O lugar no contexto

(1) Entidade geográfica mencionada

Portugal. Portugal 4(1), 8(1), 9(2), 11(1), 13(2), 14(1), 21(3), 22(1), 29(2), 64(2), 67(1), 68(2), 122(1), 133(2), 148(1), 183(1), 207(2), 209(1), 215(1), 218(2), 221(1), 223(3), 224(1), 225(1).

Nas orações: 49, 90, 96, 97, 113, 135, 137, 149, 238, 239, 240, 252, 338, 769, 770, 814, 823, 830, 1650, 1807, 1819, 2082, 2718, 3169, 3170, 3208, 3381, 3440, 3442, 3475, 3520, 3527, 3548, 3560, 3583.

  1. [49](Cap. 4) E mandandonos assentar em hũas esteyras, quatro ou cinco passos afastados de sy, nos esteue perguntando com a boca cheya de riso, por algũas cousas nouas & curiosas, a que dizião que sempre fora muyto inclinada, pelo Papa, como se chamaua, quantos Reys auia na Christandade, se fora ja algum de nos à casa Santa, & porque se descuydauão tãto os Principes Christaõs na destruyção do Turco, & o poder que el Rey de Portugal tinha na India se era grande, & quantas fortalezas auia nella, & em que terras estauão, & outras muytas cousas desta maneyra.
  2. [90](Cap. 8) E que o Hidalcão respõdera por palaura aos offerecimentos que o Baxà lhe mandara fazer em nome do Turco, que antes queria a amizade del Rey de Portugal, com lhe ter tomada Goa, que a sua, com lhe prometer a restituição della: & que sós dous dias auia que a nao era partida, & que o Capitão della que se chamaua Cide Ale, deixara apregoada guerra co Hidalcão, jurando que como a fortaleza de Diu fosse tomada (o qual não tardaria oito dias, segũdo o estado em que ja ficaua posta) o Hidalcaõ perderia o reyno & a vida, & então conheceria quão pouco lhe podiam aproueitar os Portugueses.
  3. [96](Cap. 9) Despois que a armada foy surta, & se fez no porto a salua que disse, o Capitão Gonçallo Vaz Coutinho mandou logo à Raynha hũa carta que lhe leuaua do Visorrey, por hum Bento Castanho homem discreto, & bem criado, pelo qual lhe mandou dizer o paraque aly era vindo, & que pois sua alteza era amiga del Rey de Portugal, & tinha com elle pazes & amizade auia tanto tempo, que como recolhia no seu porto Turcos, que eraõ nossos capitais inimigos?
  4. [97](Cap. 9) ao que ella respondeo, que sua merce fosse muyto bem vindo com toda a sua companhia, que quãto ao que lhe mãdaua dizer das pazes que tinha com el Rey de Portugal, & cos seus Gouernadores, era muyta verdade, & assi as teria em quanto viuesse, porem quanto aos Turcos em que lhe apontaua, que só Deos, aquẽ ella tomaua por Iuiz neste caso, sabia quanto contra seu gosto elles aly eraõ vindos, & que pois sua merce trazia forças para os poder lançar fora, o fizesse, que ella lhe daria para isso todo o fauor quanto lhe fosse possiuel, que para mais bem sabia elle que não era ella poderosa, nem se atreuia a pelejar com tamanha força, & que lhe juraua pelas alparcas douradas do seu pagode, que tanto folgaria com a victoria que Deos lhe desse contra elles, como que o Rey de Narsinga, cuja escraua ella era, a assentasse à mesa com sua molher.
  5. [113](Cap. 11) Tanto que foy menham a Raynha mandou visitar o Capitão mór com hum grande çauguate de muytas galinhas, & frãgaõs, & ouos, que elle não quiz aceitar, mas mostrandose muyto colerico contra ella, soltou algũas palauras quiça mais asperas do que parecia razão, & disse que o senhor Visorrey saberia muyto cedo quão seruidora ella era del Rey de Portugal, & quanto elle lhe deuia por isso, para lho pagar a seu tempo, & que para ella ficar certa que auia de ser assi isto que lhe dizia, lhe deixaua aly em penhor seu filho morto, com todos os mais que ella manhosamẽte fizera matar, co fauor & ajuda que dera aos Turcos, & então lhe daria as graças por aquelle presente que lhe mandaua para dissimulação do que tinha feyto.
  6. [135](Cap. 13) Ao tempo que Pero de Faria chegou a esta fortaleza de Malaca, estaua nella por Capitaõ dom Esteuão da Gama, & esteue ainda algũs dias ate acabar o seu tempo, porem como Pero de Faria era Capitão chegado de nouo, & que ainda então começaua o seu tẽpo, despois de auer algũs dias que era chegado à fortaleza, os Reys comarcaõs della o mandaraõ visitar por seus Embaixadores, & darlhe os parabẽs da sua capitania, com offerecimentos de muyta amizade & cõseruação de pazes com el Rey de Portugal, entre os quais veyo hum del Rey dos Batas, que habita na ilha Çamatra da parte do Oceano, onde se presume que jaz a ilha do ouro que el Rey dom Ioaõ o terceyro algũas vezes tentou mandar descubrir, por informaçoẽs que destas partes algũs Capitaẽs lhe escreueraõ.
  7. [137](Cap. 13) Cobiçoso mais que todos os homẽs do seruiço do Lião coroado no trono espantoso das agoas do mar, assentado por poderio increiuel no assopro de todos os ventos, Principe rico do grande Portugal teu senhor & meu, ao qual em ti varaõ de coluna de aço Pero de Faria, nouamẽte obedeço por verdadeyra & santa amizade, para de oje em diante me render por seu subdito, com toda a limpeza & amor que hum bom vassallo deue fazer, eu Angeessiry, Timorraja Rey dos Batas, desejando agora de nouo tua amizade, para cos fruytos desta minha terra enriquecer os teus subditos, me offereço por nouo trato de ouro, pimenta, canfora, aguila, & beijoim encher essa alfandega do teu Rey & meu, com tanto que na firmeza de tua verdade me mandes hum cartaz de tua letra para minhas lancharas & jurupangos nauegarem seguros com todos os ventos.
  8. [149](Cap. 14) Prometo em nome do meu Rey a ty Senhor poderoso, que com descanço & grande alegria viues assentado no tisouro de tuas riquezas, que saõ os espiritos formados da tua vontade, que se te praz darnos victoria contra este tyranno Achem, paraque de nouo lhe tornemos a ganhar o que elle com tamanha treição & tanta perfidia nos tomou nos dous lugares de Iacur & Lingau, de sempre com muyta lealdade & agardecimento te conhecermos na ley Portuguesa da tua santa verdade, em que consiste o bem dos nacidos, & de nouo te edificarmos em nossa terra casas limpas de cheyros suaues, onde todos os viuos te adorem cõ as maõs aleuantadas, assi como na terra do grãde Portugal se fez sempre ategora.
  9. [238](Cap. 21) E magoado desta tamanha sem rezão que lhe parecia que com seu Rey se vsara, hũa menham querendose embarcar, estando estes Capitaẽs ambos à porta da fortaleza, lhes disse publicamente quasi chorando: o Deos que viue reynando por poderio & magestade suprema no mais alto Ceo de todos os Ceos tomo, com suspiros arrancados do interior da minha alma, por Iuiz neste caso, da rezão & justiça que tenho em fazer a vossas merces ambos senhores Capitaẽs este requerimento em nome do meu Rey, vassallo leal por menagem jurada, que seus antepassados fizerão nas mãos do antigo Albuquerque, lião do bramido espantoso nas ondas do mar, ao poderoso Rey das naçoẽs & pouos da India, & terra do graõ Portugal, o qual então nos prometeo que não quebrando os Reys deste reyno esta menagem de leais vassallos, se lhes obrigaua aos defender a todos de seus inimigos como senhor poderoso que era.
  10. [239](Cap. 21) E ja que nos ategora nunca quebramos esta menagẽ, qual serâ senhores a rezão, porque não cumprireis com esta obrigaçaõ, & verdade do vosso Rey, sabendo que por seu respeito nos toma este inimigo Achem a nossa terra, dando por rezão que he o meu Rey taõ Portuguez, & tão Christão como se nascera em Portugal?
  11. [240](Cap. 21) E mandandouos agora pedir que lhe valhais nesta afronta, como verdadeyros amigos, vos escusais de o fazerdes com rezoẽs de muyto pouca força, não montando mais o cabedal deste socorro todo, para satisfaçaõ de nosso desejo, & segurança de nos estes inimigos não tomarem o reyno, que sò atè quarenta ou cinquenta Portugueses com suas espingardas & armas, para nos ensinarem, & nos animarem em nossos trabalhos, & quatro jarras de poluora, com duzentos pilouros de berço, & com este pouco, que he bem pouco em comparação do muyto que vos fica, nos aueremos por muyto satisfeitos da vossa amizade, & o nosso Rey vos ficarà por isso muyto obrigado, paraque sempre com muyta lealdade sirua como escrauo catiuo ao Principe do grande Portugal, vosso & nosso senhor & Rey, da parte do qual, & em nome do meu vos requeiro senhores a ambos hũa & duas & cem vezes, que não deixeis de cũprir co que deueis, pois a importancia disto que aquy publicamente vos peço, he terdes o reyno de Aarù por vosso, & esta fortaleza de Malaca segura para a não senhorear este inimigo Achem, como determina fazer, pelos meyos que ja para isso tẽ procurado, com se valer de muytas naçoẽs de gentes estranhas, que continuamente recolhe em sua terra para este effeito.
  12. [252](Cap. 22) E despois que vio todo o presente, & a poluora, & as mais muniçoẽs, braçandome, disse muyto alegre, afirmote meu bom amigo que toda esta noite sonhaua que dessa fortaleza del Rey de Portugal meu senhor me vinha todo este bem que agora tenho diante de meus olhos, cõ o qual espero em Deos de defender minha terra, para lhe fazer sempre com ella muytos seruiços como fiz ategora, de que os Capitaẽs passados de Malaca seraõ boas testemunhas.
  13. [338](Cap. 29) E confiada na antiga amizade que tenho com vosco, & na grande obrigação que me tem esta fortaleza por tantos respeitos quantos vos senhor muyto bem sabeis, me vim agora a ella a pediruos cõ lagrimas, que em nome do serenissimo Rey de Portugal meu senhor, cujo subdito & leal vassallo sempre foy meu marido, me quisesseis valer, & socorrerme em meu desemparo, aque em publico me foy respondido por vossa boca diante de muytos nobres que então ahy estauão, que assi o farieis sem falta nenhũa, & agora no fim desta promessa, tão retificada no tisouro de vossa verdade, em vez de ser, assi me dizeis, ou days por escusa que tendes sobre isso escrito ao senhor Visorrey, não tendo eu necessidade de tanto socorro quanto me vòs dizeis que para este feito de lâ me pode vir, porque com menos de cem homẽs, & com a minha gente que anda fugida pela terra, esperando que eu vâ de cà, me atreuo assi molher como sou, a em menos de hum mès tornar a tomar todo o meu senhorio, & vingar a morte del Rey meu marido, que he o que aquy mais pretendo que tudo, ajudandome Deos que he poderoso, da parte do qual vos peço & requeiro por seruiço, & honra do serenissimo Rey de Portugal meu senhor, emparo & escudo de minha orfindade, que pois podeis o façais, & cõ breuidade, porque nella estâ a mayor importancia de todo este negocio, & com o fazerdes assi atalhareis o effeito da tençaõ deste inimigo, fũdada somẽte na destruyção desta fortaleza, como pelos meyos que para isso procura, tereys bem entendido; & se determinais de me dar este socorro que peço, esperarey, & se não, desenganayme, porque tamanho mal me fazeis em me fazerdes esperar sem me dardes remedio, pelo tẽpo que nisso perco, como em me negardes isto que com tanta efficacia vos tenho pedido, & em ley Christam me deueis, como o senhor todo poderoso, Deos do Ceo & da terra, a quem tomo por Iuiz neste requerimento, muyto bem sabe.
  14. [769](Cap. 64) E o outro põto foy dizerlhe que porque el Rey de Portugal seu senhor era com verdadeyra amizade irmão de el Rey da China, vinhão elles a sua terra, como tambem os Chins por este respeito custumauão yr a Malaca, onde eraõ tratados com toda a verdade, fauor, & justiça, sem se lhes fazer agrauo nenhum.
  15. [770](Cap. 64) E ainda que o Mãdarim ambos estes pontos não sofreo bem, todauia este derradeyro de dizer que el Rey de Portugal era irmão de el Rey da China, tomou tão mal, que sem ter mais respeito a cousa algũa, mandou açoutar os dous que leuaraõ a carta, & cortarlhe as orelhas, & os tornou assi a mandar com a reposta para Antonio de Faria escrita num pedaço de papel roto que dezia assi.
  16. [814](Cap. 67) E que quanto a se temer de inuernar aly pelo que fizera em Nouday, estiuesse nisso muyto descançado, porque não andaua a terra ao presente tão quieta, que isso pudesse lembrar para nada, assi pela morte do Rey da China, como pelas dissensoẽs que auia em todo o reyno em treze oppositores que pretẽdião o cetro delle, os quais todos estauão ja postos em armas com seus exercitos em campo, para com a força aueriguarẽ o que se não podia determinar por justiça; & que o tutão Nay, que era a suprema pessoa despois do Rey em todo o gouerno com mero & mistico imperio da magestade real, estaua cercado na cidade de Quoansy pelo Prechau Muão Emperador dos Cauchins, em cujo fauor se tinha por certo que vinha o Rey da Tartaria cõ hũ exercito de 900. mil homẽs: assi que a cousa andaua tão baralhada & diuidida entre elles, que ainda que sua merce assolara a cidade de Cantão, se não fizera caso disso, quãto mais a cidade de Nouday que na China em cõparaçaõ de outras muytas era muyto menos do que em Portugal pode ser OeyrasLisboa.
  17. [823](Cap. 68) Antonio de Faria despois de estar surto junto de terra no lugar que para isso lhe estaua aparelhado, fez sua salua de muyta & muyto boa artilharia, aque todas as naos & juncos & as mais embarcaçoẽs que tras disse, responderaõ por sua ordem, que foy cousa muyto para ver, de que os mercadores Chins estauão pasmados, & perguntauão se era aquelle homem, a que se fazia tamanho recebimento, irmão, ou parente do nosso Rey, ou que razão tinha cõ elle, a que algũs cortesaõs respondião, que não, mas que verdade era que seu pay ferraua os cauallos em que el Rey de Portugal andaua, & que por isso era tão hõrado que todos os que aly estauaõ podião muyto bẽ ser seus criados, & seruillo como escrauos.
  18. [830](Cap. 68) E ja quasi no cabo desta rua estaua hũa torre de madeyra de Pinho toda pintada a modo de pedraria, que no mais alto tinha tres curucheos, & em cada hum hũa grimpa dourada cõ hũa bandeyra de damasco branco, & as armas reais illuminadas nella com ouro; & nũa genella da mesma torre estauão dous mininos & hũa molher ja de dias chorando, & embaixo ao pè della estaua hum homẽ feito em quartos muyto ao natural, que dez ou doze Castelhanos estauão matando, todos armados, & com suas chuças & alabardas tintas em sangue, a qual cousa, pelo grande fausto & aparato com que estaua feita, era muyto para folgar de ver, & a rezão disto dizem que foy, porque dizem que desta maneyra ganhara hum foaõ de quem os verdadeyros Farias decendem, as armas da sua nobreza nas guerras que antiguamente ouue entre Portugal & Castella.
  19. [1650](Cap. 122) El Rey mandou então que cessasse a musica dos estromentos, & disse ao Mitaquer, pregunta a essa gente do cabo do mundo se tem Rey, & como se chama a sua terra, & que distancia auerá della a esta do Chim em que agora estou, a que hum da nossa companhia em nome de todos respondeo, que a nossa terra se chamaua Portugal, cujo Rey era muyto grande, poderoso, & rico, & que della a aquella cidade do Pequim aueria distancia de quasi tres annos de caminho, de que elle fez hum grande espanto como homem que não tinha esta maquina do mundo por tamanha, & batendo tres vezes na coxa com hũa varinha que tinha na mão, & os olhos postos no Ceo como que daua graças a Deos, disse alto que todos o ouuirão, Iulicauão julicauão minaydotoreu pisinão himacor dauulquitaroo xinapoco nifando hoperau vuxido vultanitirau companoo foragrem hupuchiday purpuponi hincau, que quer dizer, ò criador, ò criador de todas as cousas qual de nós outros pobres formigas da terra poderâ comprender as marauilhas da tua grandeza?
  20. [1807](Cap. 133) O Capitão cossayro lhe respondeo que eramos de hũa terra que se chamaua Malaca, a onde auia muytos annos que tinhamos vindo de outra que se dezia Portugal, cujo Rey, segundo nos tinha ouuido algũas vezes, habitaua no cabo da grandeza do mundo.
  21. [1819](Cap. 133) A primeyra foy dizernos que lhe tinhão dito os Chins & Lequios, que Portugal era muyto mayor em quantidade assi de terra como de riqueza, que todo o imperio da China, ò que nòs lhe concedemos.
  22. [2082](Cap. 148) Esforçado & leal capitão dos Portugueses por merce do grande Rey do cabo do mũdo, leão forte, & de bramido espantoso, com coroa de magestade na casa do Sol, eu o malafortunado Chaubainha principe que fuy, & ja não sou desta mal afortunada & catiua cidade, te faço saber por palauras ditas da minha boca na firmeza fiel de minha verdade, que eu me rendo desta hora para sempre por vassallo & subdito do grande Rey Portuguez, senhor soberano de meus filhos & meu, com reconhecença de parias, & de tributo rico qual ordenar a sua vontade, pelo que te requeyro da sua parte que tanto que Paulo de Seixas te dér esta minha carta, sem fazeres nenhũa detença te venhas logo com essas naos por junto do baluarte do caez da varella, onde me acharàs em pé esperãdo por ty para logo sem mais outro conselho me entregar em tua verdade com todo o tisouro que tenho comigo de pedraria & ouro, & da ametade delle faço liuremente seruiço a el Rey de Portugal, com tanto que me conceda licença que â custa do que me fica, faça no seu reyno ou nas fortalezas da India dous mil Portugueses a que prometo de dar grossos soldos, para com elles me restituyr no que agora me he forçado largar por minha grande desauentara.
  23. [2718](Cap. 183) Este Francisco de Crasto foy ter á cidade de Odiaa no tempo que eu estaua nella, onde foy muyto bem recebido do Rey de Sião, & lhe deu a carta que leuaua para elle, o qual despois de a lér, & de lhe preguntar por algũas cousas nouas & de curiosidade, lhe deu logo ali a reposta (o qual elle não custumaua a fazer a outro nenhum embaixador) que foy esta, quanto ao Domingos de Seixas que o capitão de Malaca me manda pedir, apontãdome o muyto gosto que el Rey de Portugal terâ se lho mandar, o mesmo me fica a mim de lho conceder, & daquy lho ey por dado com todos os mais que elle lâ onde estâ traz comsigo, de que o Francisco de Crasto lhe deu as graças prostrandose tres vezes com a cabeça no chão, como se lhe custuma a fazer por ser Rey mais supremo que todos os outros; & tanto que chegou o tempo de se poder partir o Frãcisco de Crasto para Malaca, mandou vir o Domingos de Seixas da cidade de Guntaleu onde então estaua por fronteyro mór daquella arraya com trinta mil homẽs de pé, & cinco mil de cauallo, & dezoito mil cruzados cada anno de partido, & em sua cõpanhia fez tambem vir os dezasseis Portugueses que cõ elle andauão, & os entregou a todos ao Frãcisco de Crasto, o qual de nouo lhe tornou a dar as graças pela merce que lhe fazia.
  24. [3169](Cap. 207) Esforçado senhor capitão, estando eu na crecẽça da lũa em Andraguiree com esta armada prestes para a mandar sobre el Rey de Patane, por algũas razoẽs que me moueraõ ao castigar, de que tu jà terás algũa noticia, fuy certificado das crueis mortes que os Achẽs deraõ aos teus, de que tiue tanta dór em meu coração como se todos foraõ meus filhos, & porque sempre desejei de mostrar a el Rey de Portugal meu irmão o amor entranhauel que lhe tenho, tãto que soube esta triste noua, esquecendome da vingança que pretendia de meus inimigos, me vim meter aquy neste rio para delle, como bom amigo, te socorrer cõ minhas forças, & gente, & armada, pelo que te peço muyto, & da parte de teu Rey meu irmão te requeyro que me dés licença para em seu fauor & ajuda yr surgir nesse porto, antes que os inimigos a teu despeito o fação, como sou informado que querem fazer.
  25. [3170](Cap. 207) Sepetuu de raja meu ourobalão te dirá por palaura o sobejo amor com que desejo agradar em tudo a el Rey de Portugal meu irmão, & como seu verdadeyro amigo estou aquy esperando por tua reposta, com a qual porey logo em effeito isto que desejo fazer por elle.
  26. [3208](Cap. 209) Duarte da Gama lhe respondeo com a cortesia deuida ao recado, & aos offerecimẽtos que lhe fizera, & lhe disse que festejauamos a chegada do padre por ser homẽ santo, & a quẽ el Rey de Portugal tinha muyto respeito.
  27. [3381](Cap. 215) E trabalhando o padre todo o possiuel por soldar com sua virtude esta quebra, & esta discordia, nunca já mais pode, porque como ella estaua fundada em odio & cubiça, & o demonio era o que atiçaua este fogo, em vinte & seis dias em que sobre isso se fizerão algũas diligencias nunca o capitão quiz conceder no que o padre pedia, nem dar licẽça paraque Diogo Pereyra o leuasse â China, como da India vinha ordenado, com hum grandissimo gasto jâ feito, dando em tudo nouos entendimentos ás prouisoẽs do Visorrey, & dizendo a modo de escarneo que aquelle Diogo Pereyra que sua senhoria dezia era hum fidalgo que ficaua em Portugal, & não aquelle que o padre apresentaua, que fora ontem criado de dõ Gonçallo Coutinho, & não tinha partes para yr por embaixador a hum tamanho monarcha como era o Rey da China.
  28. [3440](Cap. 218) Pelo que senhor lhe peço, que em todo o caso por sy & por mim lhe rogue, jà que os Reys da terra o não podẽ mãdar, que se venha logo nesta primeyra mouçaõ, porque sua vinda a este meu reyno será de muito seruiço de Deos, & noua amizade co grande Rey de Portugal, paraque esta minha terra cõ a sua seja em amor fixo hũa só cousa, & os seus vassallos sejão frãqueados em todos os portos & rios onde surgirẽ, como no vosso Coochim onde estais.
  29. [3442](Cap. 218) Antonio Ferreyra lhe dará hũas armas cõ que vency os Reys de Fiungaa & Xemenaxeque, & vestido nellas como o dia em que lhe dey batalha, obedeço por meu irmão mais velho a esse inuẽciuel Rey do cabo do mũdo senhor dos tisouros do grãde Portugal.
  30. [3475](Cap. 221) Ao outro dia pela menham nos partimos desta ilha de Sanchaõ, & ao sol posto chegamos a outra ilha que estâ mais adiante seis legoas para o Norte chamada Lampacau, onde naquelle tempo os Portugueses fazião sua veniaga cos Chins, & ahy se fez sempre ate o anno de 1557. que os Mandarins de Cantaõ a requerimento dos mercadores da terra nos deraõ este porto de Macao onde agora se faz, no qual sendo antes ilha deserta, fizeraõ os nossos hũa nobre pouoaçaõ de casas de tres quatro mil cruzados, & com igreija matriz em que ha Vigayro & beneficiados, & tem capitão & ouuidor & officiais de justiça, & taõ confiados & seguros estão nella com cuydarem que he nossa, como se ella estiuera situada na mais segura parte de Portugal, mas quererâ nosso Senhor pela sua infinita bondade & misericordia que esta sua segurãça seja mais certa & de mais dura do que foy a de Liampoo, que foy outra de Portugueses de que atras já fiz larga mençaõ, auante desta duzentas legoas para o Norte, a qual pelo desmancho de hum Portuguez em muyto breue espaço de tempo foy de todo destruyda & posta por terra, na qual desauẽtura me eu achey presente, & nella ouue hũa inestimauel perda assi de gente como de fazenda, porque tinha esta pouoação tres mil vezinhos, de que os mil & duzentos eraõ Portugueses, & os mais gente Christam de diuersas naçoẽs, & segũdo se affirmou por dito de muytos que bem o sabião, passaua o trato dos Portugueses de tres contos douro, de que a mayor parte era em prata de Iapaõ que auia dous annos que se descubrira, & que se dobraua o dinheyro tres & quatro vezes em qualquer fazenda que para là se leuaua.
  31. [3520](Cap. 223) Partido eu da cidade, cheguey o outro dia âs noue horas a hũ lugar que se dezia Fingau que seria hũ quarto de legoa da fortaleza de Osquy, donde por hũ dos Iapoẽs que leuaua comigo mandey dizer ao Osquim dono capitão della como eu era aly chegado, & que trazia hũa embaixada do Visorrey da India para sua alteza, pelo que lhe pedia me mandasse dizer quando queria que lhe fallasse; a que me elle respondeo logo por hũ seu filho, que a minha vinda cõ a de todos os meus cõpanheyros fosse muyto boa, & que jâ tinha mandado recado a el Rey à ilha do Xeque para onde fora ante menham cõ muyta gente a matar hũ grãde peixe, a que se não sabia o nome, que do centro do mar aly viera ter com outra grande soma de peixes pequenos, & que pelo ter cercado já num esteyro lhe parecia que não poderia vir senão de noite, mas que do que sua alteza lhe respondesse me mandaria logo recado, mas que entre tanto descançasse noutras casas milhores em que me mãdaua apousentar, onde seria prouido de tudo o necessario, porque toda aquella terra era tanto del Rey de Portugal como Malaca, Cochim, & Goa.
  32. [3527](Cap. 223) Despois que foy morta, & trazida fora â praya, foy o prazer del Rey tamanho, que a todos os pescadores que aly se acharaõ, libertou de hũ certo tributo que antes pagauão, & lhes deu nomes nouos de homens nobres, & a algũs fidalgos que aly estauão aceytos a elle acrecentou os ordenados que tinhão, & aos guesos, que saõ como moços da camara, mãdou dar mil taeis de prata, & a mim me recebeo com a boca muyto cheya de riso, & me pregũtou miudamẽte por muytas particularidades, a que eu respondy acrecentãdo em muytas cousas que me pregũtaua, por me parecer que era assi necessario a reputação da nação Portuguesa, & à conta em que até então naquella terra nos tinhão, porque todos então tinhão para sy que só o Rey de Portugal era o que cõ verdade se podia chamar monarca do mũdo, assi em terras, como em poder & tisouro, & por esta causa se faz naquella terra tanto caso da nossa amizade.
  33. [3548](Cap. 223) A que nos todos postos de joelhos, & beijãdolhe o queimão que tinha vestido respondemos que assi o esperauamos nelle, & que fazendose ella Christam a auiamos de ver Raynha de Portugal, de que a Raynha sua mãy & ella se riraõ muyto.
  34. [3560](Cap. 224) E despois de lida, me preguntou perante os tres embaixadores, & os principes de que estaua acõpanhado por algũas cousas que por curiosidade quis saber desta nossa Europa, hũa das quais foy quantos homens armados de todas armas, & em cauallos acubertados como aquelles punha el Rey de Portugal em campo?
  35. [3583](Cap. 225) Eu vendo na cidade Fucheo andar o negocio dos padres nestes termos, & o padre mestre Belchior já quasi embarcado de todo na nao, me fuy a Osquy ver com el Rey, & lhe pedy a reposta da carta que lhe trouxera do Visorrey, a qual me elle logo deu, porque a tinha ja feita, & por retorno do presente lhe mandou hũas armas ricas, & dous treçados douro, & cem auanos Lequios, a qual carta, que era feita por elle dezia assi Senhor Visorey da magestade honrosa, assentado no trono dos que fazẽ justiça por poderio de cetro, eu Yaretandono Rey do Bungo lhe faço saber, que a esta minha cidade Fucheo veyo a mim de seu mandado Fernão Mendez Pinto com hũa carta de sua real senhoria, & hum presente de armas & de outras peças muyto agradaueis a minha tenção, que muyto estimey por serem da terra do cabo do mũdo por nome Chenchicogim, onde por poderio de armadas muyto grossas, & exercitos de gentes de diuersas naçoẽs reyna o lião coroado do grande Portugal, por cujo seruidor & vassallo me dou de oje por diante com lealdade de amigo taõ verdadeyro & doce como o cantar da serea na tormenta do mar, pelo que lhe peço por merce que em quanto o sol não discrepar do effeito paraque Deos o criou, nem a agoa do mar deixar de subir & decer pelas prayas da terra, se não esqueça desta meuagem que por elle mando fazer ao seu Rey & irmão meu mais velho, por cujo respeito esta minha obediencia fique honrosa, como confio que sempre serâ, & essas armas que là lhe mando, tomarâ por sinal & prenda de minha verdade, como entre nós os Reys de Iapaõ se custuma.

Portugues 13(1), 46(1).

Nas orações: 140, 560.

  1. [140](Cap. 13) Este Embaixador foy bem recebido de Pero de Faria, & com as honras & cerimonias feitas ao seu modo, & despois que lhe deu a carta (a qual foy logo tresladada da lingoa Malaya em que vinha escrita em Portugues) lhe disse por hum interprete a causa da desauença deste tyranno Achem co Rey dos Batas, a qual foy, que auia algũs dias que este inimigo cometera a este Rey Bata, que era Gentio, que tomasse a ley de Mafamede, & que o casaria com hũa sua irmam, cõ tanto que largasse de sy a molher com que estaua casado auia vinte & seys annos, por ser tambem Gentia como elle.
  2. [560](Cap. 46) Apos isto perguntado hum dos dous Portugueses, porque o outro estaua como morto, cujos filhos erão aquelles mininos, & como vierão ter ao poder daquelle ladraõ, & como se elle chamaua, respondeo que o ladraõ tinha dous nomes, hum de Christão, & outro de gentio, o de gentio porque se então nomeaua era Necodà Xicaulem, & o de Christão era Francisco de Saa, o qual auia cinco annos que em Malaca se fizera Christão, sendo Garcia de Saa Capitão da fortaleza, & que porque elle fora seu padrinho do bautismo lhe pusera aquelle nome, & o casara com hũa moça orfam mestiça muyto gentil molher, & filha de hum Portugues muyto honrado a fim de o fazer mais natural da terra, & que indo no Anno de 1534 para a China em hum junco seu muyto grãde, no qual leuaua vinte Portugueses dos mais honrados, & ricos da fortaleza, & tambem sua molher, chegando à ilha de Pullo Catão fizera ahy agoada, com tençaõ de passar ao porto do Chincheo, & auendo ja dous dias que ahy estaua, como a esquipaçaõ do junco era toda sua, & Chim como elle, se leuantaraõ hũa noite estando os Portugueses dormindo, & com as machadinhas que traziaõ, os mataraõ a todos, & aos seus moços, sem a nenhum que tiuesse nome de Christaõ se dar a vida, & cometeo à molher que se fizesse gentia, & adorasse hum idolo que o seu Tucão mestre do junco leuaua nũa arca, & que assi desatada da ley Christam a casaria com elle, porque o Tucaõ lhe daua por isso hũa irmam sua que aly leuaua comsigo, tambem gentia & China como elle, & porque a molher não quisera adorar o idolo, nem cõsentir em tudo o mais que lhe elle dezia, o perro lhe dera com hũa machadinha na cabeça, com que logo lhe lançara os miolos fora.

Portuguesa 4(1), 14(2), 26(1), 30(1), 50(2), 51(1), 55(1), 56(1), 66(1), 68(1), 69(1), 70(1), 91(1), 108(1), 115(1), 124(1), 141(3), 143(2), 162(1), 208(1), 217(1), 223(1).

Nas orações: 41, 149, 151, 302, 343, 604, 605, 619, 674, 676, 800, 819, 834, 841, 1113, 1419, 1535, 1680, 1947, 1948, 1949, 1980, 1982, 2346, 3195, 3423, 3527.

  1. [41](Cap. 4) E aquelle mesmo dia fomos dormir a hum Mosteyro de officinas nobres & ricas que se dizia Satilgão, & como ao outro dia foy menham, caminhamos ao longo de hum rio mais cinco legoas, até hum lugar que se chamaua Bitonto, no qual nos agasalhamos aquella noite em hum bom Mosteyro de Religiosos que se chamaua Sao Miguel, com muyta festa & gasalhado do Prior & Sacerdotes que nelle estauão, onde nos veyo ver hum filho do Barnagais Gouernador deste imperio de Ethyopia, moço de idade de dezassete annos, & muyto bem desposto, acompanhado de trinta de mulas, & elle somente vinha em hum cauallo ajaezado à Portuguesa, com hum arreyo de veludo roxo franjado douro, que da India lhe mandara o Gouernador Nuno da Cunha auia dous annos, por hum Lopo Chanoca, que despois foy catiuo no Cayro, ao qual este Principe mandaua resgatar por hum mercador Iudeu natural de Azebibe, porem quãdo este lâ chegou, o achou ja morto, de que dizem que mostrou muyto sentimento, & nos affirmou o Vasco Martins, que aly naquelle Mosteyro de São Miguel lhe mandara fazer o mais honrado saymento que elle nunca vira em sua vida, no qual se ajuntarão quatro mil Sacerdotes, a fora outra mór copia de nouiços aque elles chamão Santileus.
  2. [149](Cap. 14) Prometo em nome do meu Rey a ty Senhor poderoso, que com descanço & grande alegria viues assentado no tisouro de tuas riquezas, que saõ os espiritos formados da tua vontade, que se te praz darnos victoria contra este tyranno Achem, paraque de nouo lhe tornemos a ganhar o que elle com tamanha treição & tanta perfidia nos tomou nos dous lugares de Iacur & Lingau, de sempre com muyta lealdade & agardecimento te conhecermos na ley Portuguesa da tua santa verdade, em que consiste o bem dos nacidos, & de nouo te edificarmos em nossa terra casas limpas de cheyros suaues, onde todos os viuos te adorem cõ as maõs aleuantadas, assi como na terra do grãde Portugal se fez sempre ategora.
  3. [151](Cap. 14) E embarcãdose logo na lanchara em que viera, se partio, & o foraõ acompanhando dez ou doze baloẽs até a ilha de Vpe que estaua daly pouco mais de meya legoa, onde o Bendara de Malaca, que he o supremo no mando, na honra, & na justiça dos Mouros, por mandado de Pero de Faria lhe deu hum grande banquete ao seu modo, festejado com charamellas, trombetas, & ataballes, & com musicas de boas falas a Portuguesa, com arpas, & doçaynas, & violas darco, que lhe fez meter o dedo na boca, que entre elles he sinal de grandissimo espanto.
  4. [302](Cap. 26) Porem antes que trate de outra cousa me pareceo necessario dar relaçaõ do fim que teue esta guerra dos Achẽs, & em que parou o aparato da sua armada, paraque fique entendida a razão do pronostico, & do receyo em que tantas vezes cõ gemidos & suspiros tenho apontado por parte da nossa Malaca, tão importãte ao estado da India, quanto (ao que parece) esquecida daquelles de quẽ com razão diuera ser mais lẽbrada, porque entẽdo que por via de razão, de duas ha de ser hũa, ou destruyrse este Achẽ, ou por seu respeito virmos nos a perder toda a banda do Sul, como he Malaca, Banda, Maluco, Çunda, Borneo, & Timor, a fora no Norte, a China, Iapaõ, Lequios, & outras muytas terras & portos em que a nação Portuguesa, por seus tratos & comercios tem mais importante & mais certo remedio de vida que em todas as outras quantas saõ descubertas do cabo de boa esperança para diante, cuja grandeza he tamanha que se estende a terra por costa em distãcia de mais de tres mil legoas, como se poderâ ver nos mapas & cartas que disso tratão, se sua graduação estiuer na verdade.
  5. [343](Cap. 30) Porque vos affirmo senhor Capitão que desque me entendi atégora, nenhũa outra cousa tenho visto, nem ouuido, se não que quãto os desauenturados como meu marido & eu mais fazem por vos os Portugueses, tanto menos fazeis vos por elles, & quanto mais deueis, menos pagais, pelo que infirindo daquy, o que claramente se pode affirmar, he, que o galardão da nação Portuguesa mais consiste, & mais pende da aderencia que do merecimento da pessoa.
  6. [604](Cap. 50) Mas como he custume de Deos nosso Senhor de grandes males tirar grandes beẽs, permitio pela inteireza de sua diuina justiça, que do roubo que Coja Acem nos fez na barra de Lugor, como atras fica dito, nacesse a Antonio de Faria determinarse em Patane de o yr buscar, para castigo de outros ladroẽs que tão merecido o tinhão à nação Portuguesa.
  7. [605](Cap. 50) E auendo ja algũs dias que continuaua com assaz de trabalho nesta enseada da Cauchenchina, estando nòs hum dia do nacimento de nossa Senhora que he a oito dias de Setembro, metidos num porto que se chamaua Madel, com receyo da lũa noua, que aquy neste clima vem muytas vezes taõ tempestuosa de ventos & chuuas, que não ha nauio que a possa aguardar, à qual tormenta os Chins chamão tufão, auendo ja tres ou quatro dias, que o tempo andaua toldado, & com mostras do que se receaua, & os juncos se vinhão meter não colheitas que achauão mais perto, prouue a nosso Senhor que na volta de muytos que neste porto entraraõ, fosse hum de hum cossayro muyto afamado que se chamaua Hinimilau, Chim de nação, que de Gentio que era se tornara Mouro auia pouco tempo, & parece, segundo se presumia, que prouocado pelos cacizes da seita Mafometica, que nouamente tinha tomado, ficou taõ inimigo do nome Christaõ, que dezia publicamẽte que lhe deuia Deos o Ceo pelo grande seruiço que lhe tinha feito na terra em a yr pouco a pouco despejãdo da mà geração Portuguesa, que por leite mamado nos peitos das mays se deleitaua em offensas suas como os proprios habitadores da casa do fumo; & assi por estas palauras, & por outras semelhãtes, dezia de nós cousas tão torpes & abominaueis, quais nunca se imaginaraõ.
  8. [619](Cap. 51) respondeo, que porque despois que fora Christão, fora sempre muyto desprezado dos Portugueses, porque onde antes, quãdo era Gentio, lhe fallauão todos co barrete na maõ, chamãdolhe Quiay Necodà, que era nomealo senhor capitaõ, despois que se fizera Christaõ, vieraõ a fazer pouca conta delle, & que se fora fazer Mouro em Bintaõ, onde despois de o ser, el Rey do Iantana, que se achara presente, o tratara sempre com muyta honra, & os Mandarins todos lhe chamauão irmaõ, pelo que prometera, & assi o jurara no liuro das flores, que em quanto viuesse seria inimicissimo da naçaõ Portuguesa, & de todo o mais genero de homem que professasse a ley Christam, o que el Rey & o caciz Moulana lhe louuaraõ muyto, dizendo que se tal fizesse lhe segurauão ser sua alma bemauenturada.
  9. [674](Cap. 55) Nisto gastamos, como ja disse, quinze dias nesta ilha, nos quais os enfermos cõualeceraõ de todo, & nos partimos na via do reyno de Liampoo, onde tinhamos por nouas que auia muyta gente Portuguesa, que ahy era vinda de Malaca, de Çunda, de Sião, & de Patane, a qual toda naquelle tempo aly custumaua de vir inuernar.
  10. [676](Cap. 56) Avẽdo ja dous dias que nauegauamos ao lõgo da costa de Lamau, cõ ventos & mares bonãçosos, prouue a nosso Senhor que a caso encontramos hũ junco de Patane que vinha dos Lequios, o qual era de hum cossayro Chim que se chamaua Quiay Panjão muyto amigo da nação Portuguesa, & muyto inclinado a nossos custumes & trajos, ẽ cõpanhia do qual andauão trinta Portugueses, homẽs todos muyto escolhidos que este cossayro trazia a seu soldo, a fora outras muytas ventagẽs que cada hora lhes fazia com que todos andauaõ ricos.
  11. [800](Cap. 66) Partidos nòs daquy deste porto de Nouday, auendo ja cinco dias que vellejauamos por entre as ilhas de Comolem & a terra firme, hum sabbado ao meyo dia nos veyo cometer hum ladraõ por nome Prematà Gundel, grandissimo inimigo da naçaõ Portuguesa, & a quem ja por vezes tinha feito muyto dano, assi em Patane, como em Çunda, & Sião, & nas mais partes onde acertaua de os achar a seu proposito, & parecendolhe que eramos Chins, nos cometeo com dous juncos muyto grandes, em que trazia duzentos homẽs de peleja, a fora a esquipação da mareagem das vellas, & aferrando hum delles o junco de Mem Taborda, o teue quasi rendido, porem o Quiay Panjaõ, que hia hum pouco mais ao mar, vendoo daquella maneyra voltou sobre elle, & abalroou o junco do inimigo assi infunado como vinha, & tomãdoo pela quadra destibordo, lhe deu tamanha pancada que ambos aly logo se foraõ ao fundo, com que o Mem Taborda ficou liure do perigo em que estaua; a isto acudiraõ com muyta pressa tres lorchas nossas que Antonio de Faria leuara do porto de Nouday, & quis nosso Senhor que chegando ellas saluaraõ a mayor parte da nossa gente, & os da parte contraria se afogaraõ todos.
  12. [819](Cap. 68) Todos estes seis dias que Antonio de Faria aquy se deteue; como lhe tinhão pedido os de Liãpoo, esteue surto nestas ilhas, no fim do qual tempo hũ Domingo antemenham, que era o tẽpo aprazado para entrar no porto, lhe deraõ hũa boa aluorada com hũa musica de muyto excellentes fallas, ao som de muytos instrumentos suaues, que daua muyto gosto a quem a ouuia, & no cabo, por desfeita Portuguesa, veyo hũa folia dobrada de tambores & padeyros & sestros, que por ser natural, pareceo muyto bem.
  13. [834](Cap. 69) Abalandose daquy Antonio de Faria, o quiserão leuar debaixo de hum rico pallio, que seis homẽs dos mais principaes lhe tinhaõ prestes, porem elle o não quiz aceitar, dizendo, que não nacera para tamanha honra como aquella que lhe querião fazer, & seguio seu caminho sem mais fausto que o primeyro, que era acõpanhalo muyta gẽte assi Portuguesa, como da terra, & doutras muytas naçoẽs que aly por trato de mercancia era junta, por ser este o milhor & o mais rico porto que então se sabia em todas aquellas partes, & leuaua diante de sy muytas danças, pellas, folias, jogos, & antremeses de muytas maneyras que a gente da terra que com nosco trataua, hũs por rogos, & outros forçados das penas que lhes punhaõ, tambem fazião como os Portugueses, & tudo isto acompanhado de muytas trombetas, charamellas, frautas, orlos, doçaynas, arpas, violas darco, & juntamente pifaros, & tambores, com hũ labarinto de vozes à Charachina de tamanho estrondo que parecia cousa sonhada.
  14. [841](Cap. 70) Acabada a Missa, sem chegaraõ a Antonio de Faria os quatro principaes do gouerno daquella pouoaçaõ ou cidade de Liampoo, como os nossos lhe chamauaõ, que eraõ Mateus de Brito, Lançarote Pereyra, Ieronymo do Rego, & Tristão de Gaa, & tomandoo entre sy, acompanhado de toda a gente Portuguesa; que seriaõ mais de mil homẽs, o leuaraõ a hum grande terreyro que estaua na frontaria das suas casas, todo cercado de hum espesso bosque de castanheyros assi como vieraõ do mato carregado de ouriços, ornado por cima de muytos estendartes & bandeyras de seda, & por baixo juncado de muyta espadana, ortelam, & rosas vermelhas & brancas, de que na China ha grandissima quantidade.
  15. [1113](Cap. 91) aque nós todos em o vendo, pondo os joelhos em terra co deuido acatamẽto, & algũs com as lagrimas nos olhos respondemos que sy, a que ella dando hum grito, & leuantando as mãos para o Ceo disse alto, Padre nosso que estas nos Ceos, santificado seja o teu nome, & isto disseo na lingoagem Portuguesa, & tornando logo Chim, como que não sabia mais do Portuguez que estas palauras, nos pedio muyto que lhe dissessemos se eramos Christaõs, aque todos respondemos que sy, & tomãdolhe todos juntos o braço em que tinha a Cruz a beijamos, & dissemos tudo o que ella deixara por dizer da oração do Padre nosso, porque soubesse que lhe falauamos verdade.
  16. [1419](Cap. 108) E nem destes ainda tratara, se não considerara, que poderia ser que em algum tempo permeteria nosso Senhor que se achasse a nação Portuguesa com tãtas forças, & co esprito tão aleuantado, que lançasse mão desta enformação para gloria do Senhor, & que por estes meyos humanos, ajudados do seu fauor diuino, se dé a entender a estes barbaros a verdade da nossa santa Fé Catholica, da qual elles por seus peccados andão tão alheyos que zombaõ de quanto lhe dizemos disto, & chegão a tanto barbarismo & desatino, que dizem que só em ver o rosto ao filho do Sol, que he o seu Rey, está ser hũa alma bẽauenturada mais que todas as outras cousas, por onde me parece que se Deos nosso Senhor por sua infinita bõdade & misericordia permitisse que o Rey desta gente se fizesse Christão, que em todo o mais pouo aueria pouco que fazer, & sem o Rey ser Christaõ, me parece muyto difficultoso selo nenhum dos seus, & isto pelo grande temor que todos tẽ da justiça, a qual he tão temida & venerada, & os ministros della tão acatados, que he cousa que a penas se poderá crer.
  17. [1535](Cap. 115) E auẽdo ja quasi hum més que aquy estauamos pacificamente, & contentes de nós por acertarmos milhor tratamento do que esperauamos, vẽdo o demonio quão conformes viuiamos todos noue, porque tudo o nosso era comum de todos, & todos irmammente repartiamos entre nòs essa miseria que cada hum tinha, ordenou semear entre dous de nòs hũa contẽda assaz perjudicial para todos, nacida de hũa certa vaidade que a nossa nação Portuguesa tem comsigo, a que não sey dar outra razão senão ter por natureza ser mal sofrida nas cousas da honra, & a differença foy esta.
  18. [1680](Cap. 124) Elle vinha num carro de tres rodas por bãda todo guarnecido de prata, com hũa cadeyra do mesmo em que hia assentado, & em torno deste pirange, (porque assi se chamaua) vinhaõ quarenta homens da estribeyra muyto bem vestidos cõ couras & calças de panno verde & roxo em enxadrez, com rendas de seda vermelha, & çapatos abrochados quasi â Portuguesa antiga, & espadas de mais de tres dedos de largo, com cabos & punhos & conteyras de prata, & suas cornetas de monte postas a tiracollo em cadeas tambem de prata, & nas cabeças hũas celadas a modo de gualteyras cõ muytas plumas nellas, guarnecidas de muyta soma de argentaria, de maneyra que o estado & apparato deste embaixador, que se chamaua Leixigau, era de tanta grandeza & magestade, que logo por elle se julgaua ser de principe muyto poderoso & rico.
  19. [1947](Cap. 141) Esta nobre molher disse isto a hũa sua sobrinha filha do Broquem Gouernador da cidade, em cuja casa se agasalhaua hũa molher Portuguesa que era casada co piloto que tambem estaua preso com nosco com dous filhos seus.
  20. [1948](Cap. 141) E querendoa esta já consolar, lhe descubrio o que tinha sabido, a qual pobre Portuguesa; tanto que esta senhora lhe deu esta noua, dizem que cahio supitamente no chaõ como morta, onde esteue sem falla hum grande espaço, & quando tornou em sy, se ferio com as vnhas no rosto tão cruelmente, que ambas as faces foraõ desfeitas em sangue, a qual cousa, tão noua & tão desacustumada entre esta gente, espalhandose logo por toda a cidade, causou em todas as molheres della tamanho espanto, que as mais dellas se sayrão de suas casas assi como naquella hora se acharaõ cos filhos & filhas pelas mãos, sem porem diante as reprensoens que lhe podiaõ dar seus maridos, nem arrecearem as más lingoas da gente praguenta & ociosa, que mouida da sua mâ inclinação & natureza tem por custume fallar mal de muytas cousas que pela singelleza & boa tenção com que saõ feitas, as aceitara nosso Senhor muytas vezes em seruiço.
  21. [1949](Cap. 141) E chegando assi todas a casa da filha do Broquem onde esta molher então estaua mais para morrer, que para dar razão do que hũas & outras lhe preguntauão, ellas mouidas pela causa primeyra & principal que he Deos nosso Senhor autor de todos os beẽs, o qual mouido da sua infinita bondade & misericordia, quando os trabalhos & os infortunios saõ mayores, então acode co remedio mais certo a aquelles que se achão mais atribulados, & mais desconfiados do remedio da terra, inda que eraõ Gentias se enterneceraõ tãto, & ouuerão tamanho dò das lagrimas & desacustumado sentimento que virão naquella molher, que determinarão todas entre sy de escreuerem hũa carta á mãy del Rey em nosso fauor, a qual escreueraõ aly logo, em que lhe dauão cõta de toda a verdade de nós, & do que por dito do pouo tinhão sabido, & quanto contra justiça se dera aquella sentença contra nós, & tambem lhe dezião o que esta Portuguesa fizera, & a grande dòr & lastima com que derramando sangue de todo seu rosto, lamentaua com altas vozes a morte de seu marido & de seus filhos, & lhe affirmaraõ que tinha Deos tomado â sua conta o castigo da sem razão deste crime, & as palauras da carta dezião assi.
  22. [1980](Cap. 143) E não contentes inda com isto, repartiraõ tambem todas entre sy agasalharemnos em suas casas o tempo que aly estiuessemos atè nossa partida, que forão quarenta & seis dias, nos quais fomos sempre muyto bem prouidos dellas de tudo o necessario em tanta abastança, que não ouue nenhum de nós que não trouxesse de cem cruzados para cima, & a Portuguesa em dinheyro & peças trouxe mais de mil, com que seu marido em menos de hum anno se restaurou do que tinha perdido.
  23. [1982](Cap. 143) E desta maneyra nos partimos desta cidade de Pongor, metropoly desta ilha Lequia, da qual aquy breuemente quiz dar algũa informação, como custumey de fazer nas outras terras de que atras tenho tratado, para que se em algum tẽpo Deos nosso Senhor for seruido de inspirar na nação Portuguesa, que primeyra & principalmente pela exaltação & acrecentamento da sua santa fé Catholica, & apos isso pelo muyto proueito que dahy pode tirar, queyra intentar a cõquista desta ilha, saiba por onde ha de pór os peis, & o muyto que pode ganhar no descobrimento della, & quão facil lhe será conquistala.
  24. [2346](Cap. 162) Em hũa destas achamos hũa molher Portuguesa, de que ficamos muyto mais espantados que de tudo quãto aly tinhamos visto, & querendo nòs saber della a razão de tão estranha nouidade, nos disse cõ muytas lagrimas quẽ era, & o modo como aly viera, & se casara cõ hũ jogue que peregrinaua naquellas cabildas, cõ que fora casada 23. annos, & ao presente estaua já viuua delle.
  25. [3195](Cap. 208) No fim deste tẽpo se passou ao reyno de Omanguchè, onde conuerteo passante de 3000. almas em pouco mais de hũ anno que esteue na cidade, que foy ate 5. de Setẽbro do anno de 1551. porque entaõ tẽdo nouas que ao reyno do Bũgo era chegada hũa nao Portuguesa, mandou logo lâ por terra que eraõ 60. legoas, hum Christão por nome Mateus, cõ hũa carta ao capitão & mercadores della, que dezia assi.
  26. [3423](Cap. 217) Despois que o padre Reitor proueo em tudo o que lhe pareceo que então era necessario, & tomou hũ pequeno de repouso, disse Missa muyto de madrugada, â qual se ajũtou toda a gente que ahy ao redor moraua, assi Portuguesa como da terra.
  27. [3527](Cap. 223) Despois que foy morta, & trazida fora â praya, foy o prazer del Rey tamanho, que a todos os pescadores que aly se acharaõ, libertou de hũ certo tributo que antes pagauão, & lhes deu nomes nouos de homens nobres, & a algũs fidalgos que aly estauão aceytos a elle acrecentou os ordenados que tinhão, & aos guesos, que saõ como moços da camara, mãdou dar mil taeis de prata, & a mim me recebeo com a boca muyto cheya de riso, & me pregũtou miudamẽte por muytas particularidades, a que eu respondy acrecentãdo em muytas cousas que me pregũtaua, por me parecer que era assi necessario a reputação da nação Portuguesa, & à conta em que até então naquella terra nos tinhão, porque todos então tinhão para sy que só o Rey de Portugal era o que cõ verdade se podia chamar monarca do mũdo, assi em terras, como em poder & tisouro, & por esta causa se faz naquella terra tanto caso da nossa amizade.

Portuguesas 4(1), 20(1), 147(1), 221(1), 226(1).

Nas orações: 37, 220, 2066, 3477, 3587.

  1. [37](Cap. 4) Daqvy desta paragem nos partimos para Arquîco, terra do Preste Ioaõ, a dar hũa carta que Antonio da Sylueira mandaua a hum Anrique Barbosa feitor seu, que là andaua auia tres annos por mandado do Gouernador Nuno da Cunha, o qual com quarenta homens que trazia comsigo escapara do aleuantamento de Xael, onde catiuaraõ dom Manoel de Meneses, com mais cento & sessenta Portugueses, & tomarão quatrocentos mil cruzados, & seis naos Portuguesas, que forão as que Soleymão Baxá Visorrey do Cayro leuou cos mantimentos & muniçoẽs da sua armada, quando no anno de mil, quinhentos & trinta & oito veyo pór cerco á fortaleza de Diu, por lhas o Rey de Xael mandar ao Cayro com sessenta Portugueses de presente, & dos mais fez esmola ao seu Mafamede, como cuydo que as historias que tratão da gouernança de Nuno da Cunha diraõ largamente.
  2. [220](Cap. 20) Partido eu com a pressa que digo deste rio Parlês, hum Sabado quasi Sol posto, cõtinuey por minha derrota atè a terça feyra ao meyo dia, em que prouue a nosso Senhor que cheguey às ilhas de Pullo Çambilão, primeira terra da costa do Malayo, onde achey tres naos Portuguesas, duas que vinhaõ de Bengala, & hũa de Pegù, de que era Capitão & senhorio hum Trisão de Gaa, ayo que fora de dom Lourenço filho do Visorrey dom Francisco de Almeida, que Miroocem matou na barra de Chaul, de que as historias do descubrimento da India fazem larga menção.
  3. [2066](Cap. 147) Daquy desta paragem vellejamos por nossa derrota mais quatro dias em que prouue a nosso Senhor que hũa menham nos achamos entre cinco naos Portuguesas que hião de Bengala para Malaca, âs quais todas mostrey o regimento que leuaua de Pero de Faria, & lhes fiz requerimento que fossem todas juntas por causa da armada dos Aachẽs que andaua na costa, porque o descuydo não fosse causa de algum desastre, & disso lhe pedy hum estromento, que todos me derão, & me prouerão de tudo o que me era necessario em muyta abastança.
  4. [3477](Cap. 221) Auia aquy trezentos casados com molheres Portuguesas & mistiças, auia dous espritais & casa de misericordia em que se despendião cada anno mais de trinta mil cruzados, & a camara tinha seis mil de renda.
  5. [3587](Cap. 226) Vellejãdo nos deste porto do Xeque por nossa derrota cõ vẽtos Nortes de moução tendẽte, chegamos a Lampacau aos quatro de Dezembro, onde achamos seis naos Portuguesas, de que era capitaõ mòr hum mercador que se chamaua Francisco Martinz, feitura de Francisco Barreto que então gouernaua o estado da India por successaõ de dõ Pedro Mascarenhas, & porque jà a este tempo a monção da India era quasi gastada; não fez aquy o nosso capitão dom Francisco Mascarenhas mais detença que em quanto se proueo de mantimentos para a viagem.

portugueses 80(2).

Nas orações: 961, 964.

  1. [961](Cap. 80) Estes quatorze portugueses que escapamos pela misericordia de nosso Senhor Iesu Christo, estiuemos todo aquelle dia & a noite seguinte chorãdo o nosso triste successo, & o miserauel estado em que nos viamos, sem nos sabermos dar a conselho, assi por ser agra a terra & de grande serrania, como por atè então naõ termos visto pessoa a que pudessemos preguntar por cousa algũa.
  2. [964](Cap. 80) Despois de serem enterrados estes defuntos, nos fomos apousentar num charco dagoa, no qual estiuemos até quasi a menham com medo dos tigres, daquy seguimos nosso caminho contra o Norte, por matos & brenhas taõ espessas, que em algũas partes as passauamos cõ muyto trabalho, assi caminhamos tres dias até chegarmos a hũ esteyro, sem nunca até então auermos vista de pessoa algũa, & cometendo passalo a nado, os primeyros quatro que se lãçaraõ a elle, que foraõ tres portugueses & hum moço, se afogarão logo, porque como hião ja muyto fracos & debilitados, & o esteyro era largo, & a corrẽte da agoa grande, naõ os ajudou a força dos braços a remar mais que atè hũ terço do rio: estes Portugueses todos tres erão homẽs muyto hõrados, & dous delles irmaõs, hum por nome Belchior Barbosa, & o outro Gaspar Barbosa, & o terceiro era primo destes, & se chamaua Frãcisco Borges Cayeiro, & todos tres naturaes de Põte de Lima, & de muyto boas partes, assi no esforço, como no mais preço de suas pessoas.

Portugueses 1(1), 4(8), 6(1), 8(1), 9(1), 10(1), 11(1), 13(1), 19(1), 21(1), 22(1), 24(1), 30(1), 33(4), 34(2), 35(7), 36(3), 38(2), 40(4), 42(1), 43(6), 45(2), 46(10), 47(2), 50(1), 51(11), 52(2), 53(2), 56(8), 57(10), 58(4), 59(3), 60(5), 61(1), 62(5), 63(2), 64(1), 66(4), 67(1), 68(3), 69(1), 70(1), 71(3), 74(1), 79(1), 80(1), 119(2), 127(1), 132(1), 133(1), 134(1), 137(4), 140(2), 143(1), 144(1), 145(7), 146(5), 147(4), 148(6), 149(6), 150(3), 151(1), 153(3), 154(2), 155(1), 157(2), 159(1), 161(1), 162(1), 163(2), 167(5), 170(3), 171(1), 172(2), 174(1), 177(1), 179(5), 180(6), 181(7), 182(2), 183(6), 185(1), 186(1), 188(1), 190(1), 192(1), 193(1), 195(5), 196(2), 198(2), 200(5), 202(3), 204(1), 205(1), 206(2), 208(1), 209(5), 210(2), 211(3), 212(5), 213(2), 214(4), 215(1), 216(1), 217(1), 220(1), 221(10), 222(4), 223(2), 224(3), 225(2).

Nas orações: 6, 37, 38, 45, 47, 72, 90, 100, 108, 119, 145, 215, 240, 257, 282, 343, 381, 383, 385, 387, 392, 395, 400, 402, 403, 405, 410, 411, 414, 423, 425, 450, 453, 471, 483, 487, 488, 511, 519, 520, 521, 523, 543, 547, 559, 560, 561, 563, 567, 574, 606, 615, 617, 619, 620, 621, 626, 630, 637, 675, 676, 679, 682, 683, 685, 688, 689, 690, 692, 693, 694, 698, 701, 707, 709, 710, 711, 716, 719, 723, 725, 730, 737, 744, 746, 748, 749, 750, 753, 754, 776, 797, 799, 803, 807, 811, 818, 820, 827, 834, 843, 853, 854, 858, 899, 959, 964, 1609, 1613, 1724, 1798, 1806, 1826, 1887, 1889, 1892, 1894, 1916, 1943, 1993, 1995, 2014, 2015, 2017, 2019, 2021, 2026, 2028, 2034, 2036, 2048, 2053, 2063, 2067, 2072, 2073, 2080, 2082, 2092, 2094, 2095, 2111, 2112, 2113, 2126, 2129, 2144, 2170, 2177, 2178, 2198, 2200, 2217, 2232, 2234, 2258, 2295, 2332, 2354, 2373, 2474, 2475, 2477, 2478, 2495, 2550, 2556, 2575, 2580, 2591, 2610, 2645, 2663, 2667, 2671, 2673, 2676, 2682, 2683, 2684, 2685, 2686, 2687, 2704, 2717, 2718, 2720, 2721, 2722, 2725, 2768, 2791, 2812, 2849, 2906, 2919, 2942, 2945, 2946, 2950, 2954, 2956, 2963, 2995, 2996, 3017, 3019, 3041, 3044, 3058, 3059, 3070, 3121, 3135, 3156, 3201, 3203, 3210, 3213, 3217, 3220, 3233, 3246, 3255, 3262, 3265, 3285, 3287, 3289, 3292, 3300, 3326, 3328, 3347, 3350, 3355, 3363, 3400, 3408, 3426, 3467, 3472, 3475, 3480, 3481, 3485, 3494, 3501, 3505, 3508, 3513, 3532, 3544, 3554, 3555, 3558, 3566, 3567.

  1. [6](Cap. 1) Atenção deste meu tio não teue o sucesso que elle imaginaua, antes o teue muito differente, porque auendo anno & meyo pouco mais ou menos que eu estaua no seruiço desta senhora, me socedeo hum caso que me pos a vida em tanto risco, que para a poder saluar me foy forçado sairme naquella mesma ora de casa, fugindo cõ a mayor pressa que pude, & indo eu assi tão desatinado co grande medo que leuaua, que não sabia por onde hia, como quẽ vira a morte diãte dos olhos, & a cada passo cuidaua que a tinha comigo, fuy ter ao cayz da pedra onde achey hũa carauella d’Alfama, que hia com cauallos & fato de hum fidalgo para Setuual, onde naquelle tempo estaua el Rey dõ Ioão o terceiro que santa gloria aja cõ toda a corte, por causa da peste que então auia em muytos lugares do Reyno: nesta carauella me embarquei eu, & ella se partio logo, & ao outro dia pella menhã sendo nos tãto auante como Cezimbra nos cometeo hum Frances cossairo, & abalroando com nosco, nos lãçou dentro quinze ou vinte homẽs, os quais sem resistencia, nẽ contradição dos nossos, se senhorearão do nauio, & despois que o despojarão de tudo quãto acharão nelle, que valia mais de seis mil cruzados, o meterão no fundo, & dezasete que escapamos cõ vida, atados de pès & de mãos nos meterão no seu nauio, cõ fundamento de nos leuarem a vender a Larache, para onde se dizia que hião carregados de armas que de veniaga leuauão aos Mouros, & trazendonos cõ esta determinação mais treze dias, banqueteados cada ora de muitos açoutes, quis sua boa fortuna que no cabo delles ao por do sol, ouuerão vista de hũa vella, & seguindoa aquella noite marcados pella sua esteira, como officiaes velhos praticos naquella arte, forão com ella antes do quarto da modorra rendido, & dandolhe tres çurriadas de artilharia a abalroarão muito esforçadamente, & ainda que na defensaõ ouue da parte dos nossos algũa resistencia, nem isso bastou para os inimigos deixarem de a entrar, com morte de seis Portugueses, & dez ou doze escrauos.
  2. [37](Cap. 4) Daqvy desta paragem nos partimos para Arquîco, terra do Preste Ioaõ, a dar hũa carta que Antonio da Sylueira mandaua a hum Anrique Barbosa feitor seu, que là andaua auia tres annos por mandado do Gouernador Nuno da Cunha, o qual com quarenta homens que trazia comsigo escapara do aleuantamento de Xael, onde catiuaraõ dom Manoel de Meneses, com mais cento & sessenta Portugueses, & tomarão quatrocentos mil cruzados, & seis naos Portuguesas, que forão as que Soleymão Baxá Visorrey do Cayro leuou cos mantimentos & muniçoẽs da sua armada, quando no anno de mil, quinhentos & trinta & oito veyo pór cerco á fortaleza de Diu, por lhas o Rey de Xael mandar ao Cayro com sessenta Portugueses de presente, & dos mais fez esmola ao seu Mafamede, como cuydo que as historias que tratão da gouernança de Nuno da Cunha diraõ largamente.
  3. [38](Cap. 4) Chegando nos a Gotor hũa legoa abaixo do porto de Massuaa, fomos todos bem recebidos da gente da terra, & de hum Portuguez que ahy achamos, por nome Vasco Martins de Seixas natural da villa de Obidos, que por mandado de Anrique Barbosa auia hum mès que aly estaua, esperando por algum nauio de Portugueses, com hũa carta do mesmo Anrique Barbosa que deu aos Capitaẽs, em que lhe daua as nouas que tinha sabido dos Turcos, & lhe pidia que em todo caso se fossem ver alguns Portugueses com elle, porque importaua muyto ao seruiço de Deos & del Rey, & que elle os não podia yr buscar, porque estaua naquella fortaleza de Gileytor em guarda de princesa de Tigremahom Mãy do Preste com quarenta Portugueses que ahy tinha comsigo.
  4. [45](Cap. 4) E dahy a dous dias & meyo chegamos a hũa boa pouoação que se chamaua Fumbau, duas legoas da fortaleza de Gileytor, onde achamos Anrique Barbosa cos quarenta Portugueses, os quais nos receberaõ com muyta alegria, acompanhada de grande copia de lagrimas, porque ainda que (como nos elles diziaõ) aly estiuessem muyto à sua vontade, sendo em tudo senhores absolutos de toda a terra, com tudo se não auião por satisfeitos nella, por ser aquillo desterro, & não patria sua.
  5. [47](Cap. 4) E ao outro dia pela menham que era hum Domingo quatro dias de Outubro nos fomos com elle & cos quarenta Portugueses ao aposento onde a Princesa viuia, a qual tanto que soube que eramos chegados, nos mandou entrar na capella onde ja então estaua para ouuir Missa, & pondonos em joelhos diante della, lhe beijamos o auano que tinha na mão, com mais outras cerimonias de cortesia ao seu vso que os Portugueses nos tinhão insinado.
  6. [72](Cap. 6) E nos os sete Portugueses que a este tempo, como ja disse, estauamos na praça para nos venderem em leylão, tomamos por remedio mais certo de nossa saluação tornarmonos a meter na mazmorra, sem que ministro algum de justiça, ou outra pessoa nos leuasse, ou fosse com nosco, ouuemos que em o Mocadão carcereyro della nos meter das portas a dentro, nos não fazia pequena merce.
  7. [90](Cap. 8) E que o Hidalcão respõdera por palaura aos offerecimentos que o Baxà lhe mandara fazer em nome do Turco, que antes queria a amizade del Rey de Portugal, com lhe ter tomada Goa, que a sua, com lhe prometer a restituição della: & que sós dous dias auia que a nao era partida, & que o Capitão della que se chamaua Cide Ale, deixara apregoada guerra co Hidalcão, jurando que como a fortaleza de Diu fosse tomada (o qual não tardaria oito dias, segũdo o estado em que ja ficaua posta) o Hidalcaõ perderia o reyno & a vida, & então conheceria quão pouco lhe podiam aproueitar os Portugueses.
  8. [100](Cap. 9) A que o Capitão mór respondeo cõ palauras prudentes & de cortesia, dizendo que beijaua as mãos a sua alteza por tamanha merce, & taõ bom conselho, mas que quanto a cometer os Turcos, por nenhum caso deixaria de fazer, porque não era custume de Portugueses deixarem de pelejar por medo dos inimigos serem muytos nem poucos, porque quãtos mais fossem, tanto mayor seria a sua perda delles, & com esta resposta foy o Bramene despidido, a quem o Capitão mòr deu hũa peça de chamallote verde, & hum chapeo forrado de citim cramesim, com que foy muyto contente.
  9. [108](Cap. 10) Os inimigos entendendo o dano que nos tinhão feito, derão hũa grande grita em sinal de victoria, chamando por Mafamede, porem o nosso Capitão mòr, vendo por quem elles chamauão, esforçando os seus lhes disse: Ah senhores & Christaõs, ja que estes caẽs chamão pelo diabo que seja com elles, chamemos nos por Iesu Christo que seja com nosco: & arremetendo com estas palauras outra vez á tranqueyra, os inimigos voltarão logo as costas, & fugiraõ manhosamente para onde estaua a Galé, com determinação de se fazerem nella fortes, porem alguns dos nossos que entraraõ com elles de volta, lhe tiueraõ ganhado a mór parte da tranqueyra, & dando elles então fogo a hũa mina que tinhão junto da porta, ficaraõ aly logo mortos seis Portugueses & oito escrauos, a fora outros que ficarão muyto queimados, com hũa fumaça tamanha, que nos não viamos hũs aos outros.
  10. [119](Cap. 11) Dizerte senhor Capitão quão agastada & triste está a Raynha pela morte de teu filho, & dos mais Portugueses que na peleja de ontem morreraõ, serà cousa impossiuel, porque afirmadamente te juro por vida sua, & por esta linha de Bramene que professey de pequeno, que tão afrontada ficou quãdo soube do teu desastre, & desauenturado successo, como se o dia de oje lhe fizeraõ comer carne de vaca na porta principal do pagode onde seu pay jaz enterrado, & por aquy senhor julgaras quanta parte tem no teu nojo, mas ja que no feito não pode auer o remedio que ella deseja, te pede & roga, que de nouo lhe confirmes as pazes que os Gouernadores passados lhe concederão, pois trazes poder do senhor Visorrey para isso, & que ella te fica, & te dà sua palaura de mandar logo queimar a Galè, & aos Turcos que se vão fora da sua terra, porque para o mais, como tu sabes, não he ella poderosa, & isto logo em termo de sós quatro dias, que para isso te pede de espaço.
  11. [145](Cap. 13) E querendo agora este Rey Bata pòr por obra o que tinha determinado, ajũtou hum campo de quinze mil homẽs, assi naturais como estrangeiros, em que algũs Principes seus amigos o ajudaraõ, & não contente com isto se quiz tambem valer do nosso fauor, & por isso cometeo Pero de Faria com esta noua amizade que atras disse, a qual lhe elle aceitou de muyto boa vontade, porque entendia quão importante ella era ao seruiço del Rey, & à segurança daquella fortaleza, & quanto com ella crecia o rendimento da alfandega; & o proueito seu delle, & dos Portugueses que naquellas partes do Sul tinhaõ seus tratos, & fazião suas fazendas.
  12. [215](Cap. 19) Pelo que te rogo muyto como amigo, que te não pareça mal isto que fiz, porque te affirmo que me magoaras muyto nisso, & se por ventura cuydas que o fiz para tomar a fazenda do Capitão de Malaca, crè de mym que nunca tal imaginey, & assi lho podes certificar cõ verdade, porque assi te juro em minha ley, porque sempre fuy muyto amigo de Portugueses, & assi o serey em quanto viuer.
  13. [240](Cap. 21) E mandandouos agora pedir que lhe valhais nesta afronta, como verdadeyros amigos, vos escusais de o fazerdes com rezoẽs de muyto pouca força, não montando mais o cabedal deste socorro todo, para satisfaçaõ de nosso desejo, & segurança de nos estes inimigos não tomarem o reyno, que sò atè quarenta ou cinquenta Portugueses com suas espingardas & armas, para nos ensinarem, & nos animarem em nossos trabalhos, & quatro jarras de poluora, com duzentos pilouros de berço, & com este pouco, que he bem pouco em comparação do muyto que vos fica, nos aueremos por muyto satisfeitos da vossa amizade, & o nosso Rey vos ficarà por isso muyto obrigado, paraque sempre com muyta lealdade sirua como escrauo catiuo ao Principe do grande Portugal, vosso & nosso senhor & Rey, da parte do qual, & em nome do meu vos requeiro senhores a ambos hũa & duas & cem vezes, que não deixeis de cũprir co que deueis, pois a importancia disto que aquy publicamente vos peço, he terdes o reyno de Aarù por vosso, & esta fortaleza de Malaca segura para a não senhorear este inimigo Achem, como determina fazer, pelos meyos que ja para isso tẽ procurado, com se valer de muytas naçoẽs de gentes estranhas, que continuamente recolhe em sua terra para este effeito.
  14. [257](Cap. 22) Disseme tambẽ que tinha quarenta espingardas, & vinte & seis Alifantes, & cinquenta de cauallo para guardarem a terra, & dez ou doze milheyros de paos tostados, que elles chamão Saligues, eruados com peçonha, & obra de cinquenta lanças, & hũa boa quantidade de padeses almagrados, para defensaõ dos que pelejassem na tranqueyra, & mil panellas de cal virgẽ em pò, para no abalroar lhe seruirẽ em lugar de alcanzias de fogo, & obra de tres ou quatro bateis de calhao, & outras miserias & pobrezas tanto atras do que conuinha para remedio daquelle aperto em que estaua, que por ellas mesmas, em as eu vendo, logo entendi quão pouco trabalho os inimigos terião em lhe tomarem o reyno: & perguntandome o que me parecia desta abundancia de moniçoẽs que tinha naquelles almazẽs, & se bastauão para receber aquelles hospedes que esperaua, lhe respondi eu, que sobejamente tinha cõ que os bãquetear, a que elle, despois de estar hum pouco pensatiuo, bulindo com a cabeça, me disse: Certo que se o Rey de vos outros Portugueses agora soubesse quanto ganhaua em me eu não perder, ou quanto perdia em os Achẽs me tomarem Aarù, elle castigaria o antigo descuydo de seus Capitaẽs, que cegos, & atolados em suas cubiças & interesses, deixaraõ criar a este inimigo tanta força, & tãto poder, que temo que ja quando quiser refrealo, não possa, & se puder que ha de ser com lhe custar muyto do seu.
  15. [282](Cap. 24) E auendo ja trinta & seis dias que estaua fora do seu poder, deitado no almarge, como sindeyro sem dono, pedindo de porta em porta algũa fraca esmolla que muyto raramente me dauão, por ser pobríssima toda a gente daquella terra; permitio nosso Senhor que jazendo eu hũ dia lançado na praya ao Sol, lamentando minhas desauenturas, acertou de passar hum Mouro natural da ilha de Palimbão, que ja por algũas vezes tinha ido a Malaca, & conuersado com Portugueses.
  16. [343](Cap. 30) Porque vos affirmo senhor Capitão que desque me entendi atégora, nenhũa outra cousa tenho visto, nem ouuido, se não que quãto os desauenturados como meu marido & eu mais fazem por vos os Portugueses, tanto menos fazeis vos por elles, & quanto mais deueis, menos pagais, pelo que infirindo daquy, o que claramente se pode affirmar, he, que o galardão da nação Portuguesa mais consiste, & mais pende da aderencia que do merecimento da pessoa.
  17. [381](Cap. 33) Sendo eu, como ja atras tenho dito, cõualecido da doẽça que trouxe do catiueyro de Siaca, Pero de Faria desejando de me abrir algũ caminho por onde eu viesse a ter algũa cousa de meu, me mandou em hũa lanchara de remo ao reyno de Pão, cõ dez mil cruzados de sua fazẽda, para os entregar a hũ seu feitor que là residia, por nome Tomé Lobo, & dahy me passar a Patane, que era outras cem legoas auante, cõ hũa carta & hũ presente para o Rey, & tratar cõ elle a liberdade de hũs cinco Portugueses que no reyno de Sião estauão catiuos do Monteo de Banchà seu cunhado.
  18. [383](Cap. 33) E continuando nesta confusaõ obra de hũa hora, enxergamos muyto ao lõge hũa cousa preta & rasa, sem vulto nenhum, & não sabendo determinar o que seria, tornamos de nouo a auer conselho sobre o que nisso fariamos, & com quanto na lanchara não eramos mais que quatro Portugueses, os pareceres foraõ muytos & muyto differentes hũs dos outros, em que ouue requereremme que não quisesse saber o que me não releuaua, & me fosse para onde me mandaua Pero de Faria, porque perder hũa só hora daquelle tempo, era pòr a viagem em vẽtura, & a fazenda em risco, & eu ficar dãdo mà conta de mim se me acõtecesse algũ desastre.
  19. [385](Cap. 33) E em quãto duraraõ estas altercaçoẽs, quiz Deos que esclareceo a menhã, em que distintamente vimos que era gẽte que se perdera no mar, que andaua sobre paos, então lhe pusemos afoutamẽte a proa a vella & a remo, chegandonos bem a elles para que nos conhecessẽ, gritaraõ muyto alto por seis ou sete vezes, sem dizerem outra cousa, senão, Senhor Deos misericordia, com a qual nouidade ficamos todos tão cõfusos & pasmados que quasi ficamos como fora de nos, & mãdãdo muyto depressa lãçar os remeyros da lanchara ao mar, os metemos todos dẽtro, que erão vinte & tres pessoas, quatorze Portugueses, & noue escrauos, os quais todos vinhaõ taõ disformes nas figuras dos rostos que metião medo, & tão fracos que nem a falla podião bem lançar pela boca.
  20. [387](Cap. 33) E ha ja quatorze dias que andamos sobre estes paos, sem em todos elles comermos mais que hũ cafre meu que nos falleceo, cõ que todos nos sustẽtamos oito dias, & inda esta noite nos falleceraõ dous Portugueses que não quisemos comer, tẽdo disso bem de necessidade, porque sem duuida nos pareceo que oje ate a menham acabassemos cõ a vida estes miseraueis trabalhos em que nos viamos.
  21. [392](Cap. 34) E neste dia nos fallecerão tres Portugueses dos quatorze que achamos perdidos, hum dos quais foy o Fernão Gil Porcalho Capitão do jũco, & cinco moços Christaõs, os quais todos lãçamos de noite ao mar, cõ penedos atados nos peis & nos pescoços paraque se fossem ao fundo, porque na cidade nolos não quiserão deixar enterrar, cõ quãto Tomé Lobo lhe daua por isso quarenta cruzados, dãdo por razão que ficaria a terra maldita, & incapaz de poder criar cousa algũa, por quãto aquelles defũtos não hião lauados do muyto porco que tinhão comido, que era o mais graue & inorme peccado que quãtos na vida se podião imaginar: aos outros destes perdidos que ficarão viuos, agasalhou o Tomê Lobo, & os proueo a todos muyto abastadamẽte de tudo o que lhes foy necessario atè cõualecerẽ, & se irẽ para Malaca.
  22. [395](Cap. 34) E que se tinha aquella noua por tão certa como me affirmaua, que porque deixaua yr aquelles onze Portugueses, ou porque não se embarcaua com elles para Malaca?
  23. [400](Cap. 35) E tendo ja quasi tudo arrecadado, com tenção de nos embarcarmos ao outro dia, ordenou o demonio que aquella noite logo seguinte acontecesse hum caso assaz espantoso, o qual foy que hum Coja Geinal Embaixador del Rey de Borneo que auia ja tres ou quatro annos que residia na corte del Rey de Pão, & era homẽ muyto rico, matou a el Rey, pelo achar cõ sua molher, pelaqual causa foy tamanha a reuolta na cidade, & em todo o pouo, que não parecia cousa de homẽs, se não de todo o inferno junto; vendo então algũs vadios & gente ociosa, desejosa de tais successos como aquelles, que o tempo & a occasiaõ era então muyto accommodada para fazerem o que antes co temor do Rey não ousauão, se ajuntaraõ nũa grande companhia quasi quinhentos ou seiscẽtos destes, & em tres quadrilhas se vieraõ à feitoria onde pousaua o Tome Lobo, & abalroando as casas por seis ou sete partes, nolas entraraõ por força, por mais que as nòs defendemos, & na defensaõ dellas foraõ mortas da nossa parte onze pessoas, entre as quais foraõ os tres Portugueses que eu trouxera comigo de Malaca, & o Tome Lobo escapou com seis cutiladas, de hũa das quais lhe derrubaraõ a face direita atè o pescoço, de que esteue à morte, pelo que a ambos nos foy forçado largarmoslhe a pousada cõ toda a fazenda que nella auia, & recolhermonos à lãchara, na qual prouue a Deos que escapamos com mais cinco moços, & oyto marinheyros, porem da fazenda não escapou nada, a qual só em ouro & pedraria passaua de cinquenta mil cruzados.
  24. [402](Cap. 35) E partindonos logo daly, dentro de seis dias chegamos a Patane, onde fomos bem recebidos dos Portugueses que auia na terra, aos quais demos conta de tudo o que acontecera em Paõ, & do mao estado em que ficaua a miserauel cidade, de que todos mostraraõ pesarhes muyto, & querendo fazer sobre isto algũa cousa, mouidos somente do zelo de bõs Portugueses, se foraõ todos a casa del Rey, & se lhe queixaraõ muyto da sem razão que se fizera ao Capitão de Malaca, & lhe pediraõ licença para se entregarem da fazenda que lhe era tomada, o que el Rey lhes concedeo leuemente, dizendo: Razão he que façais como vos fazem, & que roubeis quem vos rouba, quãto mais ao Capitão de Malaca, a quem todos sois tão obrigados.
  25. [403](Cap. 35) Os Portugueses todos lhe deraõ muytas graças por aquella merce; & tornandose para suas casas, assentaraõ que se fizesse represa em toda a cousa que achassem ser do reyno de Paõ, ate que de todo se satisfizesse aquella perda.
  26. [405](Cap. 35) E embarcandose oitenta Portugueses dos trezẽtos que então auia na terra, em duas fustas, & hum nauio redondo, bem aparelhados de todas as cousas necessarias â empresa que leuauão, se partiraõ daly a tres dias com grande pressa, por se temerem que se fossem sentidos pelos Mouros da terra dessem auiso aos outros Mouros que elles hião buscar.
  27. [410](Cap. 35) E com quanto erão de pazes & se dauão por nossos amigos, todauia trabalharaõ quanto foy possiuel, com peitas que deraõ aos regedores, & aos priuados de el Rey, para que fizessem com elle que nos acoimasse o feito, & nos lançasse fora da terra, o que el Rey não quiz fazer, dizendo, que por nenhum caso auia de quebrar as pazes que seus antepassados tinhão feitas com Malaca, mas querẽdose fazer terceiro, & meter a mão entre nos & os tomados, nos pidio que satisfazendo os tres Necodàs senhorios dos juncos o que em Pão se tomara ao Capitão de Malaca, lhes largassem liuremente as suas embarcaçoẽs, o que o Ioão Fernandez Dabreu, & os mais Portugueses outorgaraõ pelo muyto desejo que virão que el Rey tinha disso, de que se elle mostrou muyto contente, & lhes agardeceo aquella boa vontade com muytas palauras.
  28. [411](Cap. 35) E desta maneyra se cobraraõ os cinquenta mil cruzados que Pero de Faria & Tome Lobo tinhaõ perdidos; & os Portugueses ficaraõ na terra cõ credito & nome honroso, & muyto temidos dos Mouros.
  29. [414](Cap. 36) Avendo ja vinte & seis dias que eu estaua aquy em Patane acabãdo de auiar hũa pouca de fazenda que viera da China para me tornar logo, chegou hũa fusta de Malaca, de que vinha por Capitão hum Antonio de Faria de Sousa, o qual, por mandado de Pero de Faria, vinha a fazer aly certo negocio com el Rey, & assentar com elle de nouo as pazes antiguas que tinha com Malaca, & agradecerlhe o bom tratamento que no seu reyno fazia aos Portugueses, & outras cousas a este modo de boa amizade, importantes ao tempo, & ao interesse da mercancia, que na verdade era o que mais se pretendia que tudo, porem esta tenção vinha rebuçada com hũa carta a modo de embaixada, acompanhada de hum presente de boas peças, mandadas em nome del Rey nosso Senhor, & â custa de sua fazenda, como he custume fazerem os Capitaẽs todos naquellas partes.
  30. [423](Cap. 36) E esta he a noua que achamos quando surgimos na boca do rio, cõ a qual ficamos todos bem aluoroçados & contentes, & determinamos que tanto que viesse a viraçaõ entrarmos para dentro, porem quiz a desauentura por nossos peccados, que não vissemos isto que tanto desejauamos, porque sendo quasi às dez horas, estando ja para jantar, & com a amarra a pique para em acabando nos fazermos à vella, vimos vir de dentro do rio hum junco muyto grande só co traquete, & mezena, & em emparelhando com nosco surgio, hũ pouco a balrauento donde nos estauamos, & tanto que foy surto, conhecendo que eramos Portugueses, & muyto poucos, & nos vio a embarcaçaõ taõ pequena, arriando da amarra, se deixou descayr sobre nos, & igualandose cõ a nossa proa pela banda dastribordo nos lançou dous arpeos talingados em duas cadeas de ferro muyto compridas com que nos atracou a bordo.
  31. [425](Cap. 36) Saindo entaõ da tolda, onde ate então estiueraõ escondidos, obra de setenta ou oitenta Mouros, entre os quais auia algũs Turcos de mistura, deraõ hũa grande grita, & apos ella foraõ tantas as pedras, os zargunchos, as lãças, & as chuças de arremesso sobre nòs, que parecia chuua que cahia do Ceo, com que logo em menos de hũ credo, dos dezasseis Portugueses que eramos, os doze foraõ mortos com mais trinta & seis moços & marinheyros.
  32. [450](Cap. 38) E ja neste tempo os Portugueses erão tãtos que não cabião nas casas, porque da mayor parte delles leuaua fazenda a triste da lanchara; & assi o cabedal que ella leuou passaua de sessenta mil cruzados, de que a mayor parte era em prata amoedada para se comprar cõ ella ouro.
  33. [453](Cap. 38) E logo publicamente perante todos fez juramẽto nos santos Euãgelhos, & disse, que alem do que juraua, prometia tambem a Deos de yr logo daly em busca de quem lhe tomara sua fazenda; o qual lha auia de pagar ao galarim, ou por bem, ou por mal, inda que por bem ja entendia que não podia ser por nenhũa via, porque quem lhe matara dezasseis Portugueses, & trinta & seis moços & marinheyros Christãos, nao era razaõ que passasse taõ leuemente sem algum castigo, porque se assi não fosse, cada dia nos fariaõ hũa, & outra, & cento semelhantes a esta.
  34. [471](Cap. 40) Os da nao em vez de nos responderem pelo mesmo modo, como estaua em razão, parece que conhecendo que eramos Portugueses, a quem não tinhão boa vontade, nos mostraraõ de cima do chapiteo, fallãdo com pouca cortesia, o traseyro de hum cafre, & sobre isso com muytos tangeres de trombetas & tambores & sinos derão hũa grande grita & apupada a modo de desprezo & escarneo, como na verdade então fazião de nós, de que Antonio de Faria se mostrou assaz afrontado.
  35. [483](Cap. 40) A mim senhor me chamão Bastião, & fuy catiuo de Gaspar de Mello, que esse perro que ahy está atado matou agora faz dous annos em Liãpoo cõ mais vinte & seis Portugueses que elle trazia comsigo na sua nao.
  36. [487](Cap. 40) E despois de fazer dar a morte ao Similau & aos outros seus cõpanheyros, que foy cõ lhes mandar lançar os miolos fora cõ hũa tranca, assi como elle fizera em Liampoo a Gaspar de Mello & aos outros Portugueses, se embarcou logo cõ trinta soldados no batel & nas mãchuas em que os inimigos vierão, & com conjunção de marè & de bom vẽto, em menos de hũa hora chegou ao jũco que estaua surto dentro no rio hũa legoa adiante donde nos estauamos, & arremetẽdo a elle sem estrõdo de grita nenhũa se senhoreou do chapiteo de popa, dõde cõ sòs quatro panellas de poluora que lhe lançou no conués, onde a canalha estaua deitada, os fez lançar todos ao mar, de que morreraõ dez ou doze, & os mais por andarem bradando na agoa que se afogauão, mãdou Antonio de Faria que os recolhessem, por serem necessarios para a mareação do junco que era muyto grãde, & muyto alteroso.
  37. [488](Cap. 40) E por esta via, que assi passou na verdade, prouue a nosso Senhor por justo juizo de sua diuina justiça que a soberba deste perro fosse o ministro que nelle fizesse a execução do castigo de seus males, para que a mãos de Portugueses pagasse o que lhes tinha feito.
  38. [511](Cap. 42) Saydos do rio acharaõ na barra hum junco surto que lhes pareceo ser vella da outra costa, a qual auia pouco que tinha surgido, & chegados onde Antonio de Faria estaua, o informaraõ do que tinhão visto, & da grossa armada que estaua dentro no rio, & do junco que acharaõ surto na barra, dizendolhe muytas vezes que quiça poderia ser aquelle o perro do Coja Acem que elle buscaua, com a qual noua elle ficou tão aluoroçado, que sem mais esperar hum momento, largando a amarra com que estaua surto, se fez à vella, dizendo que o seu coração lhe dizia que sem duuida nenhũa era aquelle, & que a isso poria a cabeça, & que sendo aquelle, nos certificaua, que aueria por bem empregado morrer na demanda a troco de se vingar de quem tanto mal lhe fizera, & que à ley de bom homem juraua que o não dezia pelos seus doze mil cruzados, que ja lhe não lembrauão, se não só pelos quatorze Portugueses que o perro lhe tinha mortos.
  39. [519](Cap. 43) Chegado este homẽ jũto de Antonio de Faria, vendo elle que era brãco como qualquer de nós, lhe perguntou se era Turco ou Parsio, ao que elle respondeo que não, mas que era Christão, natural de monte Sinay, onde estaua o corpo da bemauenturada santa Caterina, a isto lhe replicou Antonio de Faria, que pois era Christão como dezia, como não andaua entre Christãos, a que elle respondeo que era mercador, & de boa progenie, por nome Tome Mostãgue, & que estãdo surto com hũa nao sua no porto de Iudaa no anno de 1538. o Soleimão Baxà Visorrey do Cayro lha mandara tomar, como fizera a mais outras sete, para trazerem mantimẽtos & muniçoẽs para fornimento da armada das sessenta galês em que vinha por mandado do Turco, para restituyr o Soltão Baudur no reyno de Cambaya, de que o Mogor naquelle tempo o tinha desapossado, & lançar os Portugueses fora da India, & que vindo elle na mesma nao para a beneficiar & arrecadar o seu frete que lhe tinhão prometido, os Turcos, alem de lhe mentirem em tudo como sempre costumão, lhe tomarão sua molher, & hũa filha pequena que trazia comsigo, & perante elle as deshonraraõ publicamente, & porque hum filho seu, chorando se lhes queixou deste grande mal, lho lançaraõ viuo ao mar, atado de pees & de mãos, & a elle meteraõ em ferros, & lhe dauão todos os dias muytos açoutes, & lhe tomarão sua fazenda, que eraõ mais de seis mil cruzados, dizẽdo, que não era licito lograr beẽs de Deos, senão os Massoleymoẽs, justos & santos assi como elles; & porque neste meyo tempo lhe faleceraõ a molher & a filha, elle como desesperado se lançara hũa noite ao mar na barra de Diu, com aquelle moço seu filho, donde por terra fora ter a Çurrate, & dahy se viera ter a Malaca em hũa nao de Garcia de Saa Capitão de Baçaim, donde por mandado de dõ Esteuão da Gama fora à China com Christouão Sardinha, que fora feitor de Maluco, o qual estando hũa noite surto em Cincaapura, o Quiay Taijão senhor daquelle junco matara cõ mais vinte & seis Portugueses, & que a elle por ser bombardeyro dera a vida, & o trazia comsigo por seu Cõdestabre.
  40. [520](Cap. 43) A que Antonio de Faria, dando hum grande brado, & batẽdo com a mão na testa, a modo de espãto, disse, ó valhame Deos, ó valhame Deos, parece que he sonho isto que ouço, & virandose para os soldados que estauão à roda, lhes contou todo o discurso da vida daquelle Quiay Taijão, & lhe affirmou que por algũas vezes tinha mortos em embarcaçoẽs desencaminhadas que achara pelo mar, & com pouca força, mais de cẽ Portugueses, & roubados passanto de cem mil cruzados, & que ainda que o seu nome era o que aquelle Armenio dizia Quiay Taijão, despois que em Cincaapura matara Christouão Sardinha, se nomeaua, por vamgloria do que fizera, o Capitão Sardinha, & perguntando ao Armenio por elle, ou onde estaua, disse que estaua escondido na proa do junco no payol das amarras, muyto ferido, com mais outros seis ou sete.
  41. [521](Cap. 43) Antonio de Faria se leuantou logo com muyta pressa, & se foy ao lugar onde o perro estaua, & os mais dos soldados se foraõ tras elle, & abrindo o escotilhão do payol para ver se era verdade o que o Armenio dissera, o perro com os seis que com elle estauão se sayrão por outro escotilhão que estaua mais abaixo, & feitos a amoucos arremeteraõ aos nossos, que passauão de trinta, a fora outros quarenta moços, & de nouo se tornou a trauar a briga de tal maneyra que em pouco mais de tres credos que os nossos os acabaraõ de matar, elles nos matarão dous Portugueses, & sete moços, & feriraõ mais de vinte, & o Capitão Antonio de Faria ficou com duas cutiladas na cabeça, & hũa num braço de que esteue muyto maltratado.
  42. [523](Cap. 43) E acharaõse mais tres arcas encouradas, com muytas colchas & vestidos de Portugueses, & hum prato de prata dagoa ás mãos, dourado, com seu gomil & saleyro da mesma maneyra, & vinte & duas colheres, & tres castiçaes, & cinco copos dourados, & cinquenta & oito espingardas, & sessenta & duas corjas de roupa de Bengala, o qual mouel todo fora de Portugueses, & dezoito quintais de poluora, & noue crianças de seis atè oito annos, todos com bragas nas pernas, & algemas nas mãos, & tais que era lastima velos da maneyra que estauão, porque não trazião mais que as pelles somente pegadas nos ossos.
  43. [543](Cap. 45) E espantandose Antonio de Faria & os mais Portugueses que estauão com elle de tamanhas grandezas como este mercador lhe dizia, lhe tornou elle, se vos outros desta pouquidade fazeis tamanho caso, que fizereis se vireis a cidade do Pequim onde sempre reside o filho do Sol com sua corte, & onde vão ter todos os rendimentos dos trinta & dous reynos desta Monarchia, que somente de ouro & prata que se tira das oitenta & seis minas, se affirma que saõ mais de quinze mil picos?
  44. [547](Cap. 45) Apos isto elle & os outros que trazia comsigo se despidiraõ do Capitão & dos Portugueses com muytas palauras de cũprimentos, de que commummente não saõ nada auarentos, & a Antonio de Faria em retorno do que lhe tinha dado, deu hũa boceta de tartaruga pequena como hum saleiro, chea de graõs de aljofre, & doze perolas de honesta grandeza, dizendo que lhes perdoasse por não fazerem aly fazẽda com elle, porque arreceauão que os matassem por isso, conforme à rigurosa ley da justiça daquella terra, & que lhe rogaua que logo se fosse, antes que viesse o Mandarim da armada, porque se aly o achasse, soubesse certo que lhe auia de queimar as embarcaçoẽs.
  45. [559](Cap. 46) Despois que os nossos foraõ curados, & agasalhados o milhor que então foy possiuel, Antonio de Faria mandou recolher os marinheyros que se tinhão lançado ao mar, os quais andauão bradando que lhe valessem que se afogauão, & trazidos ao seu junco grande onde elle estaua, os mandou prender a todos, & perguntandolhes que juncos erão aquelles, & como se chamaua o Capitão delles, & se era viuo ou morto, nenhum quiz fallar a proposito, mas deixandose morrer emperradamente sem fazerem caso dos tratos que lhe dauão, bradou Christouão Borralho do outro junco em que estaua, dizendo, ha senhor, ha senhor, acuda vossa merce cà, porque temos mais custura do que cuydamos, & saltando Antonio de Faria logo com quinze ou dezasseis soldados dentro no junco, lhe perguntou que era, ao que elle respondeo, ouço cá na proa fallar muyta gente que deue de estar escondida; acudindo elle então com todos os que tinha comsigo, & mandando abrir a escotilha, ouuio logo embaixo hũa muyto grande grita que dezia, Senhor Deos misericordia, cõ tão espantosos vrros & prantos que parecia cousa de encantamento; espantado elle disto, se chegou com algũs dos nossos à boca da escotilha, & viraõ todos jazer embaixo no prão hũa grande quãtidade de gente presa, & não podendo ainda o Capitão acabar de entender o que estaua vẽdo cos olhos, mandou que fossem ver o que era, & saltando embaixo dous moços, trouxeraõ acima dezassete pessoas Christãs, as quais eraõ dous Portugueses, & cinco meninos, & duas moças, & oito moços, os quais todos vinhão de maneyra que era hum lastimosissimo espectaculo velos, & tirandolhes logo as prisoẽs em que vinhão, que erão colares & algemas, & cadeas de ferro muyto grossas, forão prouidos do necessario, porque os mais delles vinhão de todo nùs, sem trazerem cousa algũa sobre sy.
  46. [560](Cap. 46) Apos isto perguntado hum dos dous Portugueses, porque o outro estaua como morto, cujos filhos erão aquelles mininos, & como vierão ter ao poder daquelle ladraõ, & como se elle chamaua, respondeo que o ladraõ tinha dous nomes, hum de Christão, & outro de gentio, o de gentio porque se então nomeaua era Necodà Xicaulem, & o de Christão era Francisco de Saa, o qual auia cinco annos que em Malaca se fizera Christão, sendo Garcia de Saa Capitão da fortaleza, & que porque elle fora seu padrinho do bautismo lhe pusera aquelle nome, & o casara com hũa moça orfam mestiça muyto gentil molher, & filha de hum Portugues muyto honrado a fim de o fazer mais natural da terra, & que indo no Anno de 1534 para a China em hum junco seu muyto grãde, no qual leuaua vinte Portugueses dos mais honrados, & ricos da fortaleza, & tambem sua molher, chegando à ilha de Pullo Catão fizera ahy agoada, com tençaõ de passar ao porto do Chincheo, & auendo ja dous dias que ahy estaua, como a esquipaçaõ do junco era toda sua, & Chim como elle, se leuantaraõ hũa noite estando os Portugueses dormindo, & com as machadinhas que traziaõ, os mataraõ a todos, & aos seus moços, sem a nenhum que tiuesse nome de Christaõ se dar a vida, & cometeo à molher que se fizesse gentia, & adorasse hum idolo que o seu Tucão mestre do junco leuaua nũa arca, & que assi desatada da ley Christam a casaria com elle, porque o Tucaõ lhe daua por isso hũa irmam sua que aly leuaua comsigo, tambem gentia & China como elle, & porque a molher não quisera adorar o idolo, nem cõsentir em tudo o mais que lhe elle dezia, o perro lhe dera com hũa machadinha na cabeça, com que logo lhe lançara os miolos fora.
  47. [561](Cap. 46) E partido daly se fora ao porto de Liãpoo, onde aquelle anno fizera fazenda, & receoso de yr a Patane por causa dos Portugueses que lâ residiaõ, se fora inuernar a Siaõ, & o anno seguinte se tornara ao porto do Chincheo, onde tomara hum junco pequeno cõ dez Portugueses, que vinha da Çunda, & os matara a todos.
  48. [563](Cap. 46) E perguntãdolhe Antonio de Faria se eraõ aquelles mininos filhos dos Portugueses que dezia, respondeo que naõ, mas que eraõ filhos de Nuno Preto, & de Giaõ Diaz, & de Pero Borges cujos eraõ tãbem os moços & as moças, os quais Portugueses elle tambem matara em Mompollacota na barra do rio de Siaõ, num junco de Ioaõ de Oliueyra, em que tamben matara dezasseis Portugueses, & que a elles ambos, hũ por ser carpinteyro, & outro por ser calafate, dera a vida, & que auia ja perto de quatro annos que os trazia assi cõsigo, matandoos sempre de fome, & de açoutes, & que quando nos cometera, naõ lhe pareceo que eraõ Portugueses, se naõ Chins mercadores como os mais que elle sempre custumaua a roubar onde os achaua de bõ lanço, como cuydaua que achara a nòs; & perguntado se conheceria o ladrão entre aquelles mortos, disse que sy, cõ que Antonio de Faria se leuantou logo, & tomandoo pela mão se passou com elle ao outro jũco que estaua abalroado com este, & mostrandolhe todos os que estauão mortos no conuès, disse que nenhum daquelles era, & mandando esquipar as manchuas, o foy em pessoa buscar entre os outros mortos que andauaõ pelo mar, onde foy achado com hũa grande cutillada na cabeça, & hũa estocada por meyo dos peitos, & trazendoo acima ao conues do junco lhe tornou a perguntar se era aquelle, a que elle respondeo que sy sem falta nenhũa, a que Antonio de Faria lhe deu credito por causa de hũa cadea de ouro grossa que trazia cingida, com hum idolo de duas cabeças da feiçaõ de lagarto, tambẽ de ouro, co rabo & maõs esmaltados de verde & preto.
  49. [567](Cap. 47) E assi se acharaõ mais dezassete peças de artilharia de brõzo, em que entrauão quatro falcoẽs, & hum camello, & doze berços, & a mais della, ou quasi toda cõ as armas reais, porque este perro a tinha tomada toda nos tres nauios em que matara os quarẽta & seis Portugueses.
  50. [574](Cap. 47) Chegada a lanteaa em que vinha o tio da noiua com esta carta, Antonio de Faria mandou esconder todos os Portugueses, & que não aparecessem mais que sòs os Chins que leuauamos por marinheyros, porque não duuidasse chegar a nós, a lanteaa chegandose muyto seguramẽte ao jũco, tres dos que vinhaõ nella subiraõ logo acima, & preguntaraõ pelo noiuo, mas a reposta que os nossos lhe deraõ foy apanhalos a todos assi como vinhão, & dar com elles da escotilha embaixo, & como todos elles, ou os mais vinhão bebados, nem os que ficauão na lanteaa sentiraõ o rumor que os nossos fizeraõ, nem se puderaõ afastar taõ depressa que de cima do chapiteo lhe não dessem hum cabo â ponta do masto com que o atracarão de maneyra que nunca ja mais se puderaõ desembaraçar, & lançandolhe de cima algũas panellas de poluora, os fizeraõ lançar a todos ao mar, & saltaraõ logo na lanteaa seis ou sete soldados com outros tantos marinheyros & se senhorearaõ della, na qual despois foy necessario tornar a recolher os tristes que andauão na agoa bradando que se afogauão.
  51. [606](Cap. 50) Entrando este cossairo pelo rio dentro, num junco muyto grande & alteroso, com a gente toda occupada no marear das vellas, por ser grãde a çarraçaõ do tempo, & com muyto vento & chuueyros, em prepassando por junto donde nòs estauamos surtos, nos saluou a Charachina, a que respondemos pelo mesmo modo, como se custuma nestas entradas, sem ate entaõ nos conhecer por Portugueses, nem nòs a elles, mais que somente cuydarmos que eraõ elles Chins como os outros, que cada hora entrauão por causa do tempo de que vinhaõ fugindo.
  52. [615](Cap. 51) A vida esta vitoria, da maneyra que tenho contado, se entendeo logo primeyro que tudo na cura de algũs que ficarão feridos, por ser negocio mais importante, apos isso, sendo Antonio de Faria certificado que hum dos dezasseis que saluara, era o cossayro, o mandou logo trazer perante sy, & despois de o mandar curar de duas feridas que tinha lhe perguntou pelos moços dos Portugueses, a que elle emperradamente respondeo que não sabia, & tornandoo a preguntar com ameaços, disse que lhe dessem primeyro hũa pouca de agoa, porque se lhe tolhia a fala, trazida a agoa, a bebeo taõ apressadamente, que se lhe entornou quasi toda, & porque não ficou satisfeito, tornou a pedir mais agoa, dizendo que se o fartassem bẽ della, prometia pela ley de Mafamede, & por todo seu alcoraõ de confessar tudo quanto quisessem saber delle, & Antonio de Faria lha mandou trazer logo com hum frasco de confeitos, de que elle não quiz comer, porem da agoa bebeo hũa grande quantidade, & tornandolhe a perguntar pelos moços Christaõs, respondeo que no payol da proa os acharião, & Antonio de Faria mandou tres soldados que os fossem logo buscar, os quais abrindo a escotilha para os chamarem acima, os viraõ a todos embaixo jazer degolados, de que ficaraõ tão sobresaltados, que com hũa tamanha grita que metia medo começaraõ a dizer, Iesu, Iesu, Iesu, venha vossa merce cá, & verà hũa cousa assaz lastimosa, Antonio de Faria com todos os mais que com elle estauão, correo logo á proa com muyta pressa, & quando vio os moços jazer todos mortos hũs sobre os outros, ficou tão cortado, que não podendo ter as lagrimas, pondo os olhos no Ceo, & com as maõs aleuantadas disse em voz alta & magoada, ó bendito sejais meu Senhor Iesu Christo por quão piadoso & misericordioso sois em sofrerdes offensa taõ graue como esta, & mandandoos tirar acima, não auia homem que pudesse ter as lagrimas, & que não fizesse outros mayores estremos, vẽdo hũa molher com dous mininos de seis até sete annos, ambos muyto fermosos & innocentes descabeçados sem nenhũa piedade, & os cinco moços que tinhaõ bradado por nòs com as tripas fora dos corpos & escalados pelas costas.
  53. [617](Cap. 51) a que elle respondeo, que por lhe serem tredros em se mostrarem a gente tanto sua inimiga como eraõ Portugueses, & gritarem pelo seu Deos que lhes valesse, & quanto aos dous mininos disse que bastaua serem filhos de Portugueses, a quem nunca tiuera boa vontade, & com esta mesma isenção respondeo a outras algũas preguntas que lhe fizeraõ, & com tanta pertinacia como se fora o proprio demonio em carne.
  54. [619](Cap. 51) respondeo, que porque despois que fora Christão, fora sempre muyto desprezado dos Portugueses, porque onde antes, quãdo era Gentio, lhe fallauão todos co barrete na maõ, chamãdolhe Quiay Necodà, que era nomealo senhor capitaõ, despois que se fizera Christaõ, vieraõ a fazer pouca conta delle, & que se fora fazer Mouro em Bintaõ, onde despois de o ser, el Rey do Iantana, que se achara presente, o tratara sempre com muyta honra, & os Mandarins todos lhe chamauão irmaõ, pelo que prometera, & assi o jurara no liuro das flores, que em quanto viuesse seria inimicissimo da naçaõ Portuguesa, & de todo o mais genero de homem que professasse a ley Christam, o que el Rey & o caciz Moulana lhe louuaraõ muyto, dizendo que se tal fizesse lhe segurauão ser sua alma bemauenturada.
  55. [620](Cap. 51) E perguntado quanto tempo auia que se leuantara, & que nauios de Portugueses tinha tomado, & quantos homẽs mortos, & que fazenda roubada; disse que de sete annos a esta parte, o primeyro nauio que tomara fora o junco de Luys de Pauia no rio de Liampoo, com quatrocentos bares de pimenta sem droga nenhũa, onde matara dezoito Portugueses, a fora os seus escrauos, de que não fazia caso, por não serem gente que o satisfizesse no que tinha jurado, mas que despois por conjunçoẽs de acertos que achara no mar, tomara mais quatro embarcaçoẽs, nas quais matara perto de trezentas pessoas, mas que Portugueses não serião mais que setenta, & que lhe parecia que podia chegar o que tinha tomado de mil & quinhentos atè mil & seiscentos bares de pimenta, & outra fazenda, da qual el Rey de Paõ lhe tomara logo mais de a metade pelo recolher em sua terra, & segurar dos Portugueses, dandolhe para isso aquelles cem homẽs que andauão com elle, & lhe obedecessem como a Rey.
  56. [621](Cap. 51) E perguntado se matara mais Portugueses, ou dera fauor para isso, respondeo que não, mas que estando auia dous annos no rio do Choaboquec na costa da China, fora ahy ter hum junco grande com muytos Portugueses, de que era Capitaõ hum homem muyto seu amigo que se chamaua Ruy Lobo, que dõ Esteuão da Gama Capitaõ de Malaca mandara de veniaga, o qual despeis de ter feita sua fazenda se sayra do porto embandeirado por yr muyto rico, & que auendo ja cinco dias que era partido, lhe abrira o junco hũa agoa muyto grossa, & não a podendo vencer, lhe fora forçado tornar a demandar o porto donde partira, & vindo com vento rijo infunado com todas as vellas, por chegar mais depressa, se lhe fora supitamẽte ao fundo, de que se saluara o Ruy Lobo cõ dezassete Portugueses, & algũs escrauos, & viera ter na Champana ao ilheo de Lamau sem vella, nem agoa, nem mantimento algum.
  57. [626](Cap. 52) E deste honrado feito ficaraõ os Chins taõ assombrados, que pasmauão onde ouuiaõ nomear Portugueses, em tanto que vendo os Necodàs senhorios dos juncos que estauão naquelle porto, que a cada hum delles se podia fazer outro tanto, se ajuntaraõ todos em hũa consulta, a que elles chamão bichara, & nella elegeraõ entre sy dous dos mais hõrados, & mais sufficientes para o que pretẽdiaõ, pelos quais como Embaixadores mandaraõ dizer a Antonio de Faria, que como a Rey do mar lhe pedião que debaixo do seguro de sua verdade os quisesse emparar, para poderem sayr daly onde estauão a fazer suas viagẽs, antes que se lhe acabasse a monçaõ, & que lhe darião logo por isso em reconhecimento de tributarios, & subditos seus como escrauos, vinte mil taeis de prata, de que logo sem falta nenhũa lhe fariaõ bõ pagamento, como a senhor.
  58. [630](Cap. 52) Seguro debaixo de minha verdade ao Necodà, foaõ, paraque possa nauegar liuremente por toda a costa da China, sem ser agrauado de nenhum dos meus, cõ tanto que onde vir Portugueses os trate como irmãos, & assinauase ao pè, Antonio de Faria.
  59. [637](Cap. 53) Avendo ja sete meses & meyo que continuauamos nesta enseada de hum bordo no outro, & de rio em rio, assi em ambas as costas de Norte & Sul, como na desta ilha de Ainão, sem Antonio de Faria em todo este tempo poder ter nouas nem recado de Coja Acem, enfadados os soldados deste trabalho em que aulia tanto tempo que continuauão, se ajuntaraõ todos, & lhe requereraõ que do que tinhaõ aquirido lhes desse suas partes conforme a hum assinado que delle tinhaõ, porque com isso se querião yr para a India, ou para onde lhes bem viesse, & sobre isto ouue assaz de desgosto & enfadamentos, por fim dos quais se concertaraõ em irẽ inuernar a Sião, onde se venderia a fazenda que trazião nos juncos, & que despois de ella ser feita em ouro se faria a repartição que requeriaõ, & com este concerto jurado & assinado por todos, se vieraõ surgir a hũa ilha que se dezia dos ladroẽs, por estar mais fora da enseada que todas as outras, para dahy cõ as primeyras bafugẽs da monção fazerem sua viagem, & auendo ja doze dias que aquy estauão, & todos com muyto desejo de darem effeito a isto que tinhaõ assentado, quiz a fortuna que com a conjunçaõ da lũa noua de Oitubro, de que nos sempre tememos, veyo hum tempo tão tempestuoso de chuuas & vẽtos que não se julgou por cousa natural, & como nòs vinhamos faltos de amarras, porque as que tinhamos eraõ quasi todas gastadas, & meyas podres, tanto que o mar começou a se empollar, & o vento Sueste nos tomou em desabrigado, & trauessaõ à costa, fez hum escarceo taõ alto de vagas taõ grossas, que com quanto se buscaraõ todos os meyos possiueis para nos saluarmos, com cortar mastos, desfazer chapiteos & obras mortas de popa & de proa, alijar o conuès, guarnecer bõbas de nouo, baldear fazẽdas ao mar, & ahustar calabretes & viradores para talingar em outras ancoras com a artilharia grossa que se desencarretara dos repairos em que estaua, nada disto nos bastou para nos podermos saluar, porque como o escuro era grãde, o tempo muyto frio, o mar muyto grosso, o vento muyto rijo, as agoas cruzadas, o escarceo muyto alto, & a força da tempestade muyto terriuel, não auia cousa que bastasse a nos dar remedio senão só a misericordia de nosso Senhor, por quem todos com grandes gritos & muytas lagrimas continuamẽte chamauamos, mas como, por nossos peccados, não eramos merecedores de nos elle fazer esta merce, ordenou a sua diuina justiça, que sendo ja passadas as duas horas despois da meya noite nos deu hum pegaõ de vento taõ rijo, que todas as quatro embarcaçoẽs assi como estauão vieraõ à costa, & se fizeraõ em pedaços, onde morreraõ quinhẽtas & oitenta & seis pessoas, em que entraraõ vinte & oito Portugueses, & os mais que nos saluamos pela misericordia de nosso Senhor (que ao todo fomos cinquenta & tres, de que os vinte & dous foraõ Portugueses, & os mais, escrauos & marinheyros) nos fomos assi nùs & feridos meter num charco de agoa; no qual estiuemos atè pela menham, & como o dia foy bem claro, nos tornamos à praya, a qual achamos toda juncada de corpos mortos, cousa taõ lastimosa & espantosa de ver, que não auia homem que só desta vista não caysse pasmado no chaõ, fazendo sobre elles hum tristissimo pranto, acompanhado de muytas bofetadas que hũs & os outros dauão em sy mesmos.
  60. [675](Cap. 56) Como indo nós ao longo da costa de Lamau, encontramos hum cossayro Chim muyto amigo de Portugueses, & do pacto que Antonio de Faria fez com elle.
  61. [676](Cap. 56) Avẽdo ja dous dias que nauegauamos ao lõgo da costa de Lamau, cõ ventos & mares bonãçosos, prouue a nosso Senhor que a caso encontramos hũ junco de Patane que vinha dos Lequios, o qual era de hum cossayro Chim que se chamaua Quiay Panjão muyto amigo da nação Portuguesa, & muyto inclinado a nossos custumes & trajos, ẽ cõpanhia do qual andauão trinta Portugueses, homẽs todos muyto escolhidos que este cossayro trazia a seu soldo, a fora outras muytas ventagẽs que cada hora lhes fazia com que todos andauaõ ricos.
  62. [679](Cap. 56) E indo assi com proposito determinado de chegar ao cabo com tudo o que a fortuna lhe offerecesse, quiz nosso Senhor que lhe enxergamos na quadra hũa grande bandeyra de Cruz, & no chapiteo muyta gente com barretes vermelhos, que os nossos naquelle tẽpo custumauão muyto de trazer quando andauão pelo que assentamos que eraõ Portugueses que podião vir de Liampoo, & yr para Malaca, como naquella monção sempre custumauão, & dandolhe nós tambẽ sinal de nós, para ver se nos conhecião, tanto que enxergaraõ que eramos Portugueses, deraõ todos hũa grande grita, & amainando ambos os traquetes de romania em sinal de obediencia, despidiraõ logo hum balão muyto esquipado com dous Portugueses a ver que gente eramos, & donde vinhamos, os quais tanto que nos reconheceraõ, & se affirmaraõ na verdade de quem eramos, se vieraõ mais afoutos a nós, & despois de fazerem sua salua, a que nos tambem respondemos, subiraõ acima.
  63. [682](Cap. 56) E chegando jũto do nosso junco mandou amainar as vellas do seu, & se embarcou na champana que era o batel, & acompanhado de vinte Portugueses veyo ver Antonio de Faria, & lhe trouxe hum rico presente que valia mais de dous mil cruzados, em ambar, & perolas, peças douro & de prata.
  64. [683](Cap. 56) Antonio de Faria os recebeo a elle & aos Portugueses que com elle vinhaõ com muytas festas & gasalhado, & a todos fez muytas honras & cortesias; & assentandose todos, despois que algum espaço estiueraõ praticando em cousas de gosto, conformes ao tempo em que estauão.
  65. [685](Cap. 56) A que o Panjão respõdeo, eu senhor Capitão, naõ tenho tanto quanto algũs cuydaõ de mim, mas ja em outro tempo tiue muyto, & tambem desastres da fortuna, como esse teu de que agora me deste conta, me leuaraõ a mayor parte da minha riqueza, & por isso receyo de me yr meter em Patane, onde tenho molher & filhos, porque sey certo que me ha el Rey de tomar quanto leuo, porque me vim de là sem sua licença, & ha de fazer disto peçonha, só a fim de me roubar, como ja algũas vezes fez a outros por muyto menos causa que esta, de que me pode arguyr, pelo qual te digo que se quiseres & fores contente que eu te acompanhe nessa viagẽ que queres fazer, com cem homẽs que trago neste meu junco, & quinze peças de artilharia, & trinta espingardas, a fora outras mais de quarenta que trazẽ estes Portugueses que andão comigo, eu o farey de muyto boa vontade, cõ tanto que do que se aquirir se me ha de dar a terça parte, & disso, senhor, se te praz me has de dar hum assinado teu, & jurarme em tua ley de mo cumprires inteyramente.
  66. [688](Cap. 57) Como encontramos no mar hũa embarcaçaõ pequena de pescadores em que hião oito Portugueses muyto feridos, & da conta que elles derão a Antonio de Faria da sua desauentura.
  67. [689](Cap. 57) Partidos nos deste rio de Anay muyto bem apercebidos de tudo o necessario para a viagem que estaua determinado fazerse, pareceo bem a Antonio de Faria por conselho do Quiay Panjão, de que sempre fez muyto caso, pelo conseruar em sua amizade, yr surgir no porto do Chincheo, para ahy se informar pelos Portugueses que eraõ vindos da Çunda, de Malaca, de Timor, & de Patane, de algũas cousas necessarias a seu proposito, & se tinhão nouas de Liampoo, porque se soaua então pela terra que era la ida hũa armada de quatrocentos juncos, em que hião cem mil homẽs por mandado del Rey da China a prender os nossos que là residião dassẽto, & queimarlhe as naos, & as pouoaçoẽs, porque os não queria em sua terra, por ser informado nouamente que não eraõ elles gente taõ fiel & pacifica como antes lhe tinhaõ dito.
  68. [690](Cap. 57) Chegados nòs ao porto do Chincheo achamos ahy cinco naos de Portugueses que auia ja hũ mès que eraõ chegadas destas partes que disse, dos quais fomos muyto bem recebidos & agasalhados com muyta festa & contentamento, & despois que nos deraõ nouas da terra, & da mercancia, & da paz & quietaçaõ do porto, nos disseraõ que de Liampoo nao sabião nada, mais que dizeremlhe os Chins, que auia là muytos Portugueses de inuernada, & outros vindos nouamente de Malaca, da Çunda, de Sião, & de Patane, & que fazião na terra suas fazendas pacificamente, & que a armada grossa de que nos temiamos, não era là, mas que se presumia que era ida âs ilhas do Goto em socorro do Sucão de Pontir, aquẽ se dezia que hum seu cunhado tyrannicamente tinha tomado o reyno, & porque este Sucão se fizera nouamẽte subdito do Rey da China, com tributo de cem mil taeis cada anno lhe dera aquella armada dos quatrocẽtos juncos, em que se affirmaua que hião cem mil homẽs para o meterẽ de posse do reyno ou senhorio que lhe tinhão tomado; com a qual noua todos ficamos descançados, & demos por isso muytas graças a nosso Senhor.
  69. [692](Cap. 57) E auendo ja cinco dias que nauegauamos com ventos põteyros, vellejando as voltas de hum bordo no outro, sem podermos surdir auante, hũa noite ao quarto da prima encontramos hum paraoo pequeno de pescadores em que vinhaõ oito Portugueses muyto feridos, dos quais os dous se chamauão Mem Taborda, & Antonio Anriquez, ambos homẽs honrados, & ricos, & de muyto nome naquellas partes, & por isso os nomeey a elles particularmente; & assi estes como todos os outros vinhão tão destroçados que era cousa piadosa velos.
  70. [693](Cap. 57) Chegado este paraoo ao jũco de Antonio de Faria, elle fez logo recolher dentro estes oito Portugueses, os quais em subindo acima que o viraõ se lhe lançaraõ todos aos peis, & elle os recebeo com muyta afabilidade & gasalhado acompanhado de assaz de lagrimas, pelos ver rotos, nùs & descalços, & banhados no seu proprio sangue.
  71. [694](Cap. 57) E vendoos daquella maneyra lhes perguntou pela causa de sua desauentura, & elles lha contaraõ com mostras de muyto sentimento, dizendo, que auia dezassete dias que tinhaõ partido de Liãpoo para Malaca, com proposito de passarem á India, se lhe a monção não faltasse, & que sendo tanto auante como o ilheo de Çumbor os comerera hum ladraõ Guzarate, por nome Coja Acẽ, com tres juncos & quatro lanteaas, nas quais sete embarcaçoẽs trazia quinhentos homẽs, de que os cento & cinquenta eraõ Mouros Lusoẽs, & Borneos, & Iaos, & Champaas, tudo gente da outra costa do Malayo, & pelejando com elles desde a hũa hora atè as quatro despois do meyo dia, os tomara com morte de oitenta & duas pessoas, em que entraraõ dezoito Portugueses, a fora quasi outras tãtas que leuara catiuas, & que no junco lhes tomara de emprego seu & de partes mais de cem mil taeis.
  72. [698](Cap. 57) E tanto que o perro do Coja Acem, que era o que nos tinha aferrado, nos vio daquella maneyra, entrou de romania com nosco com hũa grande soma de Mouros todos armados de couras & sayas de malha, & em chegando nos derrubaraõ logo dos nossos passante de cinquenta, em que os dezoito foraõ Portugueses, & nòs, desta maneyra que nos vossa merce vè feridos & queimados, por não termos nenhum remedio, nos lançamos a hũa manchũa que tinhamos atracada por popa do nosso junco, na qual prouue a Deos que nos saluamos sós quinze pessoas, de que ja ontem morreraõ as duas, & as treze que milagrosamente escapamos, vimos da maneyra que vossa merce nos vé, oito Portugueses, & cinco moços nossos, & fugindo nesta manchua por entre a estacada & a terra, nos fomos sempre cosendo cos penedos, para que não pudessem elles chegar a nós, & acabando as lanteaas de recolher os seus que andauão ainda na agoa, se foraõ com grande grita & muytos tangeres ao nosso junco, no qual embaraçados com a cubiça da presa, prouue a nosso Senhor que isso foy causa de nos não seguirẽ.
  73. [701](Cap. 57) Antonio de Faria então tirando o barrete, cos joelhos no chaõ, as mãos aleuantadas, & os olhos no Ceo, disse com assaz de lagrimas: Senhor Iesu Christo, assi como tu meu Deos es verdadeyra esperança dos que em ty confiaõ, eu mais peccador que todos os homẽs te peço com muyta humildade em nome destes teus seruos, cujas almas tu remiste co teu precioso sangue, que nos dés esforço & victoria cõtra este inimigo cruel matador de tãtos Portugueses, o qual eu, co teu fauor & ajuda, & por honra do teu santo nome determino de yr buscar como ategora tenho feito, paraque a maõs destes teus seruos & fieis soldados pague o que ha tanto tempo que nos deue, ao que todos os que estauão presentes em hũa voz responderaõ, a elles, a elles co nome de Christo, porque o perro pagarà a noueado o que deue assi a nòs, como a estes pobres companheyros.
  74. [707](Cap. 58) Feito este apercebimento de todas as cousas necessarias, & postos nòs de vergadalto, & as ancoras a pique para nos partirmos, se fez alardo geral de toda a gente que hia na armada, & se acharaõ por todas quinhentas pessoas, assi de peleja como de seruiço, em que entrauão nouenta & cinco Portugueses, todos gẽte mãceba & determinada para qualquer bom feito, & os mais, moços nossos & marinheyros & gente da outra costa que o Quiay Panjão trazia a soldo, os quais tambem eraõ exercitados na guerra como cossayros que a continuauão auia cinco annos.
  75. [709](Cap. 58) Com isto nos partimos deste lugar de Lailoo muyto embandeirados, com as gauias toldadas de pannos de seda, & os juncos & lorchas com duas ordẽs de paueses por banda, com seus baileus de popa & de proa, & outros sobrebaileus leuadiços para se poderẽ armar nos tempos necessarios; & prouue a nosso Senhor que dentro de tres dias chegamos às pesqueiras onde Coja Acem tinha tomado o jũco dos Portugueses, & tanto que anoiteceo Antonio de Faria mandou espiar o rio, onde tinha por nouas que elle estaua.
  76. [710](Cap. 58) As espias trouxeraõ a bordo hum paraoo de pescadores que tomaraõ, em que vinhaõ seis homẽs naturais da terra, os quais disseraõ que estaua o Cossayro daly duas legoas metido num rio que se chamaua Tinlau, cõcertando o junco que tomara aos Portugueses, para nelle & em outros dous que tinha se yr para Sião donde era natural, & que se auia de partir daly a dez dias, com a qual informaçaõ Antonio de Faria assentou por parecer de algũs que para isso foraõ chamados, que todauia se mandasse ver pelos olhos, porque hũa cousa em que tanto se auenturaua, não se auia de cometer assi às cegas, senão muyto bem vista & escudrinhada, & que sobre a certeza do que se visse, se determinaria o que parecesse bem a todos; & despejando então o paraoo em que vieraõ os seis pescadores, o esquiparaõ dos marinheyros do jũco do Quiay Panjão, por ser esquipação mais fiel & segura, com sos dous dos que se tomaraõ, porque os mais ficaraõ em refẽs, & mandaraõ nelle hũ soldado por nome Vicente Morosa homem esforçado & muyto sesudo, em trajos de Chim por não ser conhecido, o qual chegando ao lugar onde os inimigos estauão, fingindo que andaua pescando como outros fazião, vio & espiou tudo quanto era necessario, & tornado a bordo deu relaçaõ do que vira, & affirmou que o inimigo estaua tão tomado às mãos, que em chegando aueria pouco que fazer nelle.
  77. [711](Cap. 58) Com esta informaçaõ se ajuntaraõ todos no junco de Quiay Panjaõ, onde Antonio de Faria, pelo animar & fauorecer, & por lhe dar aquella honra, quiz que fosse este conselho, & nelle se assentou que tanto que fosse noite fossemos surgir na boca do rio, paraque ante menhã, co nome de Christo, dessemos nos inimigos; & concluydos todos neste parecer, proueo Antonio de Faria na ordem & maneyra que se auia de ter na entrada do rio, & no cometer os inimigos; & repartindo a gente, pós no junco de Quiay Panjão trinta Portugueses quais elle quiz, porque em tudo lhe fazia a vontade, por ser assi necessario, & nas duas lanteaas pós seis em cada hũa, & no jũco de Christouão Borralho vinte, & com elle ficaraõ os mais que eraõ trinta & tres, a fora os escrauos & outra muyta gẽte Christam valentes homẽs, & muyto fieis, & assi concertados na ordem necessaria para o que se esperaua fazer com a ajuda de nosso Senhor, deu à vella para o rio de Tinlau, onde chegou quasi às Aue Marias, & passando a noite com boa vigia, tanto que foraõ as tres horas despois de meya noite, se fez â vella, & foy demandar o inimigo que estaua daly pouco mais de meya legoa pelo rio acima.
  78. [716](Cap. 59) O perro do Coja Acem que até este tempo não era ainda conhecido, acudio com muyta pressa ao desmãcho que via nos seus, armado com hũa coura de laminas de citim cramesim franjada douro que fora de Portugueses, & bradando alto paraque todos o ouuissem, disse por tres vezes, lah hilah hilah lah Muhamed roçol halah, o Massoleymoẽs & homẽs justos da santa ley de Mafamede, como vos deixais vencer assi de hũa gente tão fraca como saõ estes caẽs, sem mais animo que de galinhas brancas & de molheres barbadas?
  79. [719](Cap. 59) E arremetendo cõ este feruor & zelo da fé ao Coja Acem como quem lhe tinha boa vontade, lhe deu com hũa espada dambalas maõs que trazia hũa tão grande cotilada pela cabeça, que cortandolhe hum barrete de malha que trazia, o derrubou logo no chão, & tornandolhe com outro reuès lhe decepou ambas as pernas de que se não pode mais aleuantar, o qual sendo visto pelos seus, deraõ hũa grande grita, & arremetendo a Antonio de Faria se igualaraõ com elle hũs cinco ou seis com tanto animo & ousadia, que nenhũa conta fizeraõ de trinta Portugueses de que elle estaua rodeado, & lhe deraõ duas cutiladas com que o tiueraõ quasi no chaõ, o que vendo os nossos, acudiraõ logo com muyta pressa, & esforçãdoos aly nosso Senhor o fizerão de maneyra que em pouco mais de dous credos foraõ mortos dos inimigos aly sobre o Coja Acem quarenta & oito, & dos nossos quatorze somente de que sos os cinco foraõ Portugueses, & os mais moços escrauos muyto bõs Christãos & muyto leays.
  80. [723](Cap. 60) Do mais que Antonio de Faria fez despois que ouue esta vitoria, & da liberalidade que aquy vsou cos Portugueses de Liampoo.
  81. [725](Cap. 60) A primeira cousa em que Antonio de Faria entendeo despois desta vitoria foy na cura dos feridos, que por todos seriaõ nouẽta & dous, de que os mais foraõ Portugueses & moços nossos: apos isso querendo saber o numero dos mortos, achou dos nossos quarẽta & dous, entre os quais foraõ oito Portugueses, que Antonio de Faria mostrou sentir mais que tudo, & dos inimigos trezentos & oitenta, de que sós os cento & cinquenta foraõ a ferro & a fogo, & todos os mais afogados.
  82. [730](Cap. 60) Acabada esta crueza, tornandose Antonio de Faria á praya onde estaua o junco que Coja acem tomara auia vinte & seis dias aos Portugueses de Liampoo, entendeo logo em o lançar ao mar, porque ja neste tempo estaua concertado, & despois de ser na agoa o entregou a seus donos, que eraõ Mem Taborda, & Antonio Anriquez, como atras fiz menção.
  83. [737](Cap. 60) Apos isto se fez inuentayro da fazenda que liquidamente se achou, tirando a que se deu aos Portugueses, & foy aualiada em cento & trinta mil taeis em prata de Iapaõ, & fazendas limpas, como foraõ, citins, damascos, seda, retròs, tafetàs, almizcre, & porcelanas de barça muyto finas, porque então se não fez receita do mais que este Cossayro tinha roubado por toda aquella costa de Sumbor atè o Fucheo, onde auia passante de hum anno que continuaua.
  84. [744](Cap. 61) E como o natural de todos os homẽs he nestes semelhãtes tẽpos trabalharem por conseruar a vida, sem lembrança de outra cousa nenhũa, era tamanho o desejo que todos tinhão da saluaçaõ, que não procurauão por mais que pelos meyos que para isso podião ter, pelo qual esquecida de todo a cubiça, se entendeo logo com toda a presteza em alijar a fazẽda ao mar, & saltando embaixo no praõ obra de cem homẽs, assi Portugueses como escrauos & marinheyros, em menos de hũa hora foy tudo lançado ao mar, de maneyra que nenhũa cousa ficou a que se pudesse por nome que pelos bordos não fosse fora, senão quanto foy taõ excessiuo o desatino destes homẽs que atê de doze caixoẽs cheyos de barras de prata que na briga passada se tomaraõ a Coja Acem, nenhum ficou que tambem não fosse ao mar, sem auer homem delles que tiuesse acordo para se lẽbrar do que aquillo era, a fora outras cousas de muyta valia que na volta do mais foraõ por este triste caminho.
  85. [746](Cap. 62) Passando assi toda aquella noite nùs & descalços, & escalaurados, & quasi esbofados do grande trabalho que tinhamos leuado, prouue a nosso Senhor que como a menham começou a esclarecer, o vento foy sendo algũ tanto menos, com que o junco ficou mais quieto, ainda que ja estaua assentado sobre a ponta da coroa do baixo, & com treze palmos de agoa dentro, & os homẽs todos estauão pegados em cordas da banda de fora, porque os mares grandes que quebrauão encima no costado os não afogassem, ou lançassem sobre os penedos, como ja tinhão feito a dez ou doze que se não preuiniraõ disto, & como foy o dia bem claro, quiz nosso Senhor, que nos enxergou o junco de Mem Taborda & Antonio Anriquez, que toda a noite tinhão pairado a aruore seca com grandes jangadas de madeyra por popa á Charachina que os seus officiaes lhe inuentaraõ para poderẽ sustentar milhor o payro, & como ouue vista de nòs nos veyo logo demandar, & em chegando a nós nos arremessaraõ muyta soma de paos aboyados em cordas, paraque nos pegassemos nelles, o que nos logo fizemos, & nisto se gastou quasi hũa hora com assaz de trabalho de todos, pelo desmancho & desordenada cubiça que cada hũ tinha de ser o primeyro que se saluasse, o qual foy causa de se afogarẽ vinte & duas pessoas, de que os cinco foraõ Portugueses, que Antonio de Faria mais sentio que toda a perda do junco & da fazenda, inda que não foy tão pequena que não passasse de cem mil taeis só em fazenda de prata, porque a mayor parte das presas que se tomaraõ, & do que se tomou ao Coja Acem se metera naquelle junco em que andaua Antonio de Faria, por ser mayor & milhor, & em que parecia que corria menos perigo que nas outras embarcaçoẽs que não eraõ taõ boas nem taõ seguras.
  86. [748](Cap. 62) Tanto que a estrella dalua appareceo, & a menham começou a ser clara, vieraõ dous Portugueses do junco de Quiay Panjão, os quais vendo Antonio de Faria da maneyra que estaua metido no jũco de Mem Taborda, porque o seu ja era perdido, despois que souberaõ o successo da sua desauentura, elles tãbem contarão do seu trabalho, que quasi foy igual ao nosso, em que disserão que hũa refega de vento lhe leuara tres homẽs ao mar, & os lançara tão longe como quasi hum tiro de pedra, cousa certo nunca vista nem ouuida.
  87. [749](Cap. 62) E tambem contaraõ da maneira que se perdera o junco pequeno com cinquenta pessoas, & as mais dellas, ou quasi todas Christãs, das quais sete foraõ Portugueses, em que entrara Nuno Preto Capitão delle, homem honrado & de grande espirito, como tinha bem mostrado nas aduersidades passadas, o qual Antonio de Faria sentio muyto.
  88. [750](Cap. 62) Neste tempo chegou tambem hũa das duas lanteaas de que atè então se não sabia parte, & contou tambem de sy assaz de trabalho, & certificou que a outra quebrara as amarras co tempo, & fora dar à costa, & que à sua vista se fizera em pedaços na praya, & que de toda a gente se não saluaraõ mais que sós treze pessoas, cinco Portugueses, & oito moços Christaõs, os quais a gente da terra leuara catiuos para hũ lugar que se chamaua Nouday; de maneyra que nesta desauenturada tormenta se perderaõ dous juncos & hũa lorcha ou lanteaa, em que morreraõ passante de cem pessoas, onde entraraõ onze Portugueses, a fora os catiuos.
  89. [753](Cap. 63) Como Antonio de Faria teue nouas dos cinco Portugueses que estauão catiuos, & do que fez sobre isso.
  90. [754](Cap. 63) Como aquella braua tormenta acalmou de todo, Antonio de Faria se passou logo ao outro junco grande que tinha tomado a Coja Acem de que então era Capitão Pero da Sylua de Sousa, & dando a vella se partio com toda a mais cõpanhia que eraõ tres juncos & hũa lorcha ou lanteaa como lhe chamão os Chins, & foy surgir na angra de Nouday, para dahy saber nouas dos treze catiuos; & mãdou logo â boca da noite dous baloẽs esquipados a espiar o porto, & sondar o rio, & ver o surgidouro & o sitio da terra, & que nauios estauão dentro, & outras cousas necessarias a sua determinaçaõ, & mandoulhes que trabalhassem por tomarem algũs homẽs naturaes da cidade, para saber delles a certeza do que pretendia, & lhe darem nouas do que era feito dos Portugueses, porque arreceaua que os tiuessem ja leuados pela terra dentro.
  91. [776](Cap. 64) E fazendose alardo da gente que podia auer para este feito, se acharaõ trezentos homẽs, de que os setenta eraõ Portugueses, & os mais escrauos & marinheyros, com a gente de Quiay Panjão, dos quais os cento & sessenta eraõ arcabuzeyros, & os mais com lanças, & chuças, & bombas de fogo, & outras muytas maneyras de armas necessarias para o effeito deste negocio.
  92. [797](Cap. 66) Sendo Antonio de Faria embarcado com toda a gente, como era ja tarde, não se entendeo por então em mais que em curar os feridos, que foraõ cinquenta, de que oito eraõ Portugueses, & os mais escrauos & marinheyros, & em mandar enterrar os mortos que foraõ noue, em que entrou hum Portuguez.
  93. [799](Cap. 66) E com isto se determinou com parecer & conselho de todos, de yr inuernar os tres meses que lhe faltauão para poder fazer sua viagem, a hũa ilha deserta que estaua ao mar de Liampoo quinze legoas, que se chamaua Pullo Hinhor, de boa agoada, & bom surgidouro, por lhe parecer que indo a Liampoo poderia prejudicar à mercancia dos Portugueses que lá inuernauão quietamente com suas fazendas, a qual determinaçaõ & bom proposito todos lhe louuaraõ muyto.
  94. [803](Cap. 66) Mas não se ouue esta vitoria tão barata que não custasse as vidas de dezassete dos nossos, nos quais entraraõ cinco Portugueses dos milhores soldados, & mais esforçados de toda a cõpanhia, & quarenta & tres muyto feridos, dos quais hũ foy Antonio de Faria que ficou cõ hũa zargunchada, & duas cutiladas.
  95. [807](Cap. 66) E nauegando nòs desta maneyra, chegando daly a seis dias às portas de Liampoo, que saõ duas ilhas tres legoas donde naquelle tempo os Portugueses fazião o trato de sua fazenda, que era hũa pouoação que elles tinhaõ feita em terra de mais de mil casas, com gouernança de vereadores, & ouuidor, & alcaides, & outras seis ou sete varas de justiça & officiais da Republica, onde os escriuaẽs no fim das escrituras publicas que fazião punhaõ, E eu foaõ, publico tabalião das notas & judicial nesta cidade de Liampoo por el Rey nosso Senhor, como se ella estiuera situada entre Santarem & Lisboa, & isto com tanta confiança & oufania, que auia ja casas de tres & quatro mil cruzados de custo, as quais todas, assi grandes como pequenas, por nossos peccados foraõ despois de todo destruydas & postas por terra pelos Chins, sem ficar dellas Cousa em que se pudesse pór olhos, como mais largamente contarey em seu lugar.
  96. [811](Cap. 67) Surgindo Antonio de Faria nestas ilhas hũa quarta feira pela menham, Mem Taborda & Antonio Anriquez lhe pediraõ licença para irem diante dar recado à pouoação de como elle era chegado, & saber as nouas que auia na terra, & se se dezia ou soaua por là algũa cousa do que elle fizera em Nouday, porque se a sua yda lâ prejudicasse em algũa cousa a segurança & quietaçaõ dos Portugueses, se iria inuernar à ilha de Pullo Hinhor como leuaua determinado; & que de tudo o mandariaõ auisar com muyta breuidade, ao que elle respondeo que lhe parecia muyto bem, & lhes deu a licença que lhe pedião, & escreueo tãbem por elles algũas cartas aos mais honrados que então gouernauão a terra, em que lhes daua relaçaõ de todo o successo de sua viagem, & lhes pedia por merce que o quisessem aconselhar, & lhe mandassem o que querião que fizesse, porque elle estaua muyto prestes para lhes obedecer em tudo, & outras palauras a este modo que sem nenhum custo resultaõ às vezes em muyto proueito.
  97. [818](Cap. 68) Do recebimento que os Portugueses fizerão a Antonio de Faria na pouoação de Liampoo.
  98. [820](Cap. 68) E sendo pouco mais de duas horas ante menham, com noite quieta, & de grande luar, se fez à vella com toda a armada, com muytas bãdeyras & toldos de seda, & as gaueas & sobregaueas guarnecidas de telilha de prata, & estendartes do mesmo muyto compridos, acompanhado de muytas barcaças de remo, em que auia muytas trombetas, charamellas, frautas, pifaros, atambores, & outros muytos instrumentos, assi Portugueses, como Chins; de maneyra que todas as embarcaçoẽs hião cõ suas inuençoẽs differentes, a qual milhor.
  99. [827](Cap. 68) Nesta lanteaa se embarcou Antonio de Faria, & chegando ao caiz com grande estrondo de trombetas, charamellas, ataballes, pifaros, atambores, & outros muytos tangeres de Chins, Malayos, Champaas, Siames, Borneos, Lequios, & outras nações que aly no porto estauão à sombra dos Portugueses, por medo dos cossayros de que o mar andaua cheyo, o desembarcarão della em huma rica cadeyra de estado, como Chaem do gouerno dos vinte & quatro supremos que ha neste imperio, a qual leuauão oito homens vestidos de telilha, com doze porteyros de maças de prata & sessenta albardeyros com panouras & alabardas atauxiadas de ouro, que tambem vierão alugadas da cidade, & oito homens a cauallo com bandeyras de damasco branco, & outros tantos com sombreiros de citim verde, & cramesim, que de quando em quando bradauão â Charachina, paraque a gente se afastasse das ruas.
  100. [834](Cap. 69) Abalandose daquy Antonio de Faria, o quiserão leuar debaixo de hum rico pallio, que seis homẽs dos mais principaes lhe tinhaõ prestes, porem elle o não quiz aceitar, dizendo, que não nacera para tamanha honra como aquella que lhe querião fazer, & seguio seu caminho sem mais fausto que o primeyro, que era acõpanhalo muyta gẽte assi Portuguesa, como da terra, & doutras muytas naçoẽs que aly por trato de mercancia era junta, por ser este o milhor & o mais rico porto que então se sabia em todas aquellas partes, & leuaua diante de sy muytas danças, pellas, folias, jogos, & antremeses de muytas maneyras que a gente da terra que com nosco trataua, hũs por rogos, & outros forçados das penas que lhes punhaõ, tambem fazião como os Portugueses, & tudo isto acompanhado de muytas trombetas, charamellas, frautas, orlos, doçaynas, arpas, violas darco, & juntamente pifaros, & tambores, com hũ labarinto de vozes à Charachina de tamanho estrondo que parecia cousa sonhada.
  101. [843](Cap. 70) Despedidos logo os que não erão do banquete, ficarão sós os conuidados, que serião setenta, ou oitenta, a fora os soldados de Antonio de Faria, que passauão de cincoenta, & assentados á mesa forão seruidos por moças muito fermosas, & ricamente vestidas ao modo dos Mãdarins, que a cada iguaria que punha cantauão ao som dos instrumentos, que outras tangião, & a pessoa de Antonio de Faria foy seruida com oito moças muito aluas & gentis molheres, filhas de mercadores honrados, que seus pais por amor de Mateus de Brito, & de Tristão de Gaa trouxeraõ da cidade, as quais todas vinhão vestidas como sereas, que a modo de dança fazião o seruiço da mesa ao som de instrumentos musicos, que dauão muyto contentamento aquẽ os ouuia, de que todos os Portugueses estauão assaz pasmados, mas gabando muyto a ordem, concerto, & perfeiçaõ do que vião, & ouuião, & quando auia de beber, então se tocauão as charamellas, & trombetas, & ataballes.
  102. [853](Cap. 71) Nestas duas embarcaçoẽs hião cinquenta & seis Portugueses, & hum padre Sacerdote de Missa, & hião mais quarenta & oito marinheyros para o remo, & para a mareação das vellas, naturaes de Patane, a que se fez bom partido, por ser esquipação fiel & segura, & a fora estes hião quarenta & dous escrauos nossos, assi que por todos eraõ cento & quarenta & seis pessoas, & não forão mais porque o cossairo Similau, que era o nosso Piloto, não quiz que fossem, nem taõ pouco quiz mais embarcaçoẽs, por arrecear poder ser sentido, porque como auia de atrauessar a enseada do Nanquim, & entrar por rios frequentados de muyta gente, temia muyto acontecerlhe algum desastre dos muytos a que hiamos offerecidos.
  103. [854](Cap. 71) Aquelle dia, & a noite seguinte nos botamos fora de todas as ilhas de Angitur, & seguimos nossa viagem por mar que nunca até então Portugueses tinhão visto nem nauegado.
  104. [858](Cap. 71) E por Antonio de Faria se temer de poder ser sentido, & lhe certificarem que se o fosse não poderia saluarse por nenhum modo, assentou de se tornar daly; porem o Similau contrariou este parecer de todos, & lhe disse, não me pode vossa merce inda agora arguyr de peccado, nẽ nenhum outro de quantos vaõ na cõpanhia, porque em Liampoo vos disse publicamente na consulta geral que se fez na igreja perante mais de cem Portugueses o grandissimo risco em que todos nos punhamos, & eu, por ser Chim & Piloto, muyto mais que todos, porque a vossas merces não lhes farião mais que darlhe hũa morte, mas a mym duas mil, se tantas se pudessem dar, pelo que està claro que me he necessario & muyto forçado não vos ser tredro, mas muyto leal, como sou & serey sempre, assi nesta viagem como em tudo o mais, a pesar dos murmuradores que com vossa merce me tem mexiricado.
  105. [899](Cap. 74) Chegados nòs a esta enseada do Nanquim, Antonio de Faria foy aconselhado pelo Similau que por nenhũ caso consintisse mostrarense os Portugueses a gente nenhũa, porque arreceaua que vendoos ouuesse aluoroço nos Chins, visto como por aquelle lugar nunca atè então se vira gente estrangeyra, porque só elles bastauão para darem razão do que lhes preguntassem, & que seu parecer era tambem que nauegassem antes pelo meyo da enseada que ao longo da terra, por respeito da muyta frequencia de lorchas & lanteaas que continuamente passauão de hũa parte para a outra, o que assi pareceo a todos, & assi se fez.
  106. [959](Cap. 79) E continuando neste trabalho & agonia atè quasi as dez horas, com tanto medo & desauentura quãto me não atreuo a declarar com palauras, viemos a dar à costa, & meyos alagados nos foraõ os mares rolando atè hũa ponta de pedras que estaua adiante, na qual, em chegando, co rolo do mar nos fizemos logo em pedaços, & pegados todos hũs nos outros, cõ grande grita de Senhor Deos misericordia, nos saluamos dos vinte & cinco Portugueses que eramos os quatorze somente, & os onze ficaraõ aly logo afogados cõ mais dezoito moços Christaõs, & sete Chins marinheyros, & esta desauentura socedeo hũa segunda feyra cinco do mez de Agosto, do anno 1542. pelo qual nosso Senhor seja louuado pera sempre.
  107. [964](Cap. 80) Despois de serem enterrados estes defuntos, nos fomos apousentar num charco dagoa, no qual estiuemos até quasi a menham com medo dos tigres, daquy seguimos nosso caminho contra o Norte, por matos & brenhas taõ espessas, que em algũas partes as passauamos cõ muyto trabalho, assi caminhamos tres dias até chegarmos a hũ esteyro, sem nunca até então auermos vista de pessoa algũa, & cometendo passalo a nado, os primeyros quatro que se lãçaraõ a elle, que foraõ tres portugueses & hum moço, se afogarão logo, porque como hião ja muyto fracos & debilitados, & o esteyro era largo, & a corrẽte da agoa grande, naõ os ajudou a força dos braços a remar mais que atè hũ terço do rio: estes Portugueses todos tres erão homẽs muyto hõrados, & dous delles irmaõs, hum por nome Belchior Barbosa, & o outro Gaspar Barbosa, & o terceiro era primo destes, & se chamaua Frãcisco Borges Cayeiro, & todos tres naturaes de Põte de Lima, & de muyto boas partes, assi no esforço, como no mais preço de suas pessoas.
  108. [1609](Cap. 119) E subindo logo nas costas destes tres Portugueses todos os Tartaros que estauão ao pé das escadas, o que tambem fizeraõ com muyto esforço, assi por terem seu Capitão diante, como por serem de sua natureza quasi tão determinados como os Iapoẽs, em muyto breue espaço foraõ encima do muro mais de cinco mil dos da nossa parte, os quais com o impeto que leuauão fizeraõ retirar os Chins, & a briga se trauou entre hũs & os outros tão braua, & tanto sem piedade, que em pouco mais de meya hora o negocio ficou logo concluydo, & o castello tomado cõ morte de dous mil Chins & Mogores que estauão dentro nelle, & dos Tartaros não mais que até cento & vinte.
  109. [1613](Cap. 119) Ao Iorge Mendez & aos outros Portugueses deu tambem manilhas douro, & os mandou assentar junto de sy, & despois que comeo, se sahio para fora com todos os que estauão com elle, & mandou derrubar todo o muro em roda, & despois de ser raso co chaõ, lhe puseraõ o fogo com muytas cerimonias a modo de triumfo de muytos tangeres & gritas, & o borrifou todo por cima com sangue, & mandou cortar as cabeças a todos os mortos que na praça estauão, & aos seus mandou enterrar, & curar os feridos, & isto acabado se recolheo para a sua tenda cõ grande apparato de cauallos a destro, & porteyros de maças, & gente de guarda, leuando sempre junto comsigo o Iorge Mendez a cauallo, & nòs os oito com todos os mais Capitaens & gente nobre a pè.
  110. [1724](Cap. 127) E assi com estas ruyns razões, & outras muytas tão ruyns como ellas se veyo a aferuorar de tal maneyra, & dizer tantos desatinos, que nôs os oito Portugueses estauamos pasmados da deuação daquella gente, & de como todos estauão promptos & com as mãos aleuantadas, dizendo de quãdo em quando, taximida, que quer dizer assi o cremos.
  111. [1798](Cap. 132) Passados estes vinte dias em que os feridos guareceraõ sem em todo este tẽpo auer entre nos reconciliaçaõ da desauença passada, nos embarcamos ainda assi malauindos com este cossayro, os tres no jũco em que elle hia, & os cinco no outro de que era Capitão hum seu sobrinho, & partidos daquy para hum porto que se chamaua Lailoo, auante do Chincheo sete legoas, & desta ilha oitenta, seguimos por nossa derrota com ventos bonanças ao longo da costa de Lamau, espaço de noue dias, & sendo hũa menham quasi Noroeste sueste co rio do sal, que estâ abaixo do Chabaquee cinco legoas, nos cometeo hum ladraõ com sete jũcos muyto alterosos, & pelejando com nosco das seis horas da menham até as dez, em que tiuemos hũa briga assaz trauada de muytos arremessos assi de lanças como de fogo, em fim se queimarão tres vellas, as duas do ladrão, & hũa das nossas, que foy o junco em que hião os cinco Portugueses, a que por nenhũa via pudemos ser bõs, por ja a este tempo termos a mayor parte da gente ferida.
  112. [1806](Cap. 133) E despois de se fazerem de parte a parte as cortesias costumadas, & elle ter seguro para se poder chegar a nós, se chegou logo, & vendonos aos tres Portugueses, preguntou que gente eramos, porque na differença do rosto & barbas entendia que não eramos Chins.
  113. [1826](Cap. 134) Nòs os tres Portugueses como não tinhamos veniaga em que nos occupassemos, gastauamos o tempo em pescar & caçar, & ver templos dos seus pagodes que erão de muyta magestade & riqueza, nos quais os bonzos, que saõ os seus sacerdotes, nos fazião muyto gasalhado, porque toda esta gente de Iapão he naturẽlmente muyto bem inclinada & conuersauel.
  114. [1887](Cap. 137) Neste tempo, sendo eu auisado por cartas dos dous Portugueses que ficaraõ em Tanixumaa, que o cossayro Chim com quem aly vieramos, se fazia prestes para se partir para a China, dey conta disso a el Rey, & lhe pedy licença para me tornar, a qual me elle deu muyto leuemente, & com palauras de muytos agredecimentos pela cura de seu filho.
  115. [1889](Cap. 137) Aquy nos detiuemos mais quinze dias, em que o junco de todo acabou de se fazer prestes, & nos partimos para Liampoo, hum porto de mar do reyno da China, de que atras fiz larga menção, onde os Portugueses naquelle tempo tinhão seu trato, & vellejando por nossa derrota, prouue a Deos que chegamos a elle a saluamento, onde dos moradores da terra fomos muyto bẽ recebidos, os quais auendo por cousa noua virmos nòs daquella maneyra entregues á pouca verdade dos Chins, nos perguntarão de que terra vinhamos, & onde nos embarcaramos com elles, a que respõdemos conforme â verdade do que passaua, & lhe demos conta de toda a nossa viagem, & da noua terra de Iapaõ que tinhamos descuberto, & da grande quantidade de prata que nella auia, & do muyto proueito que se fizera nas fazendas da China, de que todos ficarão taõ contentes que não cabião em sy de prazer, & logo ordenarão hũa deuota procissaõ para darem graças a nosso Senhor por tamanha merce, & nella foraõ da igreija mayor que era de nossa Senhora da Conceição, até outra de Santiago, que estaua no cabo da pouoação, onde ouue Missa & pregação.
  116. [1892](Cap. 137) Desta maneyra vellejaraõ assi ás cegas aquelle dia por entre as ilhas & a terra firme, & á meya noite cõ hũa çarraçaõ de grande chuueyro & tempestade que lhes sobreueyo, deraõ todos por cima do parcel de Gotom, que estâ em trinta & oito graos, com que dos noue juncos escaparaõ sòs dous por grande milagre, & os sete se perderaõ todos sem de nenhum delles se saluar hũa só pessoa, a qual perda foy orçada em mais de trezentos mil cruzados de fazenda, a fora outra mayor de seiscẽtas pessoas que nelles morreraõ, em que entraraõ cento & quarenta Portugueses, todos honrados & ricos.
  117. [1894](Cap. 137) O nosso Capitaõ que se chamaua Gaspar de Mello, homẽ fidalgo, & muyto esforçado, vendo que o junco hia ja aberto de popa, & com noue palmos dagoa no praõ da segunda cuberta, assentou com parecer dos officiais, de cortar ambos os mastos, porque nos abriaõ o junco, & com quãto isto se fez com todo o tento & resguardo possiuel, não pode ser tanto a nosso saluo que a aruore grande não leuasse debaixo de sy quatorze pessoas, em que entrarão cinco Portugueses, os quais todos ficaraõ aly amassados, arrebentando cada hum delles por mil partes, que foy hũa cousa lastimosissima de ver, & que a todos nos derrubou os espritos de tal maneyra, que ficamos como pasmados.
  118. [1916](Cap. 140) a que respõdemos toda a verdade, que eramos Portugueses naturaes de Malaca.
  119. [1943](Cap. 140) E tendo jâ determinado de nos mandar soltar, assi pelo que este homem lhe tinha dito, como pelo que o Broquem lhe escreuera, chegou ao porto hum Chim cossayro com quatro jũcos, a que el Rey daua colheyta em sua terra, por lhe dar a metade das presas que trouxesse da China, & por esta causa era muyto valido com elle & com todos os grandes da terra, o qual por nossos peccados era o mayor inimigo que os Portugueses tinhão naquelle tempo, por hũa briga que os nossos tiuerão cõ elle o anno dantes no porto de Lamau, na qual foy capitão hum Lançarote Pereyra natural de Ponte de Lima, em que lhe queimaraõ tres juncos, & lhe mataraõ duzentos homẽs.
  120. [1993](Cap. 143) Das mais excellencias particulares que pudera dizer desta ilha, não tratarey agora, porque me parece que isto só bastara para espertar & incitar os animos dos Portugueses a hũa empresa de tanto seruiço de nosso Senhor, & de tanta honra & proueyto para elles.
  121. [1995](Cap. 144) Chegando nòs a saluamẽto ao porto de Liãpoo fomos todos bem recebidos & agasalhados dos Portugueses que então aly estauão.
  122. [2014](Cap. 145) Despedido este balão para Malaca com cartas a Pero de Faria, & estãdo já o junco apercebido de tudo o necessario, nos fizemos á vella volta de Tanauçarim, onde (como tenho dito) eu leuaua por regimento que fosse surgir, para negocear co Lançarote Guerreyro que elle & os mais Portugueses que andauão em sua companhia viessem socorrer Malaca pela noua que auia de virem os Achẽs sobre ella.
  123. [2015](Cap. 145) E vellejando por nossa derrota; chegamos a hũa ilha pequena de pouco mais de hũa legoa em roda que se chamaua Pullo Hinhor, dõde nos sahio hum paraoo em que vinhão seys homens baços, todos com barretes vermelhos, mas pobremente vestidos, & chegando a bordo do junco, que ainda neste tempo hia á vella, nos saluarão com mostras de paz, a que nòs respondemos mesma maneyra, & apos isso nos preguntarão se vinhaõ aly algũs Portugueses, a que foy respondido que sy, porem elles não se fiando do que os Mouros lhe dezião, lhe rogaraõ que lhes mandassem mostrar hum ou dous, porque releuaua ser assi.
  124. [2017](Cap. 145) Senhores Portugueses & verdadeyros Christaõs, este honrado homem que esta mostrar a vossas merces, he Rey desta ilha agora nouamente feyto Christão, por nome dom Lançarote, do qual todos os aquy assinados & outros muytos mais que andamos por esta costa, temos recebido grandes auisos de trayçoẽs que Achẽs & Turcos contra nós ordenauão, & por meyo deste bom homem soubemos tudo, & tambem por seu respeito nos deu nosso Senhor agora hũa muyto grande victoria contra elles, em que lhe tomamos hũa galé, & quatro galeotas, cõ mais cinco fustas, nas quais lhe matamos mais de mil Mouros, pelo que pedimos a vossas merces pelas chagas de nosso Senhor Iesu Christo, & pelas dores da sua sagrada paixão que não consintão fazerselhe mal nem agrauo algum, mas antes o fauoreção em tudo como bõs Portugueses, porque seja exẽplo, paraque os outros que isto souberem fação o mesmo que este fez.
  125. [2019](Cap. 145) Esta carta vinha assinada por mais de cinquenta Portugueses, em que entrauão os quatro capitaẽs que eu buscaua, que eraõ Lançarote Guerreyro, Antonio Gomez, Pero Ferreyra, & Cosmo Bernaldez.
  126. [2021](Cap. 145) Elle entre algũas contas que me deu de sy & de suas miserias, leuantando as mãos para o Ceo, & chorando muytas lagrimas me disse: Sabe nosso Senhor Iesu Christo, & sua mãy santa Maria, cujo escrauo eu sou, quanta necessidade eu agora tenho do fauor & ajuda de algũs Christãos, porque por eu ser tambẽ Christão, de quatro meses a esta parte me pos hum meu escrauo Mouro neste estado em que me agora vejo, sem ter por mim mais, que pòr somente os olhos no Ceo, & com grande dór & pouco remedio chorar minha desauentura, & te affirmo na verdade desta santa & noua ley que agora professo, que só por ser Christaõ & amigo de Portugueses, me vejo perseguido desta maneyra.
  127. [2026](Cap. 145) O filho do Necodâ, que como ja disse, era mancebo de bom espirito, & criado entre Portugueses, vẽdo a dor & vergonha em que este aperto me tinha posto, pedio a seu pay que lhe desse vinte marinheyros do junco, para com elles restaurar aquelle pobre Reizinho, & lançar aquelle ladraõ fora daquella ilha, a que elle respondeo que se lho eu pedisse o faria de boa võtade, eu arremetẽdolhe aos peis para lhos abraçar, por ser a mais humilde cortesia que se custuma entre elles, lhe disse chorando, que se me isso fizesse, toda minha vida seria seu escrauo catiuo, & lhe conheceria aquella tamanha amizade, & a todos seus filhos, como elle veria, porque assi lho juraua em minha verdade, & elle mo cõcedeo muyto leuemente.
  128. [2028](Cap. 146) Do que socedeo aos nossos contra os inimigos deste Reizinho, & de hũa grande vitoria que hũs Portugueses ouuerão nesta costa contra hum capitão Turco.
  129. [2034](Cap. 146) Mas porque na carta que este Reizinho me mostrara dos Portugueses fazião elles mençaõ de hũa vitoria que Deos lhes dera contra os Turcos & Achẽs desta costa, determiney de declarar aquy o como ella passou, assi porque me parece que nisto darey gosto aos leitores, como porque se entenda que os bõs soldados no tempo da necessidade não ha cousa que não leuem ao cabo, & que por isso importa muyto terennos muyto mimosos, & muyto fauorecidos.
  130. [2036](Cap. 146) E porque el Rey, por elle ser Turco, o tinha em conta de homem inuenciuel, & para mais que todos os seus, o mãdou então vir da frontaria onde estaua com trezentos Ianiçaros que tinha comsigo, & fazendolhe hũa grossa merce de dinheyro, o fez general da costa deste mar com prouisoẽs de Rey absoluto sobre todos os Oyaas, que saõ como duques, para desafrõtar estes pouos das auexaçoẽs que os nossos lhe fazião, & lhe prometeo de o fazer duque de Banchaa, que he hum estado muyto grande, se lhe trouxesse as cabeças dos quatro capitaẽs Portugueses.
  131. [2048](Cap. 146) As nossas quatro fustas derão todas juntas na Galé com grande impeto & esforço, & lhe lançaraõ dentro sessenta homens, os quais antes que os inimigos entrassem em seu acordo para se valerem das armas, que seria espaço de dous ou tres credos, lhe matarão â espada passante de oitenta Turcos, & todos os mais se lançaraõ ao mar, sem na Galè ficar homem viuo, nem pessoa a que se desse a vida, onde tambem morreo o perro do Heredim Mafamede, & tanto fauoreceo Deos nosso Senhor os nossos neste grande feito, que lhes deu esta honrosa victoria tão barata que não custou mais que hum moço nosso, & noue Portugueses feridos, & na Galé me affirmaraõ elles que morrerão â espada & afogados, muyto perto de trezẽtos Mouros, de que a mayor parte forão Ianiçaros de cercola douro, que he diuisa de nobreza entre os Turcos.
  132. [2053](Cap. 146) E sendo ja quasi vespera, chegaraõ as outras duas fustas que forão mãdadas à terra firme, co mesmo descuydo das outras, & ainda que ouue algum pequeno de trabalho em abalroallas, todauia forão ambas rendidas, mas com morte de dous Portugueses, dos quais hum foy Lopo Sardinha Feitor de Ceilão.
  133. [2063](Cap. 147) O nosso batel chegou com muyta pressa à embarcação que tinhamos visto, & sem nenhũa difficuldade a trouxe á toa, a qual em chegando a nòs me meteo em assaz de cõfusaõ, porque era hum batel em que vinhão cinco Portugueses, dous mortos, & os tres inda viuos, & hum cofre com tres sacos de tangas, laarins, & hum enuoltorio em que vinhão muytos copos & jarros de prata, & dous pratos muyto grandes, o que tudo eu logo fiz pór a bom recado, & os tres Portugueses mety dentro no junco, & fazendolhe todo o gasalhado que pude, os tiue dous dias sem falla, & com gemas douos & caldos de galinha que lhe lançaua pela boca tornaraõ em sy, & prouue a nosso Senhor que em seys ou sete dias conualecerão para poderem dar razão de sy, & hum destes Portugueses era hum Christouão Doria, que nesta terra foy despois mandado por capitão a São Tomè, & os outros dous erão Luys Taborda, & Simão de Brito, todos homẽs honrados & mercadores ricos.
  134. [2067](Cap. 147) Feita esta diligencia seguimos daquy nosso caminho, & passados noue dias chegamos á barra de Martauão, hũa sesta feyra de Lazaro vinte & sete de Março do anno de 1545. tendo passado por Tanauçarim, Touay, Merguim, Iuncay, Pullo Camude, & Vagaruu, sem em nenhum destes portos achar noua destes cem Portugueses que hia buscar, porque a este tempo erão lançados là dessa parte do Chaubainhaa Rey de Martauão, o qual (segundo ouuy dizer) os mandara chamar para se ajudar delles contra o Rey do Bramaa que o tinha cercado com hum campo de setecentos mil homens, como atras fica dito, porem elles ja então não estauão em seu seruiço, como logo se verá mas a razão porque, eu a não soube.
  135. [2072](Cap. 148) E para isto se fez há vella para dentro do rio com conjunçaõ de vento & maré, & dobramos hũa põta que se dizia Mounay, da qual descobrimos a Cidade cercada toda em roda de hũa grãde quãtidade de gẽte que ocupaua grãde parte da vista, & no rio quasi outra tanta de vellas de remo, & com quãto sospeitamos ò que isto podia ser pollas atoardas que jâ traziamos de mais lõge, não deixamos de vellejar até dentro do porto, onde surgimos com muyto recado, & fazendo por cirimonia de paz nossa salua custumada, nos sahio da terra hum batel bem esquipado em que vinhaõ seys Portugueses, cuja vista nos alegrou em estremo, os quais subindo a cima, onde foraõ bem recebidos de toda a gente, nos declararaõ tudo o que conuinha â segurança de nossas pessoas, & nos aconselharaõ que por nenhũ caso fizessemos daly mudança como lhe dissemos que tinhamos determinado, que era fugirmos aquella noite para Bengala, porque sem duuida nos perderiamos, & seriamos tomados da armada que o Rey do Bramaa aly tinha, que era de mil & setecentas vellas de remo, em que entrauaõ cem galès todas bẽ prouidas de gente estrangeyra, mas que me fosse eu logo com elles a terra ver a Ioão Cayeyro que aly estaua por capitão dos Portugueses, a que daria cõta do a que vinha, & faria o que me elle aconselhasse se não queria errar, porque era elle homẽ bem inclinado, & grande amigo de Pero de Faria, em quẽ lhe tinhaõ ouuido fallar muytas vezes, gabandolhe sempre a nobreza de sua pessoa & condição, & que tambem lá acharia Lançarote Guerreyro, & os outros capitaẽs para quẽ trazia cartas, & que nũa cousa & noutra se praticaria o que fosse mais seruiço de Deos & del Rey nosso Senhor.
  136. [2073](Cap. 148) Parecendome a mim bem este conselho, me fuy logo cõ elles a terra, a ver o Ioão Cayeyro, do qual, & de todos os mais que estauaõ cõ elle na sua tranqueyra fuy muyto bẽ recebido, que eraõ setecentos Portugueses, gente toda muyto limpa & rica, & mostrey ao Ioaõ Cayeyro as cartas, & o regimẽto que trazia de Pero de Faria, & pratiquey cõ elle o negocio a que vinha, & elle fez sobre isso logo hũ grande requerimento aos quatro capitaẽs a quem eu vinha dirigido, os quais lhe responderaõ que elles estauão todos muyto prestes para seruirem el Rey nosso senhor em tudo o que se offerecesse, porem que pois a carta de Pero de Faria capitão de Malaca vinha toda fundada no receyo que tinha de os Achẽs, & a armada das cẽto & trinta vellas que esperaua, de que era general o Bijayaa sora Rey de Peedir, & Almirante do Aachem vir a Tanauçarim, a qual ja ahy viera, & fora desbaratada pela gente da terra, com perda de setenta lancharas, & de cinco mil homens, auião a sua yda então por desnecessaria, porque segundo o que elles tinhão visto, hia este inimigo taõ quebrado das forças, que lhes parecia que em dez annos se não poderia tornar a refazer do que tinha perdido.
  137. [2080](Cap. 148) Pelo qual, desesperado o Chaubainhaa de poder ja ter paz nem cõcerto algum com este cruel inimigo, reuoluendo no pensamento que meyo teria para se poder saluar de suas mãos, em fim tomou por derradeyro remedio valerse dos Portugueses, parecendolhe que por seu meyo poderia ser saluo do perigo em que se via, & mandou cometer a Ioaõ Cayeyro que se embarcasse de noite nas quatro naos que aly tinha, paraque o saluasse com sua molher & seus filhos, & lhe daria por isso a metade do seu tisouro.
  138. [2082](Cap. 148) Esforçado & leal capitão dos Portugueses por merce do grande Rey do cabo do mũdo, leão forte, & de bramido espantoso, com coroa de magestade na casa do Sol, eu o malafortunado Chaubainha principe que fuy, & ja não sou desta mal afortunada & catiua cidade, te faço saber por palauras ditas da minha boca na firmeza fiel de minha verdade, que eu me rendo desta hora para sempre por vassallo & subdito do grande Rey Portuguez, senhor soberano de meus filhos & meu, com reconhecença de parias, & de tributo rico qual ordenar a sua vontade, pelo que te requeyro da sua parte que tanto que Paulo de Seixas te dér esta minha carta, sem fazeres nenhũa detença te venhas logo com essas naos por junto do baluarte do caez da varella, onde me acharàs em pé esperãdo por ty para logo sem mais outro conselho me entregar em tua verdade com todo o tisouro que tenho comigo de pedraria & ouro, & da ametade delle faço liuremente seruiço a el Rey de Portugal, com tanto que me conceda licença que â custa do que me fica, faça no seu reyno ou nas fortalezas da India dous mil Portugueses a que prometo de dar grossos soldos, para com elles me restituyr no que agora me he forçado largar por minha grande desauentara.
  139. [2092](Cap. 149) Da determinação que tomou o Chaubainhaa despois que entendeo que não podia ser socorrido dos Portugueses.
  140. [2094](Cap. 149) E chegãdo á cidade achou o Chaubainhaa que o estana esperãdo no lugar onde dissera na sua carta, & lhe meteo na mão a reposta que leuaua, o qual despois que a leo, & entendeo por ella que não podia ser socorrido pelos nossos, como sempre lhe parecera que fosse, dizem que ficou tão fora de sy, que com a grande dor & tristeza cahio em terra como morto, onde despois de jazer algum espaço, tornando em sy se deu por vezes muytas bofetadas no rosto, lamentando sua triste sorte, & com muytas lagrimas & suspiros disse, ah Portugueses Portugueses, quão mal pagastes ao desauenturado de mim o muyto que por muytas vezes tenho feito por vós, parecendome que em o fazer assi fazia tisouro de vossa amizade, paraque como leais me valesseis tamanha necessidade como esta em que agora me vejo, da qual cousa eu não queria nem pretendia mais que vida para meus filhos, & enriquecer o vosso Rey, & teruos comigo em minha terra, de que vos todos ouuereis de ser os principaes, & prouuera a aquelle que vine reynando na fermosura de suas estrellas, que merecereis vòs ante elle fazerdesme este bem, de que meus peccados foraõ o inconueniente, porque vos augmentareis por mym a sua ley, & eu me saluara nas promessas da sua verdade.
  141. [2095](Cap. 149) E despidindo então de sy o Paulo de Seixas, com hũa moça de que tinha dous filhos, lhe deu pelo acompanhar nos trabalhos do cerco dous bracelletes que tinha nos braços, & lhe disse, rogote que te não lembre este pouco que te dou, senão o muyto que te sempre quiz, & que te não esqueça de dares conta aos Portugueses desta dor com que lamento a sua ingratidão, a qual protesto de apresentar no dia da conta de todos os mortos, & os accusar crimemente diante de Deos.
  142. [2111](Cap. 149) E querendo este Rey Bramaa por grandeza de estado festejar esta entrega do Chaubainhaa, mandou que todos os capitaẽs estrangeyros com sua gente armada & vestida de festa se pusessem em duas fileyras a modo de rua para vir por ella o Chaubainhaa, o que logo foy feito, & esta rua tomaua desda porta da cidade até a sua tenda que seria distancia de dous terços de legoa, na qual rua estauão trinta & seys mil estrangeyros, de quarenta & duas naçoẽs, em que auia Portugueses, Gregos, Venezeanos, Turcos, Ianiçaros, Iudeus, Armenios, Tartaros, Mogores, Abexins, Raizbutos, Nobins, Coraçones, Persas, Tuparaas, Gizares, Tanocos da Arabia Felix, Malauares, Iaos, Achẽs, Moẽs, Siames, Lusoẽs da ilha Borneo, Chacomaas, Arracoẽs, Predins, Papuaas, Selebres, Mindanaos, Pegùs, Bramâs, Chaloẽs, Iaquesaloẽs, Sauadis, Tãgus, Calaminhãs, Chaleus, Andamoens, Bengalas, Guzarates, Andraguirees, Menancabos, & outros muytos mais a que não soube os nomes.
  143. [2112](Cap. 149) Estas naçoẽs todas se puseraõ na ordem que lhe foy mandado pelo Xemimbrum mestre do campo, o qual pós os Portugueses na dianteyra de todos, que era junto com a porta da cidade por onde o Chaubainhaa auia de sayr, & logo apos elles os Armenios, & logo os Ianiçaros & os Turcos, & todos os mais nos lugares que lhe a elle bem pareceo, & com esta ordem chegaua esta gente estrangeyra, como ja disse até o dopo del Rey, onde estaua a gente Bramaa da guarda do campo.
  144. [2113](Cap. 150) De que maneyra o Chaubainhaa se entregou ao Rey do Bramaa, & da grande afronta que os Portugueses aly passaraõ.
  145. [2126](Cap. 150) Tanto que el Rey sahio fora da porta & abocou pela rua que estaua feita dos estrangeyros, leuantando os olhos, inda que hia naquelle estado, enxergou na entrada della os setecentos Portugueses todos vestidos de festa, com suas couras cortadas, & gorras nas cabeças concertadas com suas plumas, & todos com seus arcabuzes ás costas, & Ioaõ Cayeyro no meyo delles vestido de citim cramesim com hum mõtante dourado nas mãos fazendo preparar o caminho.
  146. [2129](Cap. 150) O capitão da guarda vendo a detença que o Chaubainhaa fazia, & a razão porque não queria passar adiante, & não se sabẽdo determinar na causa porque elle se queixaua dos Portugueses, voltou muyto rijo no elephante em que andaua sobre Ioaõ Cayeyro, & lhe disse, despeja logo o caminho, porque não he licito que gente tão má como vós outros trilhe a terra que pode dar fruito, & perdoe Deos a quem meteo em cabeça a el Rey que podieis prestar para algũa cousa, rapay as barbas porque se não engane a gente com vosco, & seruirnoseys de molheres por nosso dinheyro.
  147. [2144](Cap. 151) E como esta nouidade prometia de sy o que até então ninguẽ entẽdeo, nos determinamos seys Portugueses a yrmos ver o que era, & despois de andarmos vẽdo todas estas officinas de morte, ouuimos no arrayal grande rumor em toda a gente, que algum tanto nos meteo em cõfusaõ, & sem podermos acabar de cayr no que aquillo podia ser, vimos vir da estancia onde el Rey estaua hũa grãde soma de homẽs a cauallo, que com lanças nas mãos preparauão hũa grãde rua, & dezião em altas vozes, que só pena de morte ninguẽ aparecesse cõ armas, nem lançasse pela boca o conceyto do seu coração.
  148. [2170](Cap. 153) E no fim deste tempo se partio para Peguu, & deixou aly o Bainhaa Chaque seu mordomo mòr para assentar algũas cousas necessarias á quietação do reyno, & tornar a fazer de nouo o que o fogo consumira, para o qual lhe deixou guarnição bastante, & leuou comsigo tudo o que restaua do exercito, em que leuou tãbem ò Ioaõ cayeyro cos setecentos Portugueses, sem ficarem aly delles mais que so os tres ou quatro, homẽs de pouca sustancia.
  149. [2177](Cap. 153) Porque estando jâ este perro para dar â execução a sentença que tinha dada contra mim, lhe foraõ algũs seus amigos â mão aconselhandoo que o não fizesse, porque se me matasse, os Portugueses todos em Pegù se auião de queixar delle a el Rey, & dizerlhe que por me roubar cem mil cruzados que trouxera do capitão de Malaca me condenara à morte, & ma dera, & que estaua claro que el Rey lhe auia de pedir conta de toda esta contia, & que ainda que na verdade entregasse tudo o que me tinha tomado se não auia de auer por satisfeito, parecendolhe que era muyto mais, pelo que podia daquy ficar em tanto descredito com el Rey que nunca mais entrasse em sua graça, & ficarião seus filhos de todo perdidos com abatimento & deshonra muyto grande.
  150. [2178](Cap. 153) O perro do Gouernador Bainhaa Chaque, arreceando que pudesse ser isto assi, deixou de yr com sua teima adiante, & processando de nouo sobre a sentença que tinha dado, sahio que me absoluia da pena da morte, mas que perdesse a fazenda, & ficasse catiuo del Rey, & tãto que fuy saõ das chagas que me fizeraõ os açoutes & os pingos, me leuarão em ferros a Pegû, onde como catiuo fuy entregue a hum Bramaa tisoureyro del Rey por nome Diosoray, que em sua cõpanhia tinha oito Portugueses, que tambem por infortunios nacidos de peccados como os meus, já la estauão auia seis meses os quais foraõ de hũa nao de dom Anrique Deça de Cananor, que com tempo fora aly dar â costa.
  151. [2198](Cap. 154) Chegado este dia determinado para o assalto, que foy aos tres de Mayo de 1545. el Rey aballou hũa hora ante menham da sua estancia onde estaua surto no rio com dous mil seroos esquipados de gente muyto escolhida, & fazendo sinal aos Capitaẽs da terra, que jâ a este tempo estauão prestes, todos juntamente num corpo arremeteraõ aos muros com tamanho estrondo de gritas & alaridos que parecia ajuntarse o Ceo com a terra, & chegando os inimigos hũs aos outros, se trauou entre todos hũa tão cruel & tão aspera briga, que em pouco espaço o ar se vio arder todo em fogo, & a terra banhada em sangue, & ajuntandose a isto o resplandor das espadas, & dos ferros das lanças que por entre as labaredas de quãdo em quando reluzião, fazião hum tão medonho espectaculo, que nós os Portugueses andauamos como pasmados.
  152. [2200](Cap. 154) Durou este segũdo aperto ate se querer ja quasi cerrar a noite, mas nem isso foy parte para el Rey querer desistir do combate, por mais que os seus lhe aconselharaõ que se retirasse, antes jurou de dormir aquella noite dos muros a dentro, ou mandar cortar as cabeças a quantos capitaẽs não visse feridos, que foy causa de grande desmancho, por que durando esta contumaz porfia até que se pàs a Lũa que seria às duas horas despois da meya noite, em que os mandou retirar, se achou pelo alarde que se fez ao outro dia que morreraõ vinte & quatro mil homens, a fora mais de trinta mil feridos, de que despois ao desemparo morreo outra grande quantidade, donde naceo auer tamanha peste no campo, assi pela corrupção do ar, como porque a agoa do rio estaua cheya de sangue, & com isso quasi danada, que isso só foy causa de morrerem despois (segundo se disse) mais de oitenta mil homẽs, em que entraraõ quinhentos Portugueses, a que então se não deu outra sepultura se não a que os abutres & os coruos lhe derão dentro em sy despedaçandoos nos campos & prayas por onde jazião.
  153. [2217](Cap. 155) De maneyra que fez aquy este tyranno justiças tão nouas nestes miseraueis, que nòs os Portugueses andauamos todos como pasmados.
  154. [2232](Cap. 157) Isto feito, o tyranno Bramaa despois de fortalecer a cidade do Prom, & esta fortaleza do Meleytay, & criar de nouo outras duas fortalezas á borda do rio, em lugares importantes à segurança daquelle reyno, se partio em mil seroos ligeyros de remo pelo rio de Queitor acima, nos quais leuou setenta mil homẽs, com determinação de yr em pessoa espiar o reyno do Auaa, & dar de sy hũa mostra à cidade, para ver cos olhos as forças della, & que poder aueria myster para a tomar, & a cabo de vinte & oito dias deste caminho, dentro nos quais passou por lugares muyto nobres do Rey do Chaleu, & Iacuçalão que estauão â borda da agoa, sem tratar de nenhum delles, chegou a esta cidade do Auaa aos treze dias de Outubro deste mesmo anno de 1545. sobre o porto da qual esteue treze dias sem fazer mais dano que somente queimar duas ou tres mil embarcaçoẽs de seruiço que achou no porto, & pòr fogo a algũas aldeas que ao redor estauão, o que lhe não custou tão barato, que não chegasse a despeza destes saltos a oito mil dos seus, em que entraraõ sessenta & dous Portugueses, porque ja neste tempo que aquy chegamos estaua tudo muyto bẽ prouido, & a cidade alẽ de ser forte, assi por sitio como por fortificação, estaua apercebida de vinte mil Moẽs, dos quais se dezia que auia sós cinco dias que erão chegados dos montes de Pondaleu, onde o Rey do Auaa, com licença do do Siammon Emperador desta Monarchia, ficaua fazendo mais oitenta mil homẽs para tornar a ganhar o Prom, porque sendo este Rey do Auaa certificado da deshonra & morte de sua filha & de seu genro, como atras fica dito, & vendo que por sy não era poderoso para se satisfazer das offensas & males que este tyranno lhe tinha feitos, & segurarse dos que temia que ao diante lhe fizesse, que era tomarlhe o reyno, de que algũas vezes o tinha jâ ameaçado, se foy em pessoa com sua molher & seus filhos lançar aos peis deste Siammon, & dandolhe conta dos seus trabalhos & afrontas, & do proposito que leuaua, por hum concerto feito entre ambos se fez seu tributario em seiscentas mil biças cada anno, que da nossa moeda saõ trezentos mil cruzados, & hũa guanta de rubis, que he hũa medida como canada, para hũa joya de sua molher, do qual tributo dizem que lhe fez logo pagamento por dez annos dante mão, a fora outras peitas de pedraria muyto rica, & baixellas & peças que valerião mais de dous contos douro.
  155. [2234](Cap. 157) Pelo que sendo este tyranno auisado de todas estas cousas, temendo poder ser esta â mais certa occasião de se perder que todas as outras de que se podia arrecear, se tornou logo a fortificar o Prom com muyto mayor instancia do que até então tinha feito, porem antes que se partisse daquelle rio onde estaua surto, que seria hũa legoa desta cidade do Auaa, mandou o Bramaa seu tisoureyro por nome Dio soray (em cujo poder eu atras jâ disse que estauamos os oito Portugueses catiuos) por embaixador ao Calaminhan, que he hũ principe de grãde poder que habita no amago deste sertão em muyta distancia de terra, do qual adiante tratarey hum pouco quando vier a dar informaçaõ delle, paraque por liga & contrato de noua amizade se fizesse seu irmão em armas, offerecendolhe por isso certa quantidade douro & pedraria, & rendimentos de algũas terras comarcãs ao seu reyno, paraque este Calaminhan entretiuesse com guerra ao Siammon o verão seguinte, com que não pudesse soccorrer o Rey do Auaa, & lhe ficasse a elle mais facil poder tomar esta cidade, sem receyo deste socorro de que se temia.
  156. [2258](Cap. 159) Porque como nos vinte & oito dias que o embaixador esteue em cura, nós os noue Portugueses, & toda outra gente que hia em sua companhia, andauamos ociosos, nem tinhamos em que gastassemos o tempo, o gastauamos em diuersos modos de desenfadamentos, cada hum naquelle a que era mais affeiçoado, que para todos se achaua aly commodidade.
  157. [2295](Cap. 161) E como os noue Portugueses que aly nos achamos andauamos ociosos, determinamos de nos não ficar cousa por ver deste abuso, & pedimos licença ao Embaixador, o qual nola negou por então, mas nos disse que ao outro dia iriamos com elle, porque se tinha lâ prometido na doença passada, de que nos não pesou por podermos ter milhor entrada, & vermos mais à nossa vontade o que desejauamos.
  158. [2332](Cap. 162) E nestes mesmos noue dias, nós os Portugueses com licença do Embaixador fomos ver algũas cousas que a gente da terra nos tinha gabado, de edificios antigos, tẽplos sumptuosos & ricos, quintis, castellos, & casas que estauão ao longo deste rio feitas por hũ estranho modo de fortaleza & custo grandissimo, entre as quais foy hũa hospedaria de peregrinos que tinha por nome Manicafaraõ, que em nossa lingoagem propriamente quer dizer prisaõ dos deoses, a qual era hũa cerca de mais de hũa legoa em roda, cõ doze ruas de arcos dabobada, em cada hũa das quais auia 240. casas, a razão de cẽto & vinte por bãda, que ao todo vem a fazer duas mil & oitocentas & oitenta casas, as quais a este tẽpo estauão quasi todas cheyas de peregrinos que de diuersas partes aquy concorrẽ em peregrinação todo o anno continuamẽte, & dizẽ elles que por ser deos catiuo de gente estrangeyra, & não ter liberdade para se poder tornar para sua terra fica muyto mais aceita esta visitação que todas as outras.
  159. [2354](Cap. 163) Desembarcado o Embaixador em terra, o Campanogrem, que era o Mãdarim que o trazia, o tomou pela mão, & assentado em joelhos o entregou ao outro que o estaua esperando no caiz com grande estado, por nome Patedacão, homem dos principais do gouerno do reyno, & segundo se dezia, de muyta renda & vassallos, o qual despois que com hũa noua cerimonia de cortesia se entregou do Embaixador, lhe offereceo hum elifante que tinha apar de sy, concertado com cadeyra & jaezes douro, mas o Embaixador o não quiz aceitar por muyto que o Mandarim insistio nisso; & mãdando logo trazer outro quasi da mesma maneyra, lho deu, & para nós os noue Portugueses com mais outros cinquenta ou sessenta Bramaas trouxeraõ cauallos em que todos fomos.
  160. [2373](Cap. 163) O que entendendo o Monuagaruu, por quem aly se gouernaua tudo, acenou ao Queitor, que vinha hum pouco detras delle, que fizesse entrar os estrangeyros sómente, & abriudose outra vez as portas para este effeito, começarão de entrar os Bramaas, & nòs os Portugueses, & de volta com nosco foy tanta a gente que cometeo a entrada, que os porteyros todos, que eraõ mais de vinte, tiueraõ assaz de trabalho em fechar as portas, dando muytas pancadas cos bastoẽs que tinhão nas mãos, & ferindo algũs homẽs de muyto respeito, sem auer cousa que pudesse deter o impeto desta enchente com tamanhas gritas & vozaria que metiaõ medo.
  161. [2474](Cap. 167) Daquy seguimos nosso caminho por hum esteyro que se dezia Madur, mais cinco dias, & chegamos a hũa aldea por nome Mouchel, primeyro lugar do reyno de Pegù, no qual hũ ladrão muyto afamado por nome Chalagonim, que ahy andaua ao salto cõ trinta seroos bẽ cõcertados, & cõ boa gẽte, nos cometeo hũa noite, & pelejando cõ nosco ate quasi a menham, nos tratou de tal maneyra, que a nos fazer Deos muyta merce escapamos da briga cõ perda de cinco embarcaçoẽs das doze que traziamos, & morte de cẽto & oitẽta homẽs da nossa parte, em que entraraõ dous Portugueses, & o Embaixador ficou cõ hũ braço cortado, & cõ duas frechadas, de que esteue â morte, & nòs com todos os mais muyto feridos, & o presente que o Calaminhan mandaua, que valia mais de cem mil cruzados, foy tomado cõ outra muyta fazenda rica que vinha nas cinco embarcaçoẽs, & desta maneyra chegamos dahy atres dias á cidade de Martauão destroçados & roubados, & com a mayor & milhor parte da gente morta.
  162. [2475](Cap. 167) O Embaixador auisou logo daquy o Rey do Bramaa por hũa carta sua, & lhe deu conta de tudo o que lhe socedera, assi na viagẽ como neste desastre, & el Rey proueo logo nisso, mandando com muyta presteza hũa armada de cento & vinte seroos com gente muyto escolhida, em que foraõ cem Portugueses, a qual foy em busca deste ladraõ, & quando lâ chegou, tinha elle ja os trinta seroos com que nos cometera varados em terra, & elle com todos os seus estaua metido em hũa fortaleza a qual tinha cheya de muytas presas que tinha feitas em muytos pouos de todas aquellas comarcas.
  163. [2477](Cap. 167) E nesta ida que se fez sobre este ladraõ socedeo bẽ aos Portugueses, porque todos vieraõ de là muyto ricos, em que ouue cinco ou seys a que dizem que couberaõ em parte a vinte & cinco & a trinta mil cruzados a cada hum, & aos pior liurados a dous & a tres mil.
  164. [2478](Cap. 167) Despois que o Embaixador aquy em Martauão conualeceo das feridas que ouuera na briga, se partio para a cidade de Pegù, onde naquelle tempo, como atras fica dito, o Rey do Bramaa residia com toda sua corte, o qual sabẽdo da sua chegada, & da carta que trazia do Calaminhan em que lhe aceitara a liga da sua amizade o mãdou receber pelo Chaumigrem, seu colaço & seu cunhado, acompanhado de todos os grandes, & com hũa mostra de quatro batalhoẽs de gente estrangeyra, em que entrauão mil Portugueses, de que era capitão hum Antonio Ferreyra natural de Bragãça, homem de grandes espritos, & a quem este Rey daua doze mil cruzados de partido, a fora merces particulares que montauão quasi outro tanto.
  165. [2495](Cap. 167) De maneyra que segundo se aly affirmou, chegou o custo desta pompa funebre a passante de cem mil cruzados, a fora os vestidos que el Rey & os grandes mandarão dar aos trinta mil sacerdotes, em que se gastarão infinitas corjas de roupa, de que os Portugueses ficaraõ bem aproueitados, porque venderão a sua que trouxerão de Bẽgala por aquelle preço que pedião por ella, a qual lhe foy logo paga em paẽs douro, & em barras de prata.
  166. [2550](Cap. 170) Do que este Rey Bramaa fez despois que chegou â cidade de Pegû, & como mãdou sobre a cidade Sauady, & do que ahy nos aconteceo a os noue Portugueses.
  167. [2556](Cap. 170) Pelo qual vendo o Chaumigrem quão mal atê então lhe tinha socedido aquelle negocio, determinou de fazer guerra aos lugares comarcãos que estauão mais perto da cidade, & mãdando o Diossaray tisoureyro mór, de quem os oito Portugueses eramos catiuos, por coronel de cinco mil homẽs, lhe disse que fosse sobre hũ lugar que se chamaua Valeutay donde a cidade muytas vezes era prouida de mantimentos, a qual ida lhe socedeo de maneyra, que antes que chegasse ao lugar derão nelle obra de dous mil Sauadis, & em menos de meya hora dos cinco mil nenhum ficou que não fosse morto; & nesta reuolta por ser de noite, quiz nosso Senhor que nòs os oito Portugueses que ahy nos achamos, escapassemos fugindo, porque ouuemos por milhor conselho saluarmos as vidas que ficarmos mortos no campo como os outros.
  168. [2575](Cap. 171) E chegando nós ao porto de Chatigaõ no reyno de Bengala, onde naquelle tẽpo auia muytos Portugueses, me embarquey eu logo nũa fusta de hum Fernão Caldeyra que hia para Goa, onde prouue a nosso Senhor que cheguey a saluamento.
  169. [2580](Cap. 172) E partindo daquy para a Çunda, em dezassete dias cheguey ao porto de Banta, que he onde comummente os Portugueses fazem sua fazenda.
  170. [2591](Cap. 172) A Nhay Pombaya que trouxe o recado ao Rey da Çunda que eu atras disse, despois que negoceou com elle o a que vinha, se partio logo desta cidade de Banta, & el Rey se fez prestes com muyta breuidade, & se partio com hũa armada de trinta calaluzes, & dez jurupangos, bem apercebida de mantimentos & muniçoẽs, nas quais quarenta vellas hião sete mil homẽs de peleja, a fora a chuzma do remo, & hião nesta companhia quarenta Portugueses dos quarenta & seis que então ahy nos achamos, porque por isso nos fez muytas ventagẽs em nossas fazẽdas, & confessou publicamente que leuaua gosto disso, por onde não ouue razão com que nos pudessemos escusar.
  171. [2610](Cap. 174) Os quatro capitaẽs se foraõ logo nas costas das seis espias que leuauaõ diante, & se foraõ ajuntar todos num lugar certo por onde auião de cometer os inimigos, & dando de supito no corpo da gente co impeto que lhe ensinaua a determinação que leuauão, pelejarão tão esforçadamente, que em menos de hũa hora que a força da briga durou, os doze mil Passaruoẽs deixaraõ mortos no campo mais de trinta mil dos inimigos a fora os feridos que foraõ em muyto mayor quantidade, de que despois morrerão muytos, & foraõ catiuos tres Reys, & oito Pares que saõ como duques, & o Rey da Çunda cõ quẽ hiamos os quarenta Portugueses, escapou com tres lançadas, em cuja defensaõ morreraõ os quatorze delles, & os mais foraõ todos muyto feridos, & o arrayal esteue nũa tamanha confusaõ que quasi esteue de todo perdido, & o Pangueyrão de Pate, Emperador de Demaa, foy atrauessado com hum zarguncho, & esteue no rio meyo afogado sem auer quẽ lhe pudesse valer, donde se pode entender quãta força tem hum supito destes com gente descuydada, porque primeyro que estes entrassem em sy, & os capitaẽs pusessem a gente em ordem, estiuerão por duas vezes postos de todo em desbarato.
  172. [2645](Cap. 177) E consultando todos entre si no milhor talho que se podia dar a isto, vieraõ em fim a se resoluer no que hũ dos nossos Portugueses lhe acõselhou, o qual cõselho foy de tãto proueito ao Portuguez que o deu, que lhe mõtou em mais de dez mil cruzados que os senhores aly logo lhe derão de esmolla pelo seruiço que então fizera ao defunto, & o Portuguez não disse mais senão que o metessẽ em hũa arca cheya de canfora & de cal, & o enterrassem em hũ junco grande que fosse cheyo de terra.
  173. [2663](Cap. 179) E apos isto se passou logo a Demaa com fundamento de a tornar a edificar de nouo, & pola no estado em que antes estaua, onde a primeyra cousa em que entendeo foy em castigar os que se achassem que foraõ culpados no saco da cidade, & entre hũa tamanha multidão delles, não se acharaõ ja mais que cinco mil somente, porque os outros todos eraõ jâ fugidos para diuersas partes, & a todos estes desauenturados em quatro dias que esta execução durou, se deraõ dous generos de mortes somente, hũs espetaraõ viuos em caloetes, & outros queimaraõ nas mesmas embarcaçoens em que foraõ tomados, de modo que naõ ouue dia destes quatro em que não morresse muyto grande quantidade delles, de que todos os Portugueses que ahy nos achamos andauamos como pasmados.
  174. [2667](Cap. 179) Chegados todos os cinco nauios que partimos da Çunda ao porto do Chincheo, onde naquelle tempo os Portugueses fazião seus tratos, estiuemos nelle tres meses & meyo cõ assaz de trabalho & risco de nossas pessoas, por andar a terra então toda reuolta, & os pouos amutinados, & cõ grãdes armadas por toda a costa, por causa dos muytos roubos que os Iapoẽs cossayros tinhão feito nella, de maneyra que não auia quietação para se poder fazer fazenda, nem os mercadores ousauão a sayr de suas casas, pelo que constrangidos nós da necessidade nos passamos ao porto de Chabaquee, onde achamos surtos na barra cento & vinte jũcos, os quais despois que tiueraõ com nosco algũa briga, nos tomarão dos cinco nauios os tres, em que morreraõ quatrocentas pessoas Christãs, de que os oitenta & dous foraõ Portugueses.
  175. [2671](Cap. 179) E como este desauenturado successo nos tirou de todo o sentido & as forças, nenhum de nòs ouue que se lembrasse de procurar meyo nenhũ de sua saluação, como fizeraõ os Chins que leuauamos no junco por marinheyros, que forão taõ industriosos que antes que fosse menham tinhão feito hũa jangada dos pedaços de paos, & das taboas que puderão auer às maõs, & cõ as cordas das vellas as atarão de maneyra que quarenta estauão encima bem á vontade, & como este tempo era aquelle pelo qual se disse, nem o pay pelo filho, nem o filho pelo pay, cada hum procuraua por sy só, sem lhe lembrar outra nenhũa cousa, assi Chins marinheyros, como escrauos nossos, tanto, que pedindo Martim Esteuez capitaõ & senhorio do junco aos seus proprios moços que estauão na jangada, que o quisessem recolher comsigo, lhe responderaõ que por nenhum caso podia ser, o que chegando ás orelhas de hum dos da nossa cõpanhia por nome Ruy de Moura, não podendo sofrer a ingratidão & descortesia com que já todos nos tratauão, se ergueo em pé do lugar onde jazia assaz ferido, & nos fez a todos hũa breue pratica, em que nos disse que nos lembrassemos quão afrontosa & auorrecida era a couardia, & que vissemos quão necessario nos era para nossa saluação trabalhar por tomarmos aquella jangada, & outras muytas palauras a este modo, as quais de tal maneyra nos auiuentaraõ os espritos, que determinados todos num proposito, com hum nouo esforço que nos então deu a hõra & a necessidade, remetemos vinte & oito Portugueses que eramos todos num corpo aos quarenta Chins que ja então estauão na jangada, nòs com nossas espadas, & elles com as machadinhas que tinhão nas maõs, & nos baralhamos hũs cos outros de maneyra, que em espaço de tres ou quatro credos os quarenta Chins foraõ todos mortos, & dos vinte & oito Portugueses os dezasseis, & os doze escaparão assaz feridos, de que ao outro dia morreraõ quatro, cousa certo nunca cuydada nem imaginada, & em que se pode ver claramente a miseria da vida humana, porque auendo menos de doze horas que nos abraçauamos todos, & nos tratauamos com tanto amor que morreramos todos hũs pelos outros, nos trouxerão nossos peccados a tamanho estremo de necessidade, que sobre quatro pedaços de pao atados com duas cordas nos matamos todos huns aos outros tanto sem piedade, como se foramos inimigos mortais, ou outra cousa ainda pior; mas tambem parece que em parte nos desculpa ser a necessidade tamanha que nos forçou a fazermos tamanho desatino.
  176. [2673](Cap. 180) Despois que ficamos senhores desta triste jangada à custa de tanto sangue, assi nosso como dos Chins, nos metemos nella trinta & oito pessoas, das quais os doze eraõ Portugueses, & os mais moços nossos, & algũs mininos filhos de Portugueses, & os mais de nòs hiamos muyto feridos de que despois nos morrerão quasi todos, & por sermos muytos, & a jangada muyto pequena hiamos nella metidos na agoa até o pescoço.
  177. [2676](Cap. 180) E indo nòs desta maneyra que digo, prouue a nosso Senhor por sua misericordia, que ao dia de Reys vimos terra, a qual vista, & o aluoroço della nos causou hũa tão mortal alegria, que só essa bastou para dos quinze que ainda hiamos viuos, morrerem logo supitamente quatro, de que os dous foraõ Portugueses, de maneyra que das trinta & oito pessoas que nos embarcamos na jangada, não escapamos mais que onze, sete Portugueses, & quatro moços nossos.
  178. [2682](Cap. 180) E fazendose à vella nos leuaraõ a hũa aldea que estaua daly doze legoas, por nome Cherbom, onde nos venderaõ a todos oito, seis Portugueses, & hum moço Chim, & outro cafre por treze pardaos, que da nossa moeda saõ tres mil & nouecentos reis a hũ mercador Gentio da ilha dos Selebres, em cujo poder estiuemos vinte & seis dias, & nos tratou muyto bem assi de comer como de vestido, & despois nos vendeo a el Rey de Calapa por dezoito mil reis, o qual Rey vsou cõ nosco de tanta magnificencia que liuremente nos mandou para o porto da Çunda onde estauão tres naos de Portugueses, de que era capitão mòr hum Ieronymo Gomez Sarmento, que a todos nos fez muyto gasalhado, & nos proueo largamente de tudo o necessario, até que se partio para a China.
  179. [2683](Cap. 181) Como deste porto de Çunda fuy ter a Sião donde em cõpanhia doutros Portugueses fuy cõ el Rey â guerra do Chiãmay, & do successo della.
  180. [2684](Cap. 181) Avendo quasi hum mès que estauamos neste porto da Çunda bem prouidos dos Portugueses, como então era ja chegada a monção da China, as tres naos se partirão para o Chincheo, sem ahy na terra ficarem mais Portugueses que sós dous, que num junco de Patane se foraõ com suas fazendas para Sião, em cõpanhia dos quais me foy forçado irme eu tambem, porque me quiseraõ elles fazer o gasto da jornada, & me prometeraõ de me fazerem lâ algũ emprestimo, com que de nouo tornasse a tentar a fortuna, a ver se por importunação me podia melhorar com ella.
  181. [2685](Cap. 181) Partidos nòs daquy, dentro em vinte & seis dias chegamos á cidade de Odiâ que he a metropoly deste imperio Sornau, a que o vulgar daquellas partes chama Sião, onde fomos bem recebidos & agasalhados dos Portugueses que ahy na terra achamos.
  182. [2686](Cap. 181) E auendo pouco mais de hum mês que estaua nesta cidade esperando pela monção da China para me yr para Iapaõ em companhia de outros seis ou sete Portugueses que para là hião, com cem cruzados de emprego, que os dous com que viera de Çunda me tinhão emprestado, chegou noua certa a el Rey de Siaõ, que então estaua nesta cidade de Odiaa com toda sua corte, que o Rey do Chiammay confederado cos Timocouhós, cos Laos, &cos Gueos, (que saõ quatro naçoẽs de gentes que contra o Nordeste senhoreaõ a mayor parte deste sertão, por cima do Capimper, & Passiloco, & saõ todos senhores absolutos sem darem obediencia a ninguem, muyto ricos & poderosos, & de grandes estados) tinhão posto cerco â cidade de Quitiruão, & morto o Oyaa Capimper fronteyro mór daquella arraya cõ mais de trinta mil homẽs.
  183. [2687](Cap. 181) A qual noua fez em el Rey tamanho aballo, que sem esperar por cousa algũa, se passou logo aquelle mesmo dia a outra banda do rio, & sem se querer aposentar em casa nenhũa se pòs no campo em tendas para que todos os outros fizessem o mesmo, & mandou lãçar pregoẽs por toda a cidade, que todo o homem que por aleijão ou velhice não fosse escuso de yr com elle a esta guerra, se fizesse prestes em termo de doze dias que para isso lhe daua de espaço somente, so pena de morrer queimado com infamia perpetua a todos seus decendentes, & cõfiscação de seus beẽs para a coroa, & a fora estas penas pòs outras muytas muyto graues, tão espantosas & medonhas de ouuir, que a gente tremia de medo, & aos estrangeyros de toda a nação que fossem, que estiuessem em sua terra não escusaua tambem desta pena, ou se fossem fora do seu reyno em termo de tres dias, de maneyra que todos andauão como pasmados sem se saberem dar a conselho, nẽ determinarse no que deuião de fazer, & aos Portugueses a que sempre nesta terra se teue mais respeito, mandou rogar pelo Combracalão Gouernador do reyno, que voluntariamente, por quem elles eraõ, o quisessem acompanhar nesta jornada, porque desejaua muyto de lhe entregar a guarda de sua pessoa, por ter conhecido delles que eraõ mais para isso que todos os outros; assi que a efficacia deste recado, que vinha acõpanhado de muytas & largas promessas, & de esperanças de grandes pagas, merces, & honras, & sobre tudo, de dar licença para se fazerẽ igreijas no seu reyno, nos obrigou de tal maneyra, que de cento & trinta Portugueses que então ahy estauamos, os cento & vinte aceitamos yr com elle.
  184. [2704](Cap. 182) E tratando neste seu testamento dos Portugueses que fomos cõ elle a esta guerra primeiro que de todos os outros, pós nelle hũa verba que dezia assi: E aos cẽto & vinte Portugueses que com lealdade vigiaraõ sempre na guarda de minha pessoa, daraõ meyo anno do tributo da Raynha de Guibem, & liberdade em minhas alfandegas por tempo de tres annos, sem lhe leuarem cousa algũa por suas fazendas, & seus sacerdotes poderaõ publicar nas cidades & villas de todo o meu reyno a ley que professaõ do Deos feito homem por saluação dos nacidos, como algũas vezes me tem affirmado.
  185. [2717](Cap. 183) Pero de Faria vendo a efficacia, & o encarecimẽto com que el Rey lhe encomendaua, mandou a Sião por embaixador hum Francisco de Crasto homem nobre & rico para tratar o resgate deste Domingos de Seixas, & de outros dezasseis Portugueses que tambem lá estauão catiuos.
  186. [2718](Cap. 183) Este Francisco de Crasto foy ter á cidade de Odiaa no tempo que eu estaua nella, onde foy muyto bem recebido do Rey de Sião, & lhe deu a carta que leuaua para elle, o qual despois de a lér, & de lhe preguntar por algũas cousas nouas & de curiosidade, lhe deu logo ali a reposta (o qual elle não custumaua a fazer a outro nenhum embaixador) que foy esta, quanto ao Domingos de Seixas que o capitão de Malaca me manda pedir, apontãdome o muyto gosto que el Rey de Portugal terâ se lho mandar, o mesmo me fica a mim de lho conceder, & daquy lho ey por dado com todos os mais que elle lâ onde estâ traz comsigo, de que o Francisco de Crasto lhe deu as graças prostrandose tres vezes com a cabeça no chão, como se lhe custuma a fazer por ser Rey mais supremo que todos os outros; & tanto que chegou o tempo de se poder partir o Frãcisco de Crasto para Malaca, mandou vir o Domingos de Seixas da cidade de Guntaleu onde então estaua por fronteyro mór daquella arraya com trinta mil homẽs de pé, & cinco mil de cauallo, & dezoito mil cruzados cada anno de partido, & em sua cõpanhia fez tambem vir os dezasseis Portugueses que cõ elle andauão, & os entregou a todos ao Frãcisco de Crasto, o qual de nouo lhe tornou a dar as graças pela merce que lhe fazia.
  187. [2720](Cap. 183) Outra vez, no anno de 1545. sendo Simão de Melo capitão da mesma fortaleza de Malaca, vindo hum Luis de Mõtarroyo da China para Patane, acertou por caso fortuito de vento trauessaõ de dar com hũa nao sua â costa no porto de Chatir, abaixo de Lugor cinco legoas, onde pelo Xabandar da terra lhe foy tomada toda a fazenda que o mar lançou fora, & elle foy preso cõ todos os mais que se saluaraõ, que foraõ vinte & quatro Portugueses, & cinquenta moços & criãças pequenas, que ao todo erão setenta & quatro pessoas Christãs, & a fazenda que se saluou da nao montou quinze mil cruzados.
  188. [2721](Cap. 183) E a razão que para isto deu o Xabãdar foy que tudo era seu pelo custume antigo do reyno, o que sabido por algũs Portugueses que naquelle tempo estauão na cidade, aos quais o Luis de Montarroyo por hũa carta dera conta desta sua desauentura, despois de lhe mandarem á prisaõ onde estaua algum vestido de que tinha muyta necessidade, ordenaraõ entre sy de fazerem todos hũa odiaa (que he presente) de peças ricas que valesse mil cruzados, & com ella fallarem a el Rey no dia do elifante brãco que vinha daly a dez dias, no qual, por ser festa solenne, custumaua a fazer muytas esmollas a todos os que lhas pedião, & muytas merces aos seus.
  189. [2722](Cap. 183) Chegado este solenne dia, a que elles chamão Oniday pileu, que quer dizer alegria dos bõs, os Portugueses todos, que serião sessenta o setenta, se puseraõ num certo passo de hũa rua das noue por onde el Rey auia de passar com grande apparato & magestade, & tanto que elle emparelhou com elles, se prostrarão todos por terra, ao modo Siame, & relatandolhe hum delles que foy eleito para isso todo o caso do Luis de Montarroyo & dos companheyros como passara, lhe pedio de esmolla a soltura daquelles perdidos, sem lhe tratar da fazenda que o Xabandar tinha tomada, por se não atreuer a tanto, nẽ lhe parecer razão.
  190. [2725](Cap. 183) A que os Portugueses se lhe prostraraõ todos por terra.
  191. [2768](Cap. 185) Ouuindo o Rey do Bramaa todas estas razoẽs & outras muytas que os seus lhe deraõ neste conselho, pondolhe sempre em todas diante o interesse, que he hũa força a que ninguem se defende, se determinou em tomar esta empresa que os seus lhe aconselhauão; & para effeito disto se passou a Martauão, onde em tempo de dous meses & meyo ajuntou hum campo de oitocentos mil homẽs, em que auia cem mil estrangeyros, dos quais os mil eraõ Portugueses, de que era capitão Diogo Soarez Dalbergaria que de alcunha se chamaua o Galego, o qual fora deste reyno para a India no anno de 1538. na armada em que foy o Visorrey dom Garcia de Noronha na nao Iunco, de que era capitão Ioaõ de Sepulueda de Euora, que hia prouido em capitão de Çofalla.
  192. [2791](Cap. 186) Porem vendo então Diogo Soarez o terreyro outra vez perdido, & muyta parte dos elifantes feridos, & os outros tão amedrontados da artilharia, que por nenhum caso querião tornar ao muro, & a milhor gente da com que cometera esta entrada ja toda morta, & o Sol ser já quasi posto, se chegou a el Rey, & lhe pedio que se retirasse para fora do muro, o que elle carregadamente lhe concedeo pelo ver muyto ferido, assi elle como aos mais dos Portugueses que estauão com elle, porem com determinação de logo ao outro dia tornar a entender no que por então deixaua.
  193. [2812](Cap. 188) E os que morreraõ na batalha da parte do Rey Bramaa foraõ sessenta mil homens, nos quais entraraõ duzentos & oitenta Portugueses, & todos os mais ficaraõ muyto feridos.
  194. [2849](Cap. 190) E tendo por nouas que el Rey estaua então aposentado nas casas de hum pagode, deraõ nellas com muito impeto, em que a fortuna os fauoreceo de tal maneira que o acharão occupado em hũa necessaria, onde o matarão logo muito a seu saluo, & se vierão retirando todos juntos para hum terreyro que estaua fora, no qual, por que jâ a este tempo auia aluoroço na gente da guarda, & a traição era sentida dos que vigiauão, tiuerão hũa grãde briga por espaço de quasi meya hora, em que morreraõ de ambas as partes oitocentos homẽs, de que a mayor parte foraõ Bramaas; & retirandose o Xemim de Çatão cõ obra de quatrocentos dos seus, se foy marchando para hum lugar grande que se dezia Poutel, onde logo se veyo para elle toda a gente daquella comarca, a qual sabendo da morte do Rey Bramaa, a quem todos tinhão grandissimo odio, formou hũ grosso corpo de cinco mil homẽs, & se sahio em busca de tres mil Bramaas que o Rey aly trouxera comsigo, os quais jà a este tempo andauão espalhados por muitas partes, como pasmados & fora de si, pelo qual facilmente foraõ todos mortos naquelle mesmo dia, sem a nenhum se dar a vida, entre os quais foraõ tambem mortos oitenta Portugueses de trezentos que Diogo Soarez aly tinha comsigo, o qual cõ os mais que ficaraõ viuos se entregaraõ a partido por não terem outro remedio, & se lhes outorgou a vida com condiçaõ & juramento que lhe derão, que daly por diante seruiriaõ lealmente o Xemim de Çatão como a seu proprio Rey.
  195. [2906](Cap. 192) El Rey mandandolhe logo dar na casa para lhe tomarem a fazenda, foy tamanha a desordẽ pela cubiça que leuauão aquelles caẽs esfaimados, que nem telhas lhe deixaraõ nos telhados, & por se não achar quãto se presumia que tinha, meteraõ a tormẽto todos os escrauos & criados seus com tamanho excesso de crueldade que ficaraõ aly mortos trinta & oito em que entraraõ sete Portugueses que innocentemẽte padeceraõ pela cousa de que não sabião parte.
  196. [2919](Cap. 193) E determinado neste parecer, se fez logo prestes para o pòr por obra, & dahy a dous dias hũa antemenham sahio por cinco portas com oitenta mil homẽs que inda então tinha cõsigo, & arremetendo aos inimigos com grande furia, & grandes estrondos de vozes & gritas, elles, que não estauão descuydados os vieraõ receber cõ muyto esforço, & entre todos se trauou hũa briga taõ cruel, & pelejada com tanta vontade, que em espaço de pouco mais de hora & meya que a mayor força della durou, morrerão de ambas as partes passante de quarenta mil homẽs, no fim do qual tẽpo o Xemim de Çatão nouo Rey foy derrubado do elifante em que andaua de hũa arcabuzada que lhe deu hum Portuguez por nome Gonçalo Neto natural de Setuuel, pela qual causa toda a mais gente se acabou de render, & a cidade se entregou a partido de lhe ficarem a todos saluas as vidas & as fazendas; & o Xemindoo entrou logo dentro nella, & no mesmo dia se coroou por Rey de Péguu na varella grande, hum sabado vinte & tres dias de Feuereyro do anno de 1551. E ao Gonçalo Neto pelo que fizera mandou dar vinte biças douro que saõ dez mil cruzados, & aos mais Portugueses, que eraõ oitenta, deu cinco mil cruzados, & lhes fez muytas honras, & deu muytas liberdades na terra, & lhes quitou por tres annos todos os direytos de suas fazendas, que despois se lhes guardou muyto inteiramente.
  197. [2942](Cap. 195) Determinado isto assi entre todos, se concertaraõ logo que os tres juizes religiosos fossem tres menigrepos de hũ pagode que se dezia Quiay Hifarom, deos da pobreza, & nos outros tres juizes de naçoẽs estrangeyras se ordenou que se lançassem sortes entre el Rey & os amotinados, sobre qual delles escolheria hũ ou dous por sua parte, & prouue a nosso Senhor que coube a el Rey por sorte escolher os dous, porque elle, por permissaõ diuina os escolheo ambos Portugueses dos cento & oitenta que então estauão na cidade, hum dos quais foy Gonçalo Pacheco feitor do lacre del Rey nosso Senhor, homem fidalgo nobre, & de muyto boa consciencia, & o outro hum mercador honrado por nome Nuno Fernandez Teixeira, que este Rey conhecia do tempo do Rey passado, & que delle era tido em muyto boa conta.
  198. [2945](Cap. 195) E para isto, aquella mesma noite á meya noite mandou el Rey hum Bramaa de uallo ao bairro onde pousauão os Portugueses, os quais estauão com tanto receyo do saco, & da morte de todos como os mesmos Pèguus.
  199. [2946](Cap. 195) Chegado o Bramaa â cidade, & pregũtando em voz alta (por ser assi seu custume quando vem da parte do Rey) onde viuia o capitão dos Portugueses, o leuaraõ a sua casa, sem se saber o que podia ser isto.
  200. [2950](Cap. 195) Gonçalo Pacheco leo logo a carta perãte todos os Portugueses, que a ouuiraõ em pè cos barretes nas mãos, a qual dezia assi.
  201. [2954](Cap. 195) Gonçallo Pacheco & Nuno Fernandez cõ mais outros dez Portugueses que para isto foraõ eleitos, ordenaraõ logo hum presente de muytas peças ricas para leuarem a el Rey, & aquella mesma noite se foraõ em companhia do Bramaa que trouxera a carta, hũa hora ante menham, porque o tempo & a pressa de el Rey não sofrião nenhũa dilação.
  202. [2956](Cap. 196) Gonçallo Pacheco & Nuno Fernandez cos mais Portugueses chegaraõ ao arrayal jâ cõ hũa hora de sol, & el Rey os mandou receber por Gibraidãosedaa senhor do Meidoo, hũ dos principais capitaẽs Bramaas que aly tinha comsigo, & de que muyto se fiaua, o qual vinha acompanhado de mais de cento de cauallo, com seis porteyros de maças.
  203. [2963](Cap. 196) A Gonçallo Pacheco, & á Nuno Fernandez Teixeira, por serem os seus dous Iuizes nesta sentẽça mandou el Rey dar dez biças douro, com que as esportulas, & ò presente que lhe leuarão ficou tudo bem pago, â fora hũa licença escrita de sua letra, para que todos os Portugueses se pudessem yr liuremente para â India cada vez que quisessem sem pagarem direyto ninhum de suas fazendas, ò que elles estimarão mais que quanto dinheyro se lhes pudera dar, porque auia jâ tres annos que à maneyra de reteudos nos detinhão os Reys passados naquella terra, com auexaçoẽs & tiranias muyto grãdes, corrẽdo algũas vezes muyto risco de nossas vidas por causa dos sucessos de que âtras tenho tratado.
  204. [2995](Cap. 198) Passando o triste padecente por esta rua do Sabambainhaa chegou a hũ certo passo onde estaua o nosso capitão Gonçallo Pacheco, com mais de cem Portugueses em sua companhia, entre os quais estaua hum que era homem de baixo sangue, & de entendimento muyto mais baixo, o qual parece, segundo elle dezia, que fora roubado auia dous annos, no tempo que este padecente reynaua, & fazendolhe elle queixume dos culpados no furto, não fora ouuido como elle quisera.
  205. [2996](Cap. 198) Este agora magoado ainda disto, parecẽdolhe que se vingaua em soltar palauras necias & desnecessarias, tanto que o padecente emparelhou co lugar onde estaua Gonçallo Pacheco com todos os mais Portugueses, disse cõ vozes muyto altas que todos o ouuirão, ò ladrão Xemindoo, lembrate quando te fuy fazer queixume dos que me roubaraõ minha fazenda, de que me não fizeste justiça?
  206. [3017](Cap. 200) A qual empresa, segundo me despois disseraõ, nos custou a nós da nossa parte duzẽtos & oitẽta Portugueses, em que entraraõ dous frades de São Domingos que então andauão là pregãdo.
  207. [3019](Cap. 200) Despois que estas reuoltas que atras disse, foraõ todas quietas, Gõçallo Pacheco se despidio desta cidade Pègù, cõ todos os mais Portugueses que nella estauamos, a quẽ este nouo Rey Bramá tinha libertado, da maneira que atras fica dito, mãdandolhe entregar liuremẽte suas fazedas, & fazendolhe outras muitas merces, assi de honras como de liberdades, & nos embarcamos todos os cento & sessenta Portugueses em cinco naos que neste tẽpo estauão no porto de Cosmim, cidade das principais deste reyno, & nellas nos espalhamos, como peregrinos que somos na India, por diuersas partes, onde a cada hũ lhe parecia que poderia fazer milhor seu proueito.
  208. [3041](Cap. 200) A este desmancho acudio já por derradeyro el Rey em pessoa com a guarda que tinha cõsigo a ver se os podia pòr em paz, porem a cousa andaua jâ tão acesa, & a elle o trataraõ de tal maneyra que despois de o desacatarem algũas vezes, se veyo a voltar a furia toda contra elle, & lhe mataraõ tãtos dos seus que lhe foy forçado virse retirando já com muyto poucos para as suas casas, porem nem isso já então lhe aproueitou, porque até lâ o seguiraõ, & nellas o acabaraõ de matar, & a toda a gente que nellas auia, que, segundo se affirmou, passaraõ de quinze mil pessoas, em que entraraõ vinte & seis Portugueses de quarẽta que se acharaõ com elle.
  209. [3044](Cap. 200) E nòs os dezassete Portugueses que escapamos nos recolhemos â nao cõ muyto trabalho, na qual milagrosamẽte nos saluamos com largarmos as amarras, & fugirmos para o mar.
  210. [3058](Cap. 202) Acabada esta reuolta cõ tanto custo de todas as partes, como a terra ficou toda assolada, & os mercadores eraõ todos fugidos, & el Rey estaua com determinação de se sayr da cidade, nós os poucos Portugueses que ainda ahy estauamos (porque como o tẽpo nos deu lugar nos tornamos a surgir no porto da cidade) desconfiados de podermos ahy estar seguros, & de termos quem nos comprasse nossas fazendas, nos fizemos á vella, & nos passamos a outro porto daly nouẽta legoas, que se chamaua Hiamãgoo, na bahia de Canguexumaa, onde estiuemos dous meses & meyo sem podermos vender cousa nenhũa, porque toda a terra estaua taõ cheya de mercadarias da China, que se perdia do proprio mais das duas partes, porque não auia porto, nem enseada, nẽ angra em toda esta ilha de Iapaõ, onde não estiuessem surtos trinta quarenta juncos, & em algũas partes mais de cento, como foy em Minatoo, Tanoraa, Fiunguaa, Facataa, Angunee, Vbra, & Canguexumaa, de maneyra que naquelle anno foraõ da China a Iapaõ de veniaga passante de duas mil embarcaçoẽs, & era a fazenda tãta & tão barata, que o pico de seda que naquelle tempo se compraua na China por cem taeis, se vendia em Iapaõ por vinte & cinco, vinte & oito, & o mais a trinta, & ainda com muyta aderencia, & todas as mais sortes de fazendas tinhaõ nos seus preços esta mesma baixa, pelo qual ficamos de todo perdidos sem nos sabermos determinar o que fizessemos de nós.
  211. [3059](Cap. 202) Mas como Deos nosso Senhor com seus occultos juizos ordena todas as cousas suauemente por huns meyos que nos embaração o entendimẽto, permitio elle pela razão que elle só entende, que com a lũa noua de Dezembro, que foy aos cinco dias do més, sobreuiesse hũa taõ grande tempestade de chuueyros & vento, que destas embarcaçoẽs todas nenhũa ficou que não desse à costa, de maneyra que achou que chegara a perda que fez esta tormenta a mil & nouecentos & setenta & dous juncos, em que entraraõ vinte & seis de Portugueses, em que morreraõ quinhentos delles, a fora mais de mil pessoas Christãs, & se perderaõ oitocentos mil cruzados de emprego da China.
  212. [3070](Cap. 202) As quais palauras eu lhe não quis responder, & vindome com elles ambos a bordo os mety dentro na nao, inda que foy com assaz de trabalho, onde ambos foraõ bem prouidos pelo capitão & pelos Portugueses que aly estauão, de tudo o que lhe era necessario para hũa tão longa viagem.
  213. [3121](Cap. 204) E sendo ja sobola tarde, como todos tinhão os olhos no que elle tinha dito, inda que cõ differẽtes animos, cõforme à fé que cada hũ tinha, hũa hora antes do sol posto pouco mais ou menos, se deu rebate de cima do outeyro de nossa Senhora que para a parte do Norte aparecião duas vellas latinas, com a qual noua foy tamanho o aluoroço no pouo, que era cousa de espanto, o capitão Simão de Mello mandou logo là hũ balão esquipado a saber o que era, o qual trouxe recado que eraõ duas fustas em que hião sessenta Portugueses, de hũa das quais era capitão Diogo Soarez o Galego, & da outra Baltezar Soarez seu filho, as quais ambas vinhaõ de Patane, com determinação de passarem de largo para Pégù, para onde leuauão sua derrota.
  214. [3135](Cap. 205) E como a armada não leuara mantimentos para mais que para hum só mês, & elles tinhão já gastados trinta & seis dias de sua viagẽ, & neste tẽpo ja não tinhão cousa nenhũa para comerẽ, lhes foy forçado iremno buscar a Iunçalão, ou a Tanauçarim, que eraõ portos muyto distãtes daquelle lugar para a costa do reyno Pégù, & cõ esta determinação se abalarão donde estauão, & começarão a fazer seu caminho, indo todos bem enfadados destes successos, mas prouue a nosso Senhor autor de todos os beẽs, que deu o tempo cõ elles na costa de Quedaa, & entrando no rio Parlès com fundamento de fazerem nelle agoada, & seguirem adiãte por sua derrota, viraõ de noite passar hum paraoo de pescadores ao lõgo da terra, & o capitão mòr o mandou buscar para saber delle onde era a agoada; trazido o paraoo a bordo, elle fez gasalhado aos que vinhaõ nelle, de que elles ficaraõ contentes, & preguntados hũ por hũ algũas particularidades necessarias, responderaõ todos que a terra estaua toda deserta, & o Rey era fugido para Patane, por causa de hũa grossa armada que auia més & meyo que aly estaua dassento com cinco mil Achẽs fazendo hũa fortaleza, & esperando as naos dos Portugueses que viessem de Bengala para Malaca, com fundamento, como elles dezião, de a nenhum Christão darem a vida, & tambem descubriraõ outras muytas cousas necessarias a nosso proposito, de que o capitaõ mòr ficou taõ contente, que se vestio de festa, & mandou embandeyrar toda a armada.
  215. [3156](Cap. 206) O capitão mòr mandou logo fazer ressenha da sua gente, & se acharaõ mortos dos nossos vinte & seis, dos quais os cinco sós foraõ Portugueses, & os mais forão escrauos & marinheyros que nas fustas hiaõ ao remo, & feridos foraõ cento & cinquenta, de que os setẽta foraõ Portugueses, dos quais despois fallecerão tres, & cinco ficaraõ aleijados.
  216. [3201](Cap. 208) Cõ esta reposta despidiraõ logo o Christão que lhes trouxe a carta, o qual hia bẽ contẽte pelo muyto que lhe deraõ, & pelo bõ gasalhado cõ que foy tratado os dias que aly esteue, & em cinco dias de caminho chegou à cidade de Omanguche, onde o padre pela certeza da nao, & pelas cartas que lhe trouxe o recebeo cõ grande aluoroço, & daly a tres dias se partio para a cidade do Fucheo, que he a metropoly do reyno do Bungo, onde nesta nao que tenho dito, que era de Duarte da Gama, estauamos então trinta Portugueses, fazendo nossas fazendas, & hũ sabado chegaraõ a nòs tres Iapoẽs Christaõs que vinhão em sua cõpanhia, pelos quais o capitão Duarte da Gama soube que o padre ficaua daly duas legoas em hũ lugar que se dezia Pimlaxau com dòr de cabeça, & os peis inchados das 60. legoas de caminho que até ly tinha andado, & que lhe parecia, segũdo vinha mal desposto, que auia mister algũs dias para se curar, & poder acabar o caminho, ou hũa caualgadura em que viesse se a quisesse aceytar.
  217. [3203](Cap. 209) Sabẽdo Duarte da Gama capitão da nao que o padre estaua naquella aldea de Pinlaxau tão mal desposto como os tres Iapoẽs lhe tinhão dito, mandou logo recado aos Portugueses que então estauão dassento na cidade vendẽdo suas fazendas, que era hũa legoa do porto õde a nao estaua surta, os quais vierão logo com grande aluoroço, & praticando no que sobre isto fariaõ, se assentou que o fossem buscar ao lugar onde ficara doente, o que logo puseraõ por obra.
  218. [3210](Cap. 209) Os Portugueses se tornaraõ a retificar no que tinhaõ dito, & certificalo de nouo daquillo em que elle ja tinha caydo, & o informaraõ de toda a verdade, de que elle foy muyto espantado, & se tornou logo, & chegando á cidade deu conta a el Rey do que passaua, & lhe disse que a nossa artilharia que ouuira fora para festejarmos a chegada do padre, com a qual estauamos todos taõ contentes, como se tiueramos a nao carregada de prata, pelo que estaua claro ser tudo mentira quanto os bonzos tinhão dito delle; & que affirmaua a sua alteza que era homẽ de rosto tão graue que ninguẽ o veria que lhe não tiuesse muyto acatamẽto.
  219. [3213](Cap. 209) Este moço que trouxe esta carta veyo em hũa funee de remo do tamanho de hũa boa galeota, acõpanhado de trinta mãcebos fidalgos, & hũ homẽ muito velho por seu ayo, por nome Poomindono, irmão bastardo del Rey de Minâto, o qual se despidio do padre & dos mais Portugueses, que então estauamos todos cõ elle, & quãdo se tornou a embarcar na funee em que viera, a nao lhe fez salua de quinze tiros de artilharia, de que o moço ficou assaz cõtente & oufano, & olhãdo para o ayo que estaua junto delle, lhe disse, grãde deue ser o Deos desta gẽte, & seus segredos muito ocultos a nos, pois permite que homem tão pobre como os bonzos affirmaõ a el Rey que este era lhe obedeção as naos dos ricos, & suas bõbardas manifestẽ cõ bramidos taõ grandes, que o Senhor se satisfaz cõ mercadaria taõ baixa & tão desprezada na opinião dos que viuẽ na terra, que parece peccado graue só o pẽsamento que nisso se occupa.
  220. [3217](Cap. 209) Ao outro dia tanto que foy menhã clara, o capitão Duarte da Gama cõ todos os mercadores & os mais Portugueses que vinhaõ na nao se puseraõ em conselho sobre o modo que se auia de ter nesta primeyra vista que o padre auia de ter com el Rey, & por todos foy assentado que por hõra de Deos elle fosse co mais aparato que pudesse ser, porque cõ isso ficariaõ os bonzos por mentirosos no que tinhaõ dito delle, porque claro estaua que da maneyra que o vissem tratado nesta conta o terião, & por isso entre gente que naõ conhecia a Deos era muyto necessario ser isto como elles dezião.
  221. [3220](Cap. 209) Aquy chegou o Quamsy andono capitão da Canafama por mãdado del Rey, & trouxe hũas andas em que o padre fosse, as quais elle naõ quis aceitar por nosso respeito, & daquy abalou a pé para o paço acõpanhado de muyta gente nobre & dos trinta Portugueses todos, cõ mais de outros tãtos moços nossos muyto bẽ tratados, & cõ cadeas douro ao pescoço, o padre leuaua hũa loba de chamalote preto sem agoas cõ hũa sobrepeliz encima, & hũa estola de veludo verde cõ seu sauastro de brocado, o nosso capitaõ hia cõ hũa cana na mão como porteyro mór, & cinco dos mais hõrados & ricos, & de milhor nome leuauaõ certas peças nas mãos como criados seus, hũ leuaua hũ liuro metido nũ saco de citim brãco, outro hũas chinelas de veludo preto que entre nós se acharaõ, outro hũa cana de bẽgala cõ hũ castro douro, outro hum retabolo de N. Senhora nũ enuoltorio de damasco roxo, outro hũ sõbreyro de pè pequeno, & assi cõ esta ordẽ & cõ este aparato passamos pelas principais noue ruas da cidade, onde auia tanta quantidade de gente, que atè por cima dos telhados tudo era cheyo.
  222. [3233](Cap. 210) O padre se lhe quis inclinar aos peis, mas elle o não consintio, antes o leuou nos braços, & lhe fez por tres vezes o gromenare, que he (como atras disse) cortesia de filho a pay, ou de vassallo a senhor, de que todos os senhores que estauão presentes ficarão muito espãtados, & nòs muyto mais, & tomandoo pela maõ, o seu irmão, que ate ly o trouxera comsigo, se deixou ficar hum pouco atras, & assentandose no estrado, assentou o padre igualmente comsigo, & a seu irmão mais abaixo hum pouco, & aos Portugueses defronte junto dos senhores do reyno que ahy estauão, onde se fizeraõ algũs comprimẽtos de parte a parte, em que el Rey se mostrou ao padre muyto amigo, & o padre lhe respondeo por palauras tão agradaueis ao seu modo, que olhando elle para seu irmão, & para os mais senhores que estauão na casa disse em voz alta que todos o ouuiraõ, quem pudesse preguntar a Deos o por onde isto caminha?
  223. [3246](Cap. 210) E offerecendolhe com a boca cheya de riso o prato darroz que tinha diante de sy, lhe tornou de nouo a rogar que comesse, & o padre o fez logo, pelo qual nòs todos, assi o capitão como os mais Portugueses nos pusemos e os joelhos em terra por aquella grãde honra que publicamente & a despeyto dos bonzos fazia ao padre, sem embargo de lho elles terem mixiricado.
  224. [3255](Cap. 211) Sendo entre tanto chegado o tempo da nossa embarcação, & estando a nao jâ prestes para se partir, o capitão Duarte da Gama & os mais Portugueses em companhia do padre, nos fomos hũa menham despidir del Rey, & darlhe as graças pelo bom tratamento que nos fizera em sua terra, o qual despois de nos receber a todos com sembrante alegre & bem assombrado, nos disse, confessouos que me fica magoa no meu coraçaõ porque não posso ser cada hum de vós outros, pela inueja que vos tenho da companhia que leuais com vosco, de que eu fico tão orfaõ, quanto a minha alma me está cà chorando, porque temo muyto que o não ey de ver mais nesta terra.
  225. [3262](Cap. 211) E a este modo dezião outras muytas pragas a el Rey & ao pouo por consintirem o padre na terra, que era medo ouuilos, de que nós os Portugueses todos andauamos assaz amedrõtados mas valeonos termos sempre el Rey de nossa parte, o qual, despois de Deos, foy causa de os bonzos não ousarem a se determinar no que entre sy trazião fulminado, que era, segundo despois soubemos, ordenarem hum arruydo feitiço em que matassem o padre & a nòs todos com elle.
  226. [3265](Cap. 211) Elle parecendolhe que seria grande honra & credito seu vencer aquelle de quem tantos foraõ vencidos, acudio logo com muyta pressa, acompanhado doutros seis ou sete tais como elle de que se quis ajudar, & chegou á cidade ao tempo que o padre, como disse, estaua em casa del Rey co nosso capitaõ, & cos outros Portugueses despidindonos delle para o outro dia nos fazermos á vella.
  227. [3285](Cap. 212) Do que este bemauenturado padre passou cos Portugueses a cerca da embarcação, & da segunda disputa que teue co bonzo Fucarandono.
  228. [3287](Cap. 212) Pelo qual receosos nos os Portugueses que por isto nos pudesse acontecer, o de que sempre nos tememos, nos embarcamos ao outro dia, hum pouco mais depressa do que era razão, & requeremos tambem ao padre que fizesse o mesmo, pois aly não auia ja que fazer, de que elle por então se escusou.
  229. [3289](Cap. 212) E chegando Duarte da Gama a hũa pobre casa onde o padre estaua recolhido com oito Christãos, lhe deu o recado que leuaua da parte de todos os Portugueses, & lhe pos diante com muytas razoẽs quanto lhe conuinha embarcarse logo, antes que lhe acontecesse algum desastre, como claramente parecia que auia de ser se o não fizesse.
  230. [3292](Cap. 212) Com este desengano se tornou o capitão para a nao, tão confuso da efficacia com que ouuira estas palauras a este bemauenturado, acompanhadas de algũas lagrimas, que despois de cõtar aos Portugueses o que passaua, lhes disse que quanto á obrigação que lhes tinha de por seus fretes os tornar ao porto de Cantão donde partira, que ahy lhe entregaua & largaua a nao com toda a fazẽda para fazerem de tudo o que quisessem, porque elle protestaua de se tornar a terra, & não desemparar o padre por nenhum caso.
  231. [3300](Cap. 212) E mandando logo recado ao padre, a quem já de mais longe tinha auisado disto, o capitão & os Portugueses todos o acompanharaõ com muyto mayor fausto que o do primeyro dia que se vio com el Rey, & os mais honrados & ricos o seruirão de criados com acatamento grandissimo, pondo a tudo os joelhos em terra, & tendo sempre nas mãos as gorras, que eraõ guarnecidas de perolas, & de muytas cadeas douro; da qual vista com tanta riqueza, tanta honra, & tanto fausto, o Fucarandono, & os outros bonzos se ouuerão por muyto afrontados, & se enxergou nelles grandissima dór, & grandissimo espanto do que vião, porem el Rey & todos os senhores que estauão na casa mostraraõ terẽ muyto gosto disso, & dezião hũs para os outros a modo de remoque contra os bonzos, assi fossem meus filhos pobres como este o he, & dissessem delles quanto quisessem, porque a verdade todos a temos diante dos olhos, & a mentira dos que o contrario disseraõ, he boa testemunha de suas inuejas.
  232. [3326](Cap. 213) E leuãtandose cõ isto, se foy cõ algũs daquelles senhores de que estaua acõpanhado a ver hũs jogos a casa da Raynha, & os bõzos se foraõ cada hũ para sua parte, & o padre cõ o capitaõ & os mais Portugueses se foraõ para a casa dos Christaõs, onde dormiraõ aquella noite.
  233. [3328](Cap. 213) O padre entẽdendo a metafora, sahio logo á rua, onde el Rey o estaua esperãdo em pé, cõ sós tres ou quatro priuados seus comsigo, & romãdoo pela maõ, & os Portugueses hũ pouco atras afastados, o leuou cõ muyta hõra por todas as ruas até sua casa, onde os bõzos já estauão cõ muyta soma de gẽte nobre, & despois que se assẽtou, & fez quietar a casa, os bonzos tornaraõ de nouo a mouer outras questoẽs sobre a materia do dia de antes, & mostraraõ hum grande papel cheyo de repostas, o qual el Rey não quis ver dizendo, o que jâ se julgou hũa vez, não se pode julgar duas como vos quereis, por isso fallay em outra cousa, porque este padre esta jà embarcado para se partir, & o capitão não vos deue tanto por parentesco nẽ por amizade que por vosso respeito queyra perder sua viagẽ, & por isso lograiuos delle estes dous dias que aquy ha de estar se vos prouuer, ou vos tornai para Miaygimaa dõde viestes; a que elles respõderão que assi o fariaõ como a sua alteza lhes mãdaua, porẽ jâ que se aly achauaõ lhes desse licença para praticarẽ hũ pouco co padre em cousas boas que desejauão de saber delle em que naõ auia de auer porfia nenhũa, porque jà todos vinhaõ apostados a isso.
  234. [3347](Cap. 214) Ao outro dia pela menham despois que o nosso santo padre com todos os Portugueses se despidio del Rey, o qual nesta despidida lhe fez as honras & o gasalhado que sempre custumara, nos viemos embarcar, & nos partimos desta cidade Fucheo, & vellejamos por nossa derrota à vista de terra atè hũa ilha del Rey de Minâcoo chamada Meleitor, & atrauessando daquy com ventos de moução tendente, continuamos nosso caminho por espapo de sete dias, no fim dos quais o tempo com a conjunçaõ da lũa noua nos saltou ao Sul, & ameaçandonos com chuueyros & mostras de inuerno, veyo em tamanho crecimento, que nos foy forçado arribar em fim de roda com a proa ao rumo de Nornordeste por mar incognito, & nunca nauegado de naçaõ nenhũa, sem sabermos por onde hiamos, entregues de todo ao arbitrio da fortuna & do tẽpo, com hũa taõ braua & taõ excessiua tormenta, qual os homẽs nunca imaginaraõ, que nos durou cinco dias: & como em todos elles nunca vimos o Sol para o piloto saber porque altura caminhaua, só pela sua fraca estimatiua, sem conta de graos nem de minutos, pouco mais ou menos foy demandar a paragem das ilhas dos Papuaas, Selebres, & Mindanous que distauaõ daly seiscentas legoas.
  235. [3350](Cap. 214) E porque ja quando esta obra se acabou a çarração da noite era muyto grande, não foy possiuel recolherse á nao a gente que estaua nelle, pelo que foy forçado ficarem aquella noite lá todos, que foraõ quinze, de que os cinco eraõ Portugueses, & os outros escrauos & marinheyros.
  236. [3355](Cap. 214) Desta maneyra corremos tudo o que restaua da noite com assaz de trabalho, & quando foy menham clara em todo o mar quãto alcançaua a vista de cima da gauea não aparecia cousa nenhũa mais que sómente o escarceo da tormenta que arrebẽtaua em flor, & sendo passado pouco mais de meya hora de dia, o padre que então estaua recolhido na camara do capitão, se veyo ao chapiteo onde estauão o mestre & o piloto cõ mais outros seis ou sete Portugueses, & despois de dar a todos os bõs dias com sembrante alegre & quieto, pregũtou se aparecia o batel, & lhe foy respondido que não; & rogando ao mestre que quisesse mãdar hum marinheyro â gauea para que visse se aparecia de lâ de cima, hum dos que aly estauão lhe disse que apareceria quando se perdesse outro, a que o padre, pesandolhe do que lhe ouuira, respondeo, ó irmão Pero Velho (que assi se chamaua elle) muyto pequena fé he essa que tendes, & como?
  237. [3363](Cap. 214) Desta maneyra esteue o padre recolhido na sua oraçaõ ate quasi sol posto, & então se sahio do camarote, & se foy acima ao chapiteo onde os Portugueses todos estauão assentados no chaõ por causa dos grandes pendores & balanços que daua a nao; & despois de os saudar a todos preguntou ao piloto se aparecia o batel, & elle lhe respõdeo que por razão natural era impossiuel deixar de ser perdido com mares tão grossos como aquelles, & que presuposto que Deos milagrosamente o quisesse saluar, nos ficaua ja mais de cinquenta legoas.
  238. [3400](Cap. 215) Passados algũs dias despois de a nao aquy estar surta, & os mercadores entenderem em fazerem suas fazendas, & estar tudo pacifico, & a mercancia corrente, desejando este seruo de Deos de effeituar em parte, o que naõ pudera em todo, tratou com hum mercador Chim dos honrados do porto, que se chamaua Chepocheca, que quando se fosse o quisesse leuar à cidade, & ainda que nisto ouue algũs inconuenientes de varios pareceres dos Portugueses, por verem que hia assi tão desatado, & sem cousa que pudesse dar autoridade ao que dissesse, todauia despois de bem praticada hũa cousa & outra, se assentou com este mercador por esta maneyra, que o padre lhe desse duzentos taeis, que saõ trezentos cruzados da nossa moeda, & que auia de yr daly da nao ate a cidade sempre cos olhos tapados porque se caso fosse que por elle ser estrangeyro, a justiça entendesse nelle, como estaua certo que auia de ser, & pondoo a tormento lhe dissessem que confessasse quem o aly trouxeraõ elle o não soubesse dizer, nem conhecesse quem o aly trouxera, porque se temia que se fosse descuberto lhe mãdassem por isso cortar a cabeça, o qual o padre aceitou com todos estes partidos, sem por diante receyo de cousa algũa, nem o espantarem os medos que todos geralmente lhe punhaõ, por estar entendido delle quão desejoso estaua de receber martyrio por Deos nosso Senhor.
  239. [3408](Cap. 216) Passados despois disto tres meses & cinco dias, estando jâ a nao de verga dalto para partir, os Portugueses se foraõ a terra, & mandarão abrir a coua em que fora enterrado o santo defunto, com tenção de lhe leuarem os ossos para Malaca, se estiuessem para isso, & acharãolhe o corpo todo inteyro sem corrupção nem falta algũa, tanto que nem na mortalha, nem na sobrepeliz que tinha vestida acharão desfeito nem nodoa, mas ambos tão limpos & tão aluos como se naquella hora os ensaboarão, & com hum cheyro suauissimo, o que em todos causou tamanha admiração que confundidos algũs co que vião por seus olhos, derão em sy muytas bofetadas pelo que antes tinhão dito, & dezião publicamente com muytas lagrimas, ò malauenturados daquelles que por comprazerem ao diabo quiseraõ ser ministros seus na anexação que se te fez em Malaca, sendo tu tão puro seruo de Deos como agora aquy vemos, & publicamente de ty confessamos, & malauenturados de nos que muytas vezes te negamos nossas esmollas entendendo quão falto estauas do necessario para sustentaçaõ da tua santa vida.
  240. [3426](Cap. 217) E logo atras nesta mesma ordẽ estauão mais outras dez ou doze embarcaçoẽs, de maneyra que quãdo chegou ao caiz iria acõpanhado de vinte embarcaçoẽs de remo, em que iriaõ cẽto & cinquenta Portugueses da China & de Malaca, gẽte toda muyto limpa & rica, & estes, como digo todos cõ tochas & cirios acesos, & os seus moços, que seriaõ mais de trezeẽtos, com vellas grãdes como brandoẽs, o qual autorizado & Christaõ aparato causaua muita deuação em todos os que o viaõ.
  241. [3467](Cap. 220) Despois de auer cinco dias que aquy eramos chegados, & estarmos sem agoa nem mantimento algum, porque tudo tinhamos alijado ao mar, prouue a nosso Senhor que vieraõ hũa menham ter com nosco tres naos de Portugueses que vinhão da Çunda, com a vinda das quais nos ouuemos por remidos em nossos trabalhos.
  242. [3472](Cap. 221) Como desta ilha de Champeiloo fomos ter â de Sanchaõ, & dahy a Lampacau, & dasse conta de dous casos desestrados que acontecerão na China a duas pouoaçoẽs de Portugueses.
  243. [3475](Cap. 221) Ao outro dia pela menham nos partimos desta ilha de Sanchaõ, & ao sol posto chegamos a outra ilha que estâ mais adiante seis legoas para o Norte chamada Lampacau, onde naquelle tempo os Portugueses fazião sua veniaga cos Chins, & ahy se fez sempre ate o anno de 1557. que os Mandarins de Cantaõ a requerimento dos mercadores da terra nos deraõ este porto de Macao onde agora se faz, no qual sendo antes ilha deserta, fizeraõ os nossos hũa nobre pouoaçaõ de casas de tres quatro mil cruzados, & com igreija matriz em que ha Vigayro & beneficiados, & tem capitão & ouuidor & officiais de justiça, & taõ confiados & seguros estão nella com cuydarem que he nossa, como se ella estiuera situada na mais segura parte de Portugal, mas quererâ nosso Senhor pela sua infinita bondade & misericordia que esta sua segurãça seja mais certa & de mais dura do que foy a de Liampoo, que foy outra de Portugueses de que atras já fiz larga mençaõ, auante desta duzentas legoas para o Norte, a qual pelo desmancho de hum Portuguez em muyto breue espaço de tempo foy de todo destruyda & posta por terra, na qual desauẽtura me eu achey presente, & nella ouue hũa inestimauel perda assi de gente como de fazenda, porque tinha esta pouoação tres mil vezinhos, de que os mil & duzentos eraõ Portugueses, & os mais gente Christam de diuersas naçoẽs, & segũdo se affirmou por dito de muytos que bem o sabião, passaua o trato dos Portugueses de tres contos douro, de que a mayor parte era em prata de Iapaõ que auia dous annos que se descubrira, & que se dobraua o dinheyro tres & quatro vezes em qualquer fazenda que para là se leuaua.
  244. [3480](Cap. 221) Auia aly hum homem hõrado & de boa geraçaõ, chamado Lançarote Pereyra, natural de Põte de Lima, este, dezião que dera hũs mil cruzados em ruyns fazendas fiados a huns Chins homẽs de pouco credito, os quais se lhe leuantaraõ com a fazenda, sem lhe mais darem o retorno della, nem elle ter mais nouas delles, pelo qual, querendose elle satisfazer desta perda nos que lhe não tinhaõ culpa, ajuntou para isso hũs quinze ou vinte Portugueses ociosos & de mà consciencia, & quiçà de pior siso, & deu hũa noite em hũa aldea daly duas legoas, que se dezia Xipatom, & roubou nella dez ou doze lauradores que ahy viuiaõ, & lhes tomou a todos as molheres & os filhos, com morte de treze pessoas sem razão, nem causa algũa justa que para isso tiuesse.
  245. [3481](Cap. 221) O rebate deste tamanho insulto se deu logo ao outro dia por toda aquella comarca, & os moradores della se foraõ queixar disto ao Chumbim da justiça, & tirandose deuassa do que passaua o escreueraõ por petição de clamor do pouo, a que elles chamão macalixau, ao Chaem do gouerno, que he o Visorrey daquelle reyno, o qual mandou logo hum Aitao, que he como Almirante entre nos, com hũa armada de trezentos juncos, & oitenta vancoẽs de remo, em que hião sessenta mil homẽs, que se fez prestes em dezassete dias, a qual armada dando hũa menham nesta desauenturada pouoaçaõ dos Portugueses, a cousa foy de maneyra que certifico em verdade que não acho em mim cabedal nem de engenho nem de palauras para contar por extẽso o que aly passou, imagineo o bom entendimento, somente direy como testemunha de vista que em menos de cinco horas que durou este horrendo & espantoso castigo da mão de Deos, & da potencia da sua diuina justiça, não ficou cousa a que se pudesse por nome, porque tudo ficou abrasado & posto por terra, com morte de doze mil pessoas Christãs, em que entraraõ oitocẽtos Portugueses, os quais foraõ todos queimados viuos em trinta & cinco naos, & quarenta & dous juncos, & em prata, pimẽta, sandalo, crauo, maça, noz, & outras muytas sortes de fazendas se disse que se perderaõ dous contos & meyo douro.
  246. [3485](Cap. 221) Logo dahy a dous annos, querendo os Portugueses tornar a fazer sua habitaçaõ em outro porto que se chamaua Chincheo no mesmo reyno da China cẽ legoas abaixo deste de Liãpoo, para terem nelle seus tratos & mercancias, os mercadores da terra pelo muyto proueito que disso lhes vinha, acabaraõ cos Mandarins, por peitas muyto grossas que por isso lhes deraõ, que dissimuladamente o consentissem.
  247. [3494](Cap. 221) E como isto foy causa de totalissimamẽte se nos secar tudo, a falta dos mantimentos veyo entre nós a ser tamanha, que o que antes se compraua por hum vintem, se não achaua despois por hũ cruzado, pelo que foy necessario yrse buscar por algũas aldeas que estauão ahy ao redor, sobre que ouue grandes desmãchos, donde naceo aleuantarse a terra toda contra nos com tamanho odio & furia, que logo dahy a dezasseis dias veyo hũa armada de cento & vinte juncos muyto grandes, a qual por nossos peccados nos tratou de tal maneyra que de treze naos que estauão no porto, nenhũa ficou que não fosse queimada, & de quinhentos Portugueses que na terra auia sós trinta escaparão sem cousa que valesse hum só real.
  248. [3501](Cap. 222) E neste tempo que aquy estiuemos não estiuerão ociosos o padre mestre Belchior, nem os da sua companhia, antes não deixarão sẽpre de fazer fruito nas almas, assi com a muyta frequentação que sempre ouue das confissoẽs, como com soltar dous Portugueses que auia cinco annos que estauão presos na cadea da cidade de Cantão, cuja soltura custou mais de dous mil & quinhentos cruzados, que se tirarão de esmolas pelos fieis Christãos.
  249. [3505](Cap. 222) E auendo os nossos por impossiuel ser isto verdade, se determinarão huns quatorze de sessenta que então ahy nos achamos de o yr ver, & logo o puseraõ por obra, os quais quando tornaraõ, affirmaraõ a noua por muyto certa, & se tirou disso hum estromento publico de quatorze testemunhas de vista todas contestes, & todos Portugueses, o qual estromento Francisco Toscano mandou a este reyno a el Rey dom Ioaõ o terceyro que santa gloria aja, por hum clerigo por nome Diogo Reinel, que foy hum dos quatorze que o viraõ, pelo qual caso se fizeraõ nesta cidade de Cantão em todo o pouo estranhos modos de penitencia, & ainda que eraõ Gentios, nos confundiraõ, a todos os que o vimos com sermos Christãos, porque no primeyro dia que a noua chegou, se deraõ âs duas horas despois do meyo dia pregoẽs por todas as ruas principais da cidade, que seis homẽs a cauallo cubertos de vestiduras muyto cõpridas de dò cõ assaz triste & lamẽtauel som lãçauão, dizẽdo, ò gẽtes miseraueis que cõtinuamente offendeis o Senhor, ouuy ouuy o triste caso de graue dor & sentimento que no bramido choroso de nossas vozes agora ouuireis.
  250. [3508](Cap. 222) E recolhendose logo todo o pouo a suas casas, a cidade esteue cinco dias taõ deserta que pessoa viua não aparecia por ella, de que todos os Portugueses que nos aly achamos andauamos como pasmados, porque ẽ nenhũa rua se via pessoa cõ quẽ se pudesse fallar.
  251. [3513](Cap. 222) Affirmouse tambẽ por geral dito de todos, que nestes tres dias em que isto acõteceo em Sansy, chouera sempre sangue na cidade do Pequim onde el Rey da China então residia, pela qual causa a mayor parte della se despejou, & elle fugio para o Nanquim, onde tambem se disse que mandara fazer muyto grãdes esmollas, & libertar infinidade de presos, no qual cõto permitio Deos que foraõ hũs cinco Portugueses que auia mais de vinte annos que estauão presos na cidade de Pocasser, os quais aquy em Cantão, onde vieraõ ter, nos cõtaraõ muyto grandes cousas, entre as quais nos affirmaraõ que passaraõ as esmollas que el Rey fez por este caso, de seiscẽtos mil cruzados, a fora tẽplos muyto sumptuosos que edificou para aplacar a ira de Deos, em que entrou hũ que se fez nesta cidade por nome Hifaticau, amor de Deos, casa muyto sumptuosa & de grande magestade.
  252. [3532](Cap. 223) Entrando então ellas para dentro de outra casa se detiueraõ hum pequeno espaço, & as que ficaraõ fora se desenfadaraõ entre tãto bẽ â nossa custa com muytas graças & zombarias de que todos estauamos bẽ corridos, ao menos os quatro, por serem mais noueis & não entenderem a lingoa, porque eu jâ em Tanixumaa tinha visto outra farça que se teue com Portugueses semelhante a esta, & por algũas vezes as tinha visto tambẽ noutras partes.
  253. [3544](Cap. 223) A qual cousa el Rey & a Raynha festejaraõ com muito riso, & nós todos cinco estauamos taõ corridos, que entendẽdoo el Rey nos pedio muytos perdoẽs dizẽdo, que porque a princesa sua filha visse quamanho bẽ elle queria aos Portugueses lhe dera aquelle pequeno de passatẽpo, de que nos somẽte como irmãos seus foramos participãtes.
  254. [3554](Cap. 224) Eu me torney logo para casa, & me fiz prestes de tudo o que conuinha, & tanto que foraõ as duas horas despois do meyo dia el Rey me mandou buscar pelo Quansio nafama capitão da cidade com outros quatro homẽs dos principais da corte, os quais acompanhados de muyta gente me leuaraõ ao paço, porem elles & eu cõ os quarenta Portugueses, todos hiamos a pé por ser assi seu custume, & todas as ruas por onde passamos, estauão muyto limpas & bem concertadas, & cõ tanta quantidade de gente, que os nautaroẽs, que eraõ porteyros cõ bastoẽs ferrados, tinhaõ assaz que fazer em nos fazerem o caminho.
  255. [3555](Cap. 224) As peças do presente leuauaõ tres Portugueses a cauallo, & hum pouco atras delles hião outros dous ginetes muyto fermosos com cubertas, & armas como de justa.
  256. [3558](Cap. 224) Chegado eu cos quarenta Portugueses que hião comigo ao balieu onde el Rey estaua, lhe fizemos todos as cerimonias & cortesias que em tal auto se lhe custumão fazer.
  257. [3566](Cap. 225) Recolhido eu para a casa onde pousaua dey cõta ao padre mestre Belchior do gasalhado cõ que el Rey me recebera, & de tudo o mais que passara cõ elle, & de quão aluoroçado estaua para o ver, pelo que me parecia bem, jâ que aly estauão todos os Portugueses juntos & vestidos de festa, que o deuia de yr logo ver, o que lhe a elle pareceo bem & aos outros padres que ahy estauão.
  258. [3567](Cap. 225) E aparelhandose de algũas cousas exteriores necessarias à reputação de sua pessoa, abalou da igreija acompanhado dos quarenta Portugueses todos muyto bem vestidos com seus colares & cadeas douro grossas a tiracolo, & quatro mininos orfaõs com lobas & chapeos de tafetá branco, com cruzes de seda nos peitos, & o irmaõ Ioaõ Fernandez para interprete do que se auia de fallar.

Portuguez 4(1), 9(1), 14(1), 16(1), 17(2), 19(2), 21(1), 22(2), 24(2), 46(1), 50(1), 59(1), 64(1), 66(1), 70(1), 91(1), 116(4), 127(2), 143(1), 144(1), 145(1), 146(2), 148(1), 166(2), 167(1), 176(8), 177(3), 179(1), 180(2), 181(1), 183(3), 191(1), 192(2), 193(1), 195(2), 205(1), 211(1), 218(1), 221(3), 224(1).

Nas orações: 38, 99, 150, 171, 190, 211, 212, 239, 253, 256, 277, 283, 558, 610, 722, 768, 797, 844, 1113, 1549, 1562, 1567, 1725, 1726, 1990, 1996, 2016, 2035, 2058, 2082, 2459, 2460, 2476, 2624, 2628, 2629, 2630, 2631, 2645, 2646, 2665, 2675, 2680, 2690, 2735, 2878, 2898, 2902, 2919, 2935, 2949, 3142, 3248, 3438, 3475, 3482, 3488, 3563.

  1. [38](Cap. 4) Chegando nos a Gotor hũa legoa abaixo do porto de Massuaa, fomos todos bem recebidos da gente da terra, & de hum Portuguez que ahy achamos, por nome Vasco Martins de Seixas natural da villa de Obidos, que por mandado de Anrique Barbosa auia hum mès que aly estaua, esperando por algum nauio de Portugueses, com hũa carta do mesmo Anrique Barbosa que deu aos Capitaẽs, em que lhe daua as nouas que tinha sabido dos Turcos, & lhe pidia que em todo caso se fossem ver alguns Portugueses com elle, porque importaua muyto ao seruiço de Deos & del Rey, & que elle os não podia yr buscar, porque estaua naquella fortaleza de Gileytor em guarda de princesa de Tigremahom Mãy do Preste com quarenta Portugueses que ahy tinha comsigo.
  2. [99](Cap. 9) Assentado isto assi & jurado, & feito disso hum assento em que os mais assinaraõ, o Capitão mòr se leuou mais para dentro do rio, distancia de dous tiros de falcão, & antes que surgisse chegou â sua fusta hũa almadia de terra, na qual vinha hum Bramene que falaua muyto bẽ Portuguez, o qual deu ao Capitão mòr hum recado da Raynha em que lhe mandaua pedir muyto, & requeria da parte do senhor Visorrey, que por nenhum caso elle pelejasse cos Turcos, porque tinha sabido por espias que sobre isso trazia, que estauão muyto fortes em hũa tranqueyra junto da fossa em que tinhaõ metida a sua Galè, pelo que lhe parecia que auia myster muyto mór poder que o que trouxera para tamanho feito, & que a Deos tomaua por testemunha da grãde dòr & sentimento que tinha pelo receyo em que estaua de lhe acõtecer algum desastre.
  3. [150](Cap. 14) E assi te prometo & juro com toda a firmeza de bom & leal, que meu Rey não tenha nunca outro Rey se não este grande Portuguez, que agora he senhor de Malaca.
  4. [171](Cap. 16) Logo ao outro dia partio el Rey deste lugar de Turbaõ para o Achem, que eraõ dezoito legoas, & leuaua em sua companhia quinze mil homẽs, de que sós os oito mil eraõ Batas, & os mais Menãcabos, Lusoẽs, Andraguires, Iambes, & Borneos, que os Principes destas naçoẽs lhe mandaraõ de socorro, & quarenta Alifantes, & doze carretas de artilharia miuda de falcoẽs & berços, em que entrauão dous camellos, & hũa meya espera de brõzo com as armas de França, que se ouue de hũa nao que no anno de 1526. gouernando o estado da India Lopo Vaz de Sampayo, foy aly ter com Franceses, de que era Capitão & Piloto hum Portuguez natural de villa de Conde, que se chamaua o Rosado.
  5. [190](Cap. 17) E chegando daly a cinco dias a Panaajù, despidio toda a gente assi natural como estrangeyra, & se foy pelo rio acima em hũa lanchara pequena, sem querer leuar comsigo mais que dous ou tres homẽs, & foy ter a hum lugar que se dizia Pachissarù, no qual esteue encerrado catorze dias, a modo de nouenas, em hum pagode de hum idolo que se chamaua Guinasseroo, deos da tristeza, & tornado para Panaajù, me mãdou chamar, & ao Mouro que feytorizaua a fazenda de Pero de Faria, ao qual esteue miudamente perguntando pela venda della, & se lhe ficauaõ deuendo algũa cousa, porque lho mandaria logo pagar, a que o Mouro & eu respondemos que com as merces & fauores de sua alteza tudo se nos fizera muyto bem feito, & que os mercadores tinhão ja pago tudo sem ficarẽ deuẽdo nada, & que o Capitão lhe seruiria aquella merce cõ muyto cedo o vingar daquelle inimigo Achem, & lhe restituyr as terras que lhe elle tinha tomado: ao que el Rey, despois de estar hum pouco pẽsatiuo co que me ouuira, respondeo, Ah Portuguez, Portuguez, rogote que não faças de mim tão necio, ja que queres que te responda, que cuyde que quẽ em trinta annos se não pode vingar a sy, me possa socorrer a mim, porque como o Rey de vos outros, & os seus Gouernadores, não castigaraõ este inimigo, quãdo vos tomou a fortaleza de Paacem, & a Galè que hia para Maluco, & as tres naos em Quedà, & o Galeaõ de Malaca em tempo de Garcia de Sà, & as quatro fustas despois em Salangor, com as duas naos que vinhão de Bẽgala, & o junco, & o nauio de Lopo chanoca, & outras muytas embarcaçoẽs que agora me não vem à memoria, em que me affirmaraõ que matara mais de mil de vosoutros, a fora a presa riquissima que tomou nellas, logo foy para elle me destruyr a mim, & eu ter muyto poucas esperanças em vossas palauras, bastame ficar como fico, cõ tres filhos mortos, & a mayor parte do meu reyno tomada, & vos na vossa Malaca não muyto seguros.
  6. [211](Cap. 19) não ajas medo de cousa nenhũa, assentate & descansaràs, que bẽ vejo que estàs afrontado, & despois que estiueres mais em ty te direy o porque mãdey matar esse Mouro que trouxeste comtigo, porque se fora Portuguez, ou Christão, eu te juro em minha ley que o não fizera, inda que me matara hũ filho; então me mãdou trazer hũa panella com agoa, de que bebi hũa grande quantidade, & me mandou tambem auanar com hum auano, em que se gastou mais de hũa grande hora.
  7. [212](Cap. 19) E conhecendo elle então que estaua eu ja fora do sobresalto, & que podia responder a proposito, me disse, muyto bem sey Portuguez que ja te diriaõ como os dias passados matara eu meu pay, o qual fiz porque sabia que me queria elle matar a mim, por mexericos que homẽs maos lhe fizeraõ, certificandolhe que minha mãy era prenhe de mim, cousa que eu nunca imaginey; mas ja que com tanta sem razão elle tinha crido isto, & por isso tinha determinado de me dar a morte, quislha eu dar primeiro a elle, & sabe Deos quanto contra minha vontade, porque sempre lhe fuy muyto bom filho, em tãto, que por minha mãy não ficar como ficão outras muytas viuuas, pobres, & desemparadas, a tomey por molher, & engeitey outras muytas com que dantes fuy cometido, assi em Patane, como em Berdio, Tanauçarim, Siaca, Iambè, & Andraguirè, irmãs & filhas de Reys, com que me puderaõ dar muyto dote.
  8. [239](Cap. 21) E ja que nos ategora nunca quebramos esta menagẽ, qual serâ senhores a rezão, porque não cumprireis com esta obrigaçaõ, & verdade do vosso Rey, sabendo que por seu respeito nos toma este inimigo Achem a nossa terra, dando por rezão que he o meu Rey taõ Portuguez, & tão Christão como se nascera em Portugal?
  9. [253](Cap. 22) E despois de me pergũtar algũas cousas que quiz saber, assi da India como deste reyno, encomendando aos seus a obra que hia fazendo da fortificação da tranqueira, em que todos cõ muyto feruor andauão occupados, me tomou pela mão, & assi a pê, com seis ou sete moços fidalgos dos que aly tinha comsigo, sem outra mais companhia, me leuou à cidade, que estaria daly quasi hum quarto de legoa, onde me banqueteou em sua casa, com mostras de muyto gasalhado, & me mostrou sua molher, que he cousa que naquellas partes muyto raramente se custuma, & me disse com muytas lagrimas, vès aqui Portuguez porque sinto a vinda destes inimigos, que se não fora verme eu preso desta necessidade, & tão penhorado pelo que a honra nisto me obriga que faça, eu te juro a ley de bom Mouro que o que elle agora determina, de me fazer, eu lho fizera primeyro, sem meter nisso mais cabedal que sós os meus com minha pessoa, porque muytos dias ha que sey quem he este falso Achem, & a quanto se estende seu poder, mas val lhe que tem muyto ouro com que encobre a fraqueza dos seus, aquirindo com elle muyta gente estrangeira de que se ajuda.
  10. [256](Cap. 22) E dandome então conta com assaz de tristeza, como quem desabafaua comigo do grande trabalho em que estaua, & da grandissima afronta em que se via, me disse que tinha ja cinco mil homẽs Aarûs, sem mais socorro doutra gente nenhũa, com quarenta peças de artilharia miuda, antre falcoẽs & berços, em que entraua hũa meya espera de metal, que antigamente lhe vendera hũ Portuguez que fora almoxarife da fortaleza de Paacem, por nome Antonio Garcia, o qual despois Iorge de Albuquerque mandou esquartejar em Malaca, por se cartear com el Rey de Bintão num certo modo de traição que cometia.
  11. [277](Cap. 24) A que hũ que parecia ser o principal delles respondeo, não estais vós de maneyra, segundo vejo em vossas disposiçoẽs, que possais merecer o que nos comerdes, pelo que vos seria bom, se tendes algum dinheyro escondido dardesnolo, & então vsaremos com vosco dessa proximidade que vossas lagrimas nos pedem, porque doutra maneyra não tendes remedio, E fazendo com isto mostra de se quererem tornar, lhe tornamos a pedir chorãdo que nos tomassem por seus catiuos, & nos fossem vẽder onde quisessem, porque por mim que era Portuguez, & muyto parente do Capitaõ de Malaca lhe darião em toda a parte o que pedisse: ao que elles responderaõ, somos contentes cõ cõdição que se assi não for como dizeis, vos auemos de matar cõ açoutes, & atados de pês & de maõs, vos auemos de lançar viuos ao mar, & nos lhe dissemos que assi o fizessem.
  12. [283](Cap. 24) Este vendome jazer assi despido na area, me perguntou se era Portuguez, & que lhe não negasse a verdade, a que eu respondy que sy, & de parẽtes muyto ricos, & que por mim lhe poderião dar quanto pedisse, se me leuasse a Malaca, porque era sobrinho do Capitaõ da fortaleza, filho de hũa sua irmam; a que elle respondeo: pois, se es esse que dizes, que peccado foy o teu por onde vieste a tão triste estado como esse em que te vejo?
  13. [558](Cap. 46) E fazẽdose logo ressenha do que nos custara esta vitoria, se achou hum Portuguez morto, & cinco moços, & noue marinheyros, a fora os feridos; & dos inimigos forão mortos oitẽta, & quasi outros tantos catiuos.
  14. [610](Cap. 50) E despois que surgiraõ obra de hum quarto de legoa adiãte de nòs, quiz Antonio de Faria saber o que era, & mandou là hum balão bem esquipado, o qual chegando a bordo, forão tantas as pedradas sobre elle, que os que nelle hião correraõ muyto risco de serem todos mortos, & com isto se tornou a voltar cos marinheyros assaz escalaurados, & o Portuguez que nelle hia com duas pedradas muyto grandes.
  15. [722](Cap. 59) E estes tambem foraõ feitos em quartos pelos nossos moços, & lançados ao mar, em companhia do perro do Coja Acem seu Capitão & Caciz mayor del Rey de Bintão, & derramador & bebedor do sangue Portuguez, como se elle intitulaua nos começos das suas cartas, & publicamẽte pregaua a todos os Mouros, por respeito do qual, & pelas superstiçoẽs da sua maldita seita era delles muyto venerado.
  16. [768](Cap. 64) Porem antes que vá mais por diante quero dizer sòs dous pontos do que hia na carta, que foraõ causa de este negocio se danar de todo, dos quais hum foy dizerlhe Antonio de Faria que elle era hum mercador estrangeyro Portuguez de nação, que hia de veniaga para o porto de Liãpoo, onde auia muytos mercadores estantes na terra com suas fazendas que pagauão seus direytos custumados, sem nũca fazerem nella roubos nem males como elle dezia.
  17. [797](Cap. 66) Sendo Antonio de Faria embarcado com toda a gente, como era ja tarde, não se entendeo por então em mais que em curar os feridos, que foraõ cinquenta, de que oito eraõ Portugueses, & os mais escrauos & marinheyros, & em mandar enterrar os mortos que foraõ noue, em que entrou hum Portuguez.
  18. [844](Cap. 70) E com esta ordem duraria este banquete perto de duas horas, nas quais ouue tambem seus entremeses de autos hum Chim & outro Portuguez.
  19. [1113](Cap. 91) aque nós todos em o vendo, pondo os joelhos em terra co deuido acatamẽto, & algũs com as lagrimas nos olhos respondemos que sy, a que ella dando hum grito, & leuantando as mãos para o Ceo disse alto, Padre nosso que estas nos Ceos, santificado seja o teu nome, & isto disseo na lingoagem Portuguesa, & tornando logo Chim, como que não sabia mais do Portuguez que estas palauras, nos pedio muyto que lhe dissessemos se eramos Christaõs, aque todos respondemos que sy, & tomãdolhe todos juntos o braço em que tinha a Cruz a beijamos, & dissemos tudo o que ella deixara por dizer da oração do Padre nosso, porque soubesse que lhe falauamos verdade.
  20. [1549](Cap. 116) Como a caso achey nesta cidade hũ Portuguez, & o que com elle passamos.
  21. [1562](Cap. 116) Quãdo eu ouuy hũa cousa taõ noua, & tão lõge do que eu esperaua, fiquey tão sobressaltado, que afastandome rijo atras mais que pasmado, lhe disse alto: Eu te esconjuro da parte de nosso Senhor Iesu Christo que me digas quem és, a que elle cõ muytas mais lagrimas respõdeo, sou, irmão meu, hum pobre Christaõ Portuguez, por nome Vasco Caluo, irmão de Diogo Caluo que foy Capitão da nao de dom Nuno Manoel, natural de Alcouchete, que agora faz vinte & sete annos que nesta terra fuy catiuo com Tomé Pirez, que Lopo Soarez mandou por embaixador a este Rey Chim, que despois acabou desestradamente por hũ desarranjo de hum Capitão Portuguez.
  22. [1567](Cap. 116) E despois de ser passada hũa grande parte da noite, nós assentamos â mesa, na qual elle mesmo nos deu a todos agoa âs mãos, & todo o tempo que durou a mesa não ouue nenhum de nós que pudesse ter os olhos enxutos, a qual acabada, se leuantou sua molher com muyta cortesia, & como tinha por custume dar Christammente graças a Deos em segredo, por algum receyo que tinha dos Gentios ou de parentes honrados que tinha na terra, tirou hũa chaue que trazia no braço, & abrio hũa portinha de hum oratorio muyto bem concertado, onde estaua hum altar com hũa Cruz de prata, & dous castiçaes & hũa alampada do mesmo, & pondose ella & os filhos todos quatro em joelhos com as maõs aleuantadas disseraõ estas palauras pelo Portuguez, & bem pronũciado.
  23. [1725](Cap. 127) Hum dos da nossa companhia por nome Vicẽte Morosa, quando estes ouuintes em certos passos dezião tayximida, dezia tambem, tal seja tua vida; & isto com tanta graça nos meneos, & com hum sembrante tão sesudo, & sem nenhũ mouimento de riso, que não auia nenhum de quantos estauão no auditorio que se pudesse ter ao riso, & elle só não fazia de sy nenhũa mudança, mas ficaua sempre muyto seguro, fingindo que choraua com deuação, & sempre cos olhos postos no Talapicor, o qual quando olhou para elle não se pode ter que não fizesse tambẽ o que os outros fazião, de maneyra que o fim da pregação, assi no que pregaua como nos ouuintes se soltou num riso com tanto gosto, que até a Vanganarau com todas as menigrepas da religiaõ, não auia cousa que as pudesse tornar a meter na autoridade com que primeyro estauão, tendo todos para sy que o Portuguez fazia aquillo com deuação & com todo seu siso, porque na verdade se entenderão que o fazia zombando ou por desprezo, quiçâ que fora muyto bem castigado.
  24. [1726](Cap. 127) Apos isto se recolheo o Talapicor para o pagode onde pousaua, acompanhado de toda a gente honrada & dos embaixadores, & de caminho foy gabando a deuação do Portuguez, dizendo, até estes, ainda que bestiais, & sem conhecimento da nossa verdade, não deixão de sentir que he cousa santa o que me ouuirão, a que todos responderaõ que era assi sem falta nenhũa.
  25. [1990](Cap. 143) São muyto comedores, & dados às delicias da carne, pouco inclinados às armas, & muyto faltos dellas, por onde parece que será muyto facil conquistallos, em tanto que no anno de 1556. chegou a MalacaPortuguez por nome Pero Gomez Dalmeyda, criado do mestre de Santiago, com hum grande presente & cartas do Nautoquim principe da ilha Tanixumaa para el Rey dom Ioaõ o terceyro que santa gloria aja, & toda a sustancia do seu requerimento vinha fundada em lhe pedir quinhentos homẽs para cõ elles & com a sua gente conquistar esta ilha Lequia, & ficarlhe por isso tributario em cinco mil quintaes de cobre, & mil de latão em cada hum anno, a qual embaixada não ouue effeito por vir este recado a este reyno no Galeão em que se perdeo Manoel de Sousa de Sepulueda.
  26. [1996](Cap. 144) E daquy me embarquey para Malaca em hũa nao de hum Portuguez chamado Tristão de Gaa, com tenção de tornar de lá a tẽtar de nouo a fortuna que tantas vezes me fora contraria, como se tem visto do que atras deixo cõtado.
  27. [2016](Cap. 145) O Necodá me pedio então muyto que quisesse subir acima, porque neste tempo jazia eu deitado embaixo na camara, mal desposto, o que eu fiz logo por lhe fazer a vontade: & aparecendo encima no conuès, chamey pelos que vinhaõ no paraoo, os quais tãto que me virão & conheceraõ que era Portuguez, derão hũa grita, & tangendo as palmas a modo de alegria, entrarão dentro no junco, & hum delles que no aspeito parecia de mais autoridade me disse, antes, senhor, que peça licença para falar, te rogo que vejas essa carta para por ella me dares credito ao que disser, & saibas que sou esse que ella diz: & com isto me meteo hũa carta na mão emburilhada num trapo bẽ çujo, a qual eu tomey & vy que dezia desta maneyra.
  28. [2035](Cap. 146) Auendo ja quasi oito meses que estes nossos cem homens andando nesta costa embarcados em quatro fustas muyto bem concertadas, em que tinhão tomadas vinte & tres naos de presas muyto ricas, & outros muytos nauios pequenos, as gentes que custumauão a nauegar por aquella costa andauão ja tão assombradas do nome Portuguez, que de todo deixaraõ o comercio de suas viagẽs, & vararaõ os seus nauios em terra, por onde as alfandegas destes portos de Tanauçarim, Iũçalão, Merguim, Vagaruu, & Tauay perdião muyto dos seus rendimentos, pelo que foy forçado a estes pouos darem cõta disso ao Emperador do Sornau Rey de Sião, que he senhor supremo de toda esta terra, paraque prouesse neste mal de que todos geralmente se queixauão, o qual proueo logo da cidade de Odiaa onde então estaua com muyta presteza, mandando vir da frontaria dos Lauhos hum seu capitão Turco por nome Heredim Mafamede, o qual no anno de 1538. viera de Suez na armada de Soleimão Baxà Visorrey do Cayro, quando o graõ Turco o mandou sobre a India, & desgarrando este em hũa galé do corpo da armada, veyo ter a esta costa de Tanauçarim, onde aceitou partido deste Sornau Rey de Sião, & o seruio de fronteyro mòr na arraya do reyno dos Lauhos, com doze mil cruzados de soldo por anno.
  29. [2058](Cap. 146) E esta gloriosa vitoria que nosso Senhor deu aos nossos foy no mes de Setembro do anno de 1544. na vespera & dia do Arcanjo Saõ Miguel, com a qual o nome Portuguez ficou tão celebrado & tão temido por toda esta costa que em mais de tres annos se não falou noutra cousa.
  30. [2082](Cap. 148) Esforçado & leal capitão dos Portugueses por merce do grande Rey do cabo do mũdo, leão forte, & de bramido espantoso, com coroa de magestade na casa do Sol, eu o malafortunado Chaubainha principe que fuy, & ja não sou desta mal afortunada & catiua cidade, te faço saber por palauras ditas da minha boca na firmeza fiel de minha verdade, que eu me rendo desta hora para sempre por vassallo & subdito do grande Rey Portuguez, senhor soberano de meus filhos & meu, com reconhecença de parias, & de tributo rico qual ordenar a sua vontade, pelo que te requeyro da sua parte que tanto que Paulo de Seixas te dér esta minha carta, sem fazeres nenhũa detença te venhas logo com essas naos por junto do baluarte do caez da varella, onde me acharàs em pé esperãdo por ty para logo sem mais outro conselho me entregar em tua verdade com todo o tisouro que tenho comigo de pedraria & ouro, & da ametade delle faço liuremente seruiço a el Rey de Portugal, com tanto que me conceda licença que â custa do que me fica, faça no seu reyno ou nas fortalezas da India dous mil Portugueses a que prometo de dar grossos soldos, para com elles me restituyr no que agora me he forçado largar por minha grande desauentara.
  31. [2459](Cap. 166) E porque num banquete destes em que todos os noue nos achamos co Embaixador, hũ dos nossos por nome Frãcisco Temudo, lhes fez ventagem no beber, quasi injuriados disto, & auendoo por muyto grãde afronta, fizerão o banquete mais comprido, para restaurarẽ sua honra, porem o Portuguez se deu tal manha cõ vinte delles que então estauão â mesa, que todos ficarão deitados à costa, & elle ficou muyto inteyro.
  32. [2460](Cap. 166) E despois que tornarão em seu acordo, o Sapitou que era o capitão delles, em cuja casa se dera o banquete, mandou chamar todos os seus, que serião de trezẽtos homẽs para cima, & põdo o Portuguez, muyto em que lhe pês encima de hũ elifante, o leuarão por toda a cidade acõpanhado de infinita gẽte, cõ muytos tãgeres de trõbetas, & atãbores, & de outros instrumẽtos, & o capitão, & o Embaixador, & nós cõ todos os Bramaas detras delle a pè cõ ramos nas mãos, & dous homẽs a cauallo que em vozes muyto altas hião dizendo, louuay gẽtes cõ alegria os rayos que procedẽ do meyo do sol, que he o deos que nos cria os nossos arrozes, por vos chegar a tẽpo que visseis em vossa terra hũ homẽ tão santo que bebendo mais que quantos naceraõ no mundo, derrubou as principais vinte cabeças da nossa quadrilha, para sua fama ser augmentada em todos os dias, a que toda a turbamulta de que hia acompanhado daua hũa tamanha grita que metia medo.
  33. [2476](Cap. 167) Os nossos puseraõ logo cerco á fortaleza, & no primeyro assalto que lhe derão a entrarão com morte de algũs Bramaas, & de hum só Portuguez, mas muytos ficarão feridos de frechadas, de que em poucos dias foraõ saõs sem perigo nem aleijão de nenhum delles; & entrada a fortaleza, toda a gente della foy metida á espada sem se dar vida mais que ao ladraõ, & a cento & vinte homẽs de sua companhia, os quais trouxeraõ viuos ao Rey do Bramaa, o qual na cidade de Pegû mandou a todos lãçar aos elifantes, que em pouco espaço os esborracharaõ & fizeraõ em muytos pedaços.
  34. [2624](Cap. 176) Como a caso se tomou aquy hum Portuguez Gẽtio, & da conta que nos elle deu de sy.
  35. [2628](Cap. 176) Estes que elle mandou para este effeito, vierão aquella mesma noite ao arrayal jâ quasi menham, & trouxerão noue homens presos, entre os quais vinha hum Portuguez; & despois que os oito foraõ espedaçados com tratos, prepararaõ o Portuguez (que acertou a ser o derradeyro) para lhe fazerem tambem o mesmo, o qual parecendolhe que pela confissaõ de quem era poderia ser liure, ao primeyro trato disse gritando que era Portuguez, o qual até então não sabia nada de nòs, nem nòs o conheciamos por esse.
  36. [2629](Cap. 176) O nosso Rey da Çunda quando isto ouuio fez cessar os tratos, & nos mãdou logo chamar para ver se era verdade o que aquelle homẽ dezia, & seis de nòs os que menos feridos estauamos, fomos logo ter cõ elle â sua estãcia, onde chegamos cõ assaz de afrõta & de trabalho, & vẽdo o homẽ, nos pareceo â primeyra vista que era Portuguez, & prostrandonos todos aos peis del Rey, lhe pedimos que nos quisesse dar aquelle homẽ, pondolhe diãte as razoẽs que auia para nos fazer aquella merce, pois era Portuguez como nós, & elle nolo cõcedeo leuemẽte, pelo que de nouo nos prostramos todos por terra, & lhe beijamos os peis.
  37. [2630](Cap. 176) Daly trouxemos este homẽ cõ nosco ao lugar onde os nossos cõpanheyros jazião feridos, & lhe preguntamos se na verdade era Portuguez, porque tal vinha o triste que nẽ pela falla o podiamos bem conhecer.
  38. [2631](Cap. 176) E elle despois que de todo acabou de entrar em sy, chorando muyta quantidade de lagrimas nos disse: Eu senhores & irmãos meus, sou Christão, inda que no trajo volo não pareça, & Portuguez de pay & mãy, natural de Penamacor, & chamaõme Nuno Rodriguez Taborda, & vim do reyno na armada do Marichal no anno de 1513. na nao S. Ioaõ, de que era capitão Ruy Diaz Pereyra, & por eu ser hum homẽ hõrado, & que de mim dey sempre mostras disso, Afonso d’Albuquerque que Deos tenha na gloria me fez merce da capitania de hũ bargãtim de quatro que inda sómente auia na India naquelle tẽpo, & me achey cõ elle na tomada de Goa, & de Malaca, & lhe ajudey a fazer Calecut, & Ormuz, & me achey presẽte em todos os feitos hõrosos que se fizersõ assi em seu tẽpo, como no de Lopo Soarez, & no de Diogo Lopez de Siqueyra, & dos outros gouernadores ate dõ Anrique de Meneses, que socedeo por morte do Visorrey dõ Vasco da Gama, que no principio da sua gouernação proueo a Frãcisco de Sá de hũa armada de doze vellas, em que leuaua 300. homẽs para fazer fortaleza em Çunda, pelo receyo que então se tinha dos Castelhanos que naquelle tẽpo cõtinuauão Maluco pela noua viagem que o Magalhẽs descubrira, na qual armada eu vim por capitão em hum bargantim que se dezia S. Iorge com vinte & seis homẽs muyto esforçados, que partimos da barra de Bintão quando Pero Mascarenhas o destruyo, & sendo tanto auante como a ilha de Lingua, nos deu hũ tempo tão forte que não o podẽdo payrar, nos foy forçado arribarmos â Iaoa, onde dos sete nauios de remo que eramos se perderaõ os seys, dos quais foy hũ o meu por meus peccados, porque vim dar â costa aquy nesta terra em que agora estamos, ha ja vinte & tres annos, sem de todos os que vinhamos no bargantim escaparem mais que sós très companheyros, dos quais eu só agora sou viuo, & prouuera a Deos nosso Senhor que antes fora morto, porque sẽdo eu por muytas vezes cometido por estes Gẽtios que quisesse seguir suas opinioẽs, o não quiz fazer muyto tẽpo; mas como a carne he fraca, & a fome era grãde, & a pobreza muyto mayor, & a esperãça da liberdade era perdida, a distancia do mesmo tẽpo, & meus peccados foraõ causa de cõdecender a seus rogos, por onde o pay deste Rey me fauoreceo sẽpre, & porque eu ontẽ fuy chamado de hũ lugar em que viuia para vir curar dous homẽs nobres dos principais desta terra, quiz N. Senhor que me tomassem estes perros, para o eu ficar sendo menos, pelo que N. Señor seja bẽdito para todo sẽpre.
  39. [2645](Cap. 177) E consultando todos entre si no milhor talho que se podia dar a isto, vieraõ em fim a se resoluer no que hũ dos nossos Portugueses lhe acõselhou, o qual cõselho foy de tãto proueito ao Portuguez que o deu, que lhe mõtou em mais de dez mil cruzados que os senhores aly logo lhe derão de esmolla pelo seruiço que então fizera ao defunto, & o Portuguez não disse mais senão que o metessẽ em hũa arca cheya de canfora & de cal, & o enterrassem em hũ junco grande que fosse cheyo de terra.
  40. [2646](Cap. 177) E ainda que a cousa era tão facil, foy boa ventura do Portuguez parecerlhes a elles bem.
  41. [2665](Cap. 179) Com isto nos fomos logo ao porto de Banta, onde nos detiuemos doze dias acabando de nos auiar para fazermos nossa viagem, & nos partimos para a China em cõpanhia de outros quatro nauios que para la hiaõ, & leuamos com nosco o Ioaõ Rodriguez, que era o Portuguez Gentio de que atras fiz menção que achamos em Passaruão, o qual era Bramene de hum pagode por nome Quiay Nacorel, & elle se chamaua Guaxitau facalem, que quer dizer, conselho de santo.
  42. [2675](Cap. 180) Desta maneyra nauegamos quatro dias, sem em todos elles comermos cousa algũa, & quando veyo ao quinto pela menhã, forçounos a necessidade a comermos de hũ cafre que nos morreo, co qual nos sustentamos mais cinco dias, que eraõ noue da nossa viagem, & em outros quatro dias que nos durou inda mais este trabalho, não comemos outra cousa senão os limos que achamos na bagugem da agoa, porque determinamos de nos deixarmos antes morrer, que comermos de nenhum Portuguez de quatro que nos morrerão.
  43. [2680](Cap. 180) E como esta nação Iaoa he grandissimamente cobiçosa, como lhe tratamos de seu interesse, conhecendo tambem em nós a nossa miseria & desesperação, nos foraõ dando de sy mais algũa cousa, com outras palauras ja milhor concertadas, mais fauoraueis, & de mais esperança para nòs de nos fazerem o que lhe pediamos, porem isto foy até que tomaraõ a embarcaçaõ que tinhão deixado, porque tanto que se virão dentro nella, se puseraõ de largo, & dando mostras de se quererem partir sem nos tomarem, nos disseraõ que para elles serem certos de ser verdade o que lhe deziamos, era necessario que primeyro que tudo lhe entregassemos as armas que tinhamos, porque doutra maneyra nos não auião de tomar inda que nos vissem comer dos lioẽs, pelo que constrangidos da estrema necessidade em que nos viamos, & da desesperaçaõ de termos outro nenhum remedio, nos foy forçado fazerlhe a vontade em tudo quanto quiseraõ; & chegandose cõ a barcaça mais hum pouco a nós, nos disseraõ que hum & hum nos botassemos a nado, pois não tinhão manchua que nos fosse tomar, o que tãmbẽ determinamos de fazer, & dous moços & hum Portuguez se lançaraõ logo a nado para pegarem de hũa corda que nos tinhão lançado por popa da barcaça, mas antes que chegassem a ella foraõ comidos de tres lagartos muyto grãdes, sem de todos tres aparecer mais que somente o sangue, de que todo o rio ficou tinto, do qual successo os oito que estauamos à borda do rio ficamos tão pasmados de medo, que por hum grande espaço nenhuna de nòs tornou em seu acordo, de que os perros não ouuerão nenhum dó de nòs, mas antes batendo as palmas, dezião gritando com grandes risadas, bemauenturados aquelles tres que sem dor acabarão seus dias.
  44. [2690](Cap. 181) E posta em ordenança toda esta copia de gente & elifantes pelos mestres do campo que eraõ dous Turcos & hum Portuguez por nome Domingos de Seixas, seguio seu caminho para Quitiruão, onde chegou antes que o sol saisse, & como neste tempo os inimigos estauão ja prestes, & sabião por suas espias o poder & determinação que trazia este Rey de Sião, o esperaraõ no campo confiados nos quarenta mil de cauallo que tinhaõ: & tanto que ouueraõ vista delle, moueraõ fechados em doze batalhas, de quinze mil homẽs cada hũa, todos muyto luzidos & bem concertados, & dando logo a sua dianteyra em que vinhaõ os quarenta mil cauallos, na dianteyra del Rey de Sião, em que vinhaõ sessenta mil de pé, em menos de hum quarto de hora a desbaratou com morte de tres principes que nella hião.
  45. [2735](Cap. 183) Deos te perdoe tua cubiça, & a mym o pouco castigo que te dey por ella; & logo daly sem esperar mais hum momento mandou a casa do morto, & lhe trouxeraõ as cinco mil turmas que tinha tomado de peita, & as mandou perante sy repartir por todos aquelles velhos & doentes & pobres que o Raudiuaa trouxera que seriaõ mais de tres mil, & o dinheyro das cinco mil turmas montaua sessenta mil cruzados da nossa moeda, & os mandou para suas casas, encomendandolhes que lhe rogassem a Deos pela vida; & aos escusos que peitaraõ as cinco mil turmas, mandou vestir como molheres, & os degradou para hũa ilha que se chamaua Pullo catão, & lhes mandou tomar as fazendas como a fracos, para as repartir pelos que milhor pelejassem naquella guerra; & porque vio que hum Portuguez de cento & sessenta que então leuou comsigo, ficara hum pouco mais atras num cometimento que os nossos fizeraõ, em que ganharaõ a principal força que os inimigos tinhão tomada na cidade de Lantor, lhe mandou que se tornasse para Siaõ, pois não era como os outros que com elle ficauão, & que em quanto ahy estiuesse não saisse fora de casa, nem se chamasse mais Portuguez, so pena de lhe mandar por isso rapar a barba como aos caualeyros escusos de Banchaa, pois na couardia era tal como elles, & a todos os mais que, como disse, eraõ cẽto & sessenta, pelo honroso feito que lhes vio fazer mandou dobrar o soldo tres vezes, & quitar os direytos de suas fazendas, & lhes deu licença que pudessem em qualquer lugar do seu reyno fazer igrejas em que o nome do Deos Portuguez fosse adorado, porque claro estaua que era muyto milhor que todos os outros.
  46. [2878](Cap. 191) E perdoesseme não contar por extenso as particularidades que ouue neste feyo caso, porque o faço por honra do nome Portuguez, basta que a moça se afogou com hum cordão que trazia cingido antes que o sensual Galego a pudesse ter comsigo, de que elle disse despois algũas vezes em pratica, que mais lhe pesara de a não conuersar do que se arrependera de a tomar.
  47. [2898](Cap. 192) E chegando com grande affliçaõ â vista de hum pagode onde el Rey o mandaua leuar, dizem que quando vio tanta gente que pasmou, & despois que esteue assi hum pouco suspenso, olhando para hum Portuguez, que lhe consintiraõ que fosse com elle para o animar & esforçar na Fè lhe disse: Iesu, todos estes me accusaraõ diante del Rey?
  48. [2902](Cap. 192) Aquy pos Diogo Soarez os joelhos no chão, & os olhos no Ceo, & cõ muytas lagrimas disse: Senhor Iesu Christo pelas dores da tua sagrada paixão te peço que permittas meu Deos por quem és, que na accusação destes cẽ mil caens esfaimados se satisfaça em mim o castigo da tua diuina justiça, porque se não perca o muito que na saluaçaõ de minha alma de tua parte puseste sem to eu merecer; & subindo pelas escadas do terreyro acima me affirmou este Portuguez que hia cõ elle que a cada de grao beijaua o chão & nomeaua o nome de Iesu tres vezes.
  49. [2919](Cap. 193) E determinado neste parecer, se fez logo prestes para o pòr por obra, & dahy a dous dias hũa antemenham sahio por cinco portas com oitenta mil homẽs que inda então tinha cõsigo, & arremetendo aos inimigos com grande furia, & grandes estrondos de vozes & gritas, elles, que não estauão descuydados os vieraõ receber cõ muyto esforço, & entre todos se trauou hũa briga taõ cruel, & pelejada com tanta vontade, que em espaço de pouco mais de hora & meya que a mayor força della durou, morrerão de ambas as partes passante de quarenta mil homẽs, no fim do qual tẽpo o Xemim de Çatão nouo Rey foy derrubado do elifante em que andaua de hũa arcabuzada que lhe deu hum Portuguez por nome Gonçalo Neto natural de Setuuel, pela qual causa toda a mais gente se acabou de render, & a cidade se entregou a partido de lhe ficarem a todos saluas as vidas & as fazendas; & o Xemindoo entrou logo dentro nella, & no mesmo dia se coroou por Rey de Péguu na varella grande, hum sabado vinte & tres dias de Feuereyro do anno de 1551. E ao Gonçalo Neto pelo que fizera mandou dar vinte biças douro que saõ dez mil cruzados, & aos mais Portugueses, que eraõ oitenta, deu cinco mil cruzados, & lhes fez muytas honras, & deu muytas liberdades na terra, & lhes quitou por tres annos todos os direytos de suas fazendas, que despois se lhes guardou muyto inteiramente.
  50. [2935](Cap. 195) E despois que os soldados ficaraõ nesta parte bem satisfeitos, o nouo Rey deste misero reyno abalou daly do lugar daquella vitoria para a cidade Pégù que estaua daly pouco mais de tres legoas, & não querẽdo entrar nella aquelle mesmo dia por alguns respeitos que aquy se declararaõ, se alojou á vista della, em distancia de pouco mais de meya legoa, em hũ campo que se dezia Sunday patir, onde despois de alojado proueo na guarda das vinte & quatro portas, mandando pòr a cada hũa dellas hum capitão Bramas com quinhentos de cauallo, aquy se deteue cinco dias sem acabar de se resoluer em entrar na cidade, pelo receyo que tinha do saco que os estrãgeyros lhe requerião, & a que lhe elle estaua obrigado por hum concerto que no Tanguu fizera com elles, & como he custume ordinario da gente da guerra que viue por seu soldo não ter respeito a outra cousa mais que ao interesse que espera, vendo estas seis naçoẽs esta dilaçaõ del Rey em entrar na cidade, que ellas muyto mal sofrião, se vieraõ tres dellas a amotinar por conselho de hum Portuguez que andaua com elles, por nome Christouão Sarmento natural de Bargança, homem de espritos altiuos, & muyto bom capitão & esforçado de sua pessoa; o qual motim foy em tanto crecimento que ao Rey Bramas, por se não perder de todo, lhe foy forçado retirarse para hũ pagode de grandes officinas, õde se fez forte cos seus Bramaas ate o outro dia âs noue horas que o negocio por meyo de tregoas teue pequena de quietaçaõ, na qual el Rey lhes descubrio sua tenção, dizendo em altas vozes de cima do muro paraque todos o ouuissem.
  51. [2949](Cap. 195) E para remedio desta desinquietação quiz Deos, que he pay da santa concordia, espirar no peito del Rey que sofresse este mal como prudente, paraque assi se pacificasse o tumulto & a reuolta destas tres inquietas naçoẽs que habitão no agro das serras dos Moẽs, aos quais Deos maldiga entre todas as gentes, & para effeito desta paz & quietação se fez hum concerto entre el Rey & os capitaẽs dos amotinados, jurado de ambas as partes, que el Rey por liurar esta cidade do saco que era prometido aos soldados lhes daria de sua fazenda, o que seis homẽs, juizes deputados para esta causa, determinassem por sua sentença, dos quais os quatro jà la estão, & para a copia dos seis ser cheya não faltão mais que tu & outro Portuguez que el Rey escolheo por sua parte, cujo nome vem escrito nesta carta; pela qual serâs certo disto que te digo, & logo lhe meteo na mão hũa carta que trazia do Rey Bramaa, a qual Gonçallo Pacheco tomou em joelhos, & a pós na cabeça com hũas cerimonias exteriores de tãta cortesia que o Bramaa ficou muyto satisfeito, & disse, bem sabia el Rey meu senhor quem tu és, pois te escolheo por juiz da sua honra, & da sua fazenda.
  52. [3142](Cap. 205) E porque num dos capitolos do regimento que o seu capitão mòr trazia lhe mandaua el Rey que aly naquelle rio esperasse as naos de Bengala & de outras partes viessem para Malaca, & as tomasse todas sem dar vida a Portuguez nenhum, nem a homem que fosse Christaõ, se detiuera aly tãto, & tinha determinado de esperar ainda mais hum més, até que de todo a moução fosse gastada, & que quando ouuirão o tom da nossa artilharia lhes pareceo que as naos eraõ já chegadas, pelo que toda a armada se ficaua fazẽdo prestes com grande pressa para os virem logo buscar, pelo que sem duuida nenhũa ao outro dia virião aly ter.
  53. [3248](Cap. 211) Quarẽta & seis dias eraõ passados despois que este bemauenturado padre entrou nesta cidade Fucheo, metropoli, como ja disse, do reyno do Bũgo na ilha Iapaõ, nos quais sempre entendeo tanto de proposito na conuersaõ das almas, sem tratar doutra nenhũa cousa, que de marauilha Portuguez nenhum podia ter delle hũa só hora, senão se era ás noites em praticas espirituais, & nas menhãs nas confissoẽs.
  54. [3438](Cap. 218) Neste mesmo dia á tarde chegou a esta cidade de GoaPortuguez por nome Antonio Ferreyra casado em Malaca, cõ hũ presente de peças ricas para o Visorrey, que lhe mãdaua de Iapaõ el Rey do Bungo, com hũa carta que dezia assi.
  55. [3475](Cap. 221) Ao outro dia pela menham nos partimos desta ilha de Sanchaõ, & ao sol posto chegamos a outra ilha que estâ mais adiante seis legoas para o Norte chamada Lampacau, onde naquelle tempo os Portugueses fazião sua veniaga cos Chins, & ahy se fez sempre ate o anno de 1557. que os Mandarins de Cantaõ a requerimento dos mercadores da terra nos deraõ este porto de Macao onde agora se faz, no qual sendo antes ilha deserta, fizeraõ os nossos hũa nobre pouoaçaõ de casas de tres quatro mil cruzados, & com igreija matriz em que ha Vigayro & beneficiados, & tem capitão & ouuidor & officiais de justiça, & taõ confiados & seguros estão nella com cuydarem que he nossa, como se ella estiuera situada na mais segura parte de Portugal, mas quererâ nosso Senhor pela sua infinita bondade & misericordia que esta sua segurãça seja mais certa & de mais dura do que foy a de Liampoo, que foy outra de Portugueses de que atras já fiz larga mençaõ, auante desta duzentas legoas para o Norte, a qual pelo desmancho de hum Portuguez em muyto breue espaço de tempo foy de todo destruyda & posta por terra, na qual desauẽtura me eu achey presente, & nella ouue hũa inestimauel perda assi de gente como de fazenda, porque tinha esta pouoação tres mil vezinhos, de que os mil & duzentos eraõ Portugueses, & os mais gente Christam de diuersas naçoẽs, & segũdo se affirmou por dito de muytos que bem o sabião, passaua o trato dos Portugueses de tres contos douro, de que a mayor parte era em prata de Iapaõ que auia dous annos que se descubrira, & que se dobraua o dinheyro tres & quatro vezes em qualquer fazenda que para là se leuaua.
  56. [3482](Cap. 221) E de todos estes males & desauenturas foy causa a mà consciencia & pouco siso de hũ Portuguez cubiçoso.
  57. [3488](Cap. 221) Tinha este homem de seu como dez ou doze mil cruzados, & por ser estrangeyro & Christão como nos, se tirou de hũ junco de Mouros em que vinha, & se passou para hũa nao de hum Portuguez por nome Luis de Montarroyo, & auendo jâ obra de seis ou sete meses que viuia aquy entre nos pacificamente, fauorecido & agasalhado de todos, por ser, como digo, muyto bom homem, & bom Christão, veyo a adoecer de febres de que morreo, & fazendo testamento declarou que era casado, & que tinha sua molher & seus filhos em hum lugar da Armenia que se dezia Gaborem, & que dos doze mil cruzados que tinha de seu deixaua á santa misericordia de Malaca dous mil, com certas declaraçoẽs de missas por sua alma, & o mais pedia ao prouedor & irmaõs da casa que o tiuessem em deposito em seu poder até o fazerem entregar a seus filhos, a quem mandaua que se désse, & sendo caso que seus filhos fossem mortos, deixaua a misericordia por sua herdeyra vniuersal.
  58. [3563](Cap. 224) El Rey entaõ, parece que gostando das grandiosas repostas que este Portuguez lhe daua, gastou com elle em preguntas mais de meya hora, ficando elle & todos os que estauão presentes assaz marauilhados de tamanhas grandezas, & disse para os seus, certeficouos em ley de verdade que nenhũa cousa folgara agora mais de ver que a monarchia desta grande terra de que tamanhas grandezas tenho ouuido, assi de tisouros como de multidão de nauios no mar, porque com isso viuera em minha vida sempre muyto contente.

Portugueza 132(1).

Nas orações: 1795.

  1. [1795](Cap. 132) E como a natureza desta nossa nação Portugueza he sermos muyto affeiçoados a nossos pareceres, ouue aquy entre nòs todos oito tanta differença, & desconformidade de opinioẽs sobre hũa cousa em que o que mais nos releuaua era termos muyta paz & concordia, que quasi nos ouueramos de vir a matar huns aos outros, de maneyra, que por ser assaz vergonhoso cõtar o como passou, não direy mais senão que o Necodá da lorcha que nos aly trouxe de Huzanguee, espantado deste nosso barbarismo, se partio muyto enfadado, sem querer leuar carta nẽ recado nosso que nenhũ de nós lhe desse, dizendo que antes queria que el Rey por isso lhe mandasse cortar a cabeça, que offender a Deos em leuar cousa nossa onde elle fosse.

(2) Objecto geográfico interpretado

Reino. Parte de: Europa.

Referente contemporâneo: Portuguese Republic, Portugal (EU). Lat. 39.694500, long. -8.130570.

Voltar ao índice de entidades