eramos todos num corpo aos quarenta Chins que ja então estauão na jangada, nòs com nossas espadas, & elles com as machadinhas que tinhão nas maõs, & nos baralhamos hũs cos outros de maneyra, que em espaço de tres ou quatro credos os quarenta Chins foraõ todos mortos, & dos vinte & oito Portugueses os dezasseis, & os doze escaparão assaz feridos, de que ao outro dia morreraõ quatro, cousa certo nunca cuydada nem imaginada, & em que se pode ver claramente a miseria da vida humana, porque auendo menos de doze horas que nos abraçauamos todos, & nos tratauamos com tanto amor que morreramos todos hũs pelos outros, nos trouxerão nossos peccados a tamanho estremo de necessidade, que sobre quatro pedaços de pao atados com duas cordas nos matamos todos huns aos outros tanto sem piedade, como se foramos inimigos mortais, ou outra cousa ainda pior; mas tambem parece que em parte nos desculpa ser a necessidade tamanha que nos forçou a fazermos tamanho desatino.
  116. [2673](Cap. 180) Despois que ficamos senhores desta triste jangada à custa de tanto sangue, assi nosso como dos Chins, nos metemos nella trinta & oito pessoas, das quais os doze eraõ Portugueses, & os mais moços nossos, & algũs mininos filhos de Portugueses, & os mais de nòs hiamos muyto feridos de que despois nos morrerão quasi todos, & por sermos muytos, & a jangada muyto pequena hiamos nella metidos na agoa até o pescoço.
  117. [3060](Cap. 202) E dos Chins se affirmou que alem das mil & nouecentas & trinta & seis embarcaçoens, se perderão passante de dez contos douro, & cento & sessenta mil pessoas.
  118. [3373](Cap. 215) Nesta viagem que o padre fez da China para Malaca em companhia de Diogo Pereyra que era muyto seu amigo, lhe deu conta dos termos em que ficauão as cousas da Christandade em Iapão, & quão importante lhe era a elle trabalhar todo o possiuel por ver se podia ter entrada na China, assi para lá diuulgar, & dar noticia a aquella gentilidade da ley de Christo nosso Senhor, como por acabar de tomar conclusaõ cos bonzos do reyno de Omanguche, os quais vendose confundidos com as praticas & disputas que tiuera com elles acerca da Fê, lhe responderaõ já por derradeyro, que como da China lhe vieraõ aquellas leys que elles pregauão, & que auia seiscentos annos que tinhaõ aprouadas por boas, se não desdiriaõ por nenhum caso se não quando soubessem que elle conuencera os Chins com as proprias razoẽs com que a elles lhes fizera confessar ser esta ley boa & verdadeyra, & ser para ouuir o que elle pregaua.
  119. [3471](Cap. 220) A qual nouidade se não soube dar então nenhum entendimento, mais que sospeitarse que chegaria aquy algũa armada de Chins, & achando estes coitados, roubarennos como ordinariamente custumão fazer, & so color de justiça fazeremlhe isto que vimos.
  120. [3475](Cap. 221) Ao outro dia pela menham nos partimos desta ilha de Sanchaõ, & ao sol posto chegamos a outra ilha que estâ mais adiante seis legoas para o Norte chamada Lampacau, onde naquelle tempo os Portugueses fazião sua veniaga cos Chins, & ahy se fez sempre ate o anno de 1557. que os Mandarins de Cantaõ a requerimento dos mercadores da terra nos deraõ este porto de Macao onde agora se faz, no qual sendo antes ilha deserta, fizeraõ os nossos hũa nobre pouoaçaõ de casas de tres quatro mil cruzados, & com igreija matriz em que ha Vigayro & beneficiados, & tem capitão & ouuidor & officiais de justiça, & taõ confiados & seguros estão nella com cuydarem que he nossa, como se ella estiuera situada na mais segura parte de Portugal, mas quererâ nosso Senhor pela sua infinita bondade & misericordia que esta sua segurãça seja mais certa & de mais dura do que foy a de Liampoo, que foy outra de Portugueses de que atras já fiz larga mençaõ, auante desta duzentas legoas para o Norte, a qual pelo desmancho de hum Portuguez em muyto breue espaço de tempo foy de todo destruyda & posta por terra, na qual desauẽtura me eu achey presente, & nella ouue hũa inestimauel perda assi de gente como de fazenda, porque tinha esta pouoação tres mil vezinhos, de que os mil & duzentos eraõ Portugueses, & os mais gente Christam de diuersas naçoẽs, & segũdo se affirmou por dito de muytos que bem o sabião, passaua o trato dos Portugueses de tres contos douro, de que a mayor parte era em prata de Iapaõ que auia dous annos que se descubrira, & que se dobraua o dinheyro tres & quatro vezes em qualquer fazenda que para là se leuaua.
  121. [3480](Cap. 221) Auia aly hum homem hõrado & de boa geraçaõ, chamado Lançarote Pereyra, natural de Põte de Lima, este, dezião que dera hũs mil cruzados em ruyns fazendas fiados a huns Chins homẽs de pouco credito, os quais se lhe leuantaraõ com a fazenda, sem lhe mais darem o retorno della, nem elle ter mais nouas delles, pelo qual, querendose elle satisfazer desta perda nos que lhe não tinhaõ culpa, ajuntou para isso hũs quinze ou vinte Portugueses ociosos & de mà consciencia, & quiçà de pior siso, & deu hũa noite em hũa aldea daly duas legoas, que se dezia Xipatom, & roubou nella dez ou doze lauradores que ahy viuiaõ, & lhes tomou a todos as molheres & os filhos, com morte de treze pessoas sem razão, nem causa algũa justa que para isso tiuesse.
  122. [3490](Cap. 221) Neste mesmo tempo vieraõ tambem aly ter dous mercadores Chins, que trazião tres mil cruzados em seda, peças de damasco, porcellanas, & almizcre, os quais se deuião ao Armenio defũto.
  123. [3491](Cap. 221) Estes arrecadou tambem o prouedor & juntamente com isso, dizendo que toda a mais fazenda que ficaua aos Chins, era tambem do Armenio defunto, dizem que lhes tomou hũs oito mil cruzados, & lhes disse que fossem a requerer sua justiça perante o prouedor mòr, porque elle não podia deixar de fazer o que fazia, porque era obrigado a isso por razão de seu officio.

(2) Objecto geográfico interpretado

Império. Parte de: Asia Oriental.

Referente contemporâneo: People’s Republic of China, China (AS). Lat. 35.000000, long. 105.000000.

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